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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Até logo, voluntários

Meu nome é Valéria Azevedo e coordeno o Serviço Social e Voluntariado do Hospital Municipal do Idoso Zilda Arns, em Curitiba. Nossa história com o Nariz Solidário começou em 2017, quando um jovem cheio de empatia, sonhos e ideais, procurou pelo Voluntariado do Hospital.

Chamou-me a atenção a maneira de se colocar no lugar do outro, desenvolver estratégias com responsabilidade e profissionalismo, através da figura do palhaço caracterizado de época – diferenciais observados quando acompanhamos a atuação dos voluntários do Nariz Solidário.

Sempre desenvolvendo o trabalho através da arte, chegando aos pacientes, familiares e equipe de uma forma muito lúdica, leve e harmoniosa. Levando a uma reflexão de que o vivido no passado e no hoje serão, amanhã, frutos para um futuro cheio de aprendizado.

Os voluntários voltam virtualmente

foram afastados de suas atividades, aquela presença que nos fazia esquecer por alguns instantes da doença, da dor e do sofrimento, agora estava tão distante, sem previsão de retorno.

Foi então que eles se reinventaram, inovaram e chegaram até nós de uma forma que não colocou ninguém em risco.

Produziram uma série de vídeos, disponibilizados semanalmente, com conteúdos que apresentavam a figura do palhaço através de reflexões importantes sobre cuidado, como por exemplo: consciência e, acima de tudo, esperança – esperança de que isso tudo vai passar.

Esperança renovada

No dia 20 de outubro, essa esperança foi renovada, pois pudemos ter a presença da ONG Nariz Solidário seus voluntários, em uma participação especial no evento de implantação do protocolo de gerenciamento da dor, em que ela foi incluída como o quinto sinal vital a ser avaliado pela enfermagem.

Valéria de braços dados com os voluntários do Nariz Solidário

Após a coleta, o dado é lançado no prontuário do paciente e passa a ser monitorado por toda equipe médica.

Ao final do evento, foram apresentadas técnicas que tratam a dor sem medicamentos.

Para nós, da ONG Nariz Solidário, que trazemos com alegria aos hospitais a figura do palhaço.

Com o objetivo de contribuir com estratégias que remetam o idoso a memórias afetivas e agradáveis.

Essa estratégia tem por objetivo desconectar o paciente, por alguns instantes, do processo de adoecimento, que gera dor e sofrimento.

Quando eles chegam, tudo muda

A gente fala muito das transformações que vimos nos pacientes, mas posso registrar os impactos no meu próprio trabalho.

Em muitos momentos em que eu precisei ser ouvida, desabafar, ou até mesmo rir de algumas piadas sem sentido, partida ou destino.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Esperança de esperançar

Duas palavras tão parecidas que confesso que demoro para entendê-las e, então, diferenciá-las. Ocorreu-me não faz muito tempo. Podemos escolher apenas ter esperança ou acrescentar ao verbo o “r” e fazer com que ele seja ação; a ação de esperançar.

Vou tentar explicar melhor trazendo apenas uma pequena história pessoal.

Esperança dormente

Meu nome é Tatiane, tenho 39 anos e sou professora. Trabalho atualmente em uma escola de Ensino Fundamental I e II da Prefeitura Municipal de Curitiba. Meu trabalho me traz muitas versões de mim, entre elas a possibilidade de trazer um estresse muito desenfreado que pode se manifestar através de um comportamento muito calmo ou então, por meio de uma doença psicossomática.

Mas, como trabalhar as emoções de uma forma que não nos traga algo pior, e sim que a cura venha, ou pelo menos, que amenize os danos? Então paramos e nos deparamos com o trabalho remoto e, até então, nada de dominá-lo, ainda mais com uma profissão em que o presencial é melhor.

O pesadelo se instalou e a esperança diminuiu. Esses sentimentos se misturaram-se com notícias de pessoas conhecidas e que, em algum momento foram colegas de trabalho – morrendo, outras se contaminando, cumprindo quarentena, e relatando, através das reuniões on-line, como era a experiência em contrair ou conviver com a Covid-19.

A situação do desemprego, a necessidade de ter algumas coisas em casa que antes tínhamos, mas que naquele momento não era possível mais ter.

A incrível experiência de ficar com a família mais em casa do que apenas utilizar sua casa para descanso. E, assim, fui me acostumando com a nova forma de estar e de ser a protagonista de uma nova.

A necessidade de esperançar começou a crescer e, antes da pandemia, alguns projetos que estavam acontecendo, já não conseguiam mais continuar como antes.

 Faço parte de um grupo maravilhoso, conhecido como Nariz Solidário. Atuo no elenco voluntariamente como ‘Clona’, uma palhaça que vive azeda, adora se maquiar e que, ao mesmo tempo, traz uma sensibilidade e gosta muito de ajudar no que for preciso.

A esperança de ter comigo meus novos irmãos

O raio de esperança e de sorte, foi ter meus novos irmãos ali comigo neste momento. Este grupo não é simplesmente um grupo de narizes, mas de corpos inteiros. Um grupo que, mesmo durante a pandemia, não parou com suas atividades porque se reinventou.

Nesse momento, os caminhos, ao invés de se fecharem e ficarem aguardando, abriram um caminho de esperança e fé.

Iniciamos as visitas on-line por meio de um manequim, adaptado com rodinhas, e um tablet no lugar da cabeça. Sim, um boneco! Melhor dizendo, uma boneca, mais conhecida como ‘Covidina’ (carinhosamente apelidada pela equipe de enfermagem do hospital).

Participamos de histórias, de sinais com as mãos e os pés. Pessoas que passaram a nos aguardar toda semana na esperança de saírem vivos!

Essa vivência nos trouxe entrevistas, pois os jornais começaram a se interessar por esse grupo tão potente que não havia parado.

Comecei a fazer parte de uma nova organização, aquela que trouxe o projeto “De Nariz para Nariz”, em que as visitas foram reorganizadas, e com isso, pude participar e garantir que elas acontecessem, por meio de agendamentos.

Tivemos vários cursos oferecidos, o que trouxe uma nova versão para a minha personagem. Aquela que, mesmo sem o nariz, permanece comigo diariamente em meu trabalho, em casa com minha família e amigos.

Confesso que a parte dos encontros presenciais faz muita falta, aos poucos vamos retornando, mas quando temos a parte on-line, mesmo assim, conectamo-nos e tornamos este momento muito proveitoso.

 Recentemente tivemos um curso com profissionais que admiro e que, com certeza, eu não teria a oportunidade de participar se eu não estivesse fazendo parte dessa família.

Esperança, vacina e emoção

O tempo passou e retornei ao meu trabalho presencial, muitas coisas têm acontecido nestes últimos meses. Agora, novamente, tentamos retornar e nos adaptar ao novo normal. Não poderia deixar de citar a emoção em me vacinar – a sensibilidade de poder fechar os olhos e ser grata por essa oportunidade.

Como aos poucos as coisas vão retornando, fica a expectativa do retorno das visitas aos hospitais – estar ali me conecta ainda mais com a escolha que fiz em ser Nariz. Poderia passar horas relatando tantas outras coisas que já tive a oportunidade de participar juntamente com o Nariz Solidário, contudo, deixo aqui este registro de que não paramos! Ouvimos, expressamo-nos e, através disso, pudemos perceber que: ou paramos no tempo, ou traçamos uma meta para passar diante das diversidades da vida nesse momento de pandemia.

 Ainda não acabou, mas estamos sempre em busca do novo, vi e vejo possibilidades de me reinventar e não perder a esperança,

Esperancei

Então volto para o começo em que relatei a diferença entre essas duas palavras tão parecidas e, mesmo assim, cada uma tem sua importância na vida da gente. É assim a minha relação com o Nariz Solidário, com essa pandemia que nos trouxe muitas coisas e, entre essas coisas, a importância de refletirmos sobre a presença e o carinho um do outro.

Sempre vamos precisar cuidar para além do nosso nariz, do meu próximo e de mim mesma. Isso me trouxe afago e a capacidade de parar, respirar e refletir a cada situação.

Não sou perfeita, nem tenho a intenção de ser. Hoje estou mais segura e mais certa que estou no caminho certo.

“Que nunca percamos a esperança em esperançar” – Paulo Freire


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Pós-Graduação Completa São Paulo

“Eu também me questionei”

Durante esse período e até agora, pergunto-me se tem alguém que não tenha questionado a vida, a morte, a passagem do tempo, o valor das coisas; pergunto-me se tem alguém que não questionou seu próprio ofício, suas escolhas, sua estabilidade financeira ou emocional.

Em março de 2020, eu morava fora do Brasil, mas estava constantemente ligada ao meu país através das memórias, do amor e de meu trabalho com a ONG Nariz Solidário.

“Como prosseguir sem me questionar?”

Questionei-me também ‘como prosseguir’ e, principalmente, como eu poderia ser útil para além de minhas próprias buscas pessoais.

Nesse momento, meu amigo Eduardo Roosevelt, do Nariz Solidário, fez-me uma proposta: E se colocássemos em movimento ideias antigas nossas, como o Curso Online “O humor e a Saúde”?

Este curso seria voltado apenas para palhaços de hospital, mas, naquele momento, poderia ser para qualquer um que quisesse aprender!

Pensávamos que, além de ajudar a transformar a vida de outras pessoas, estas atividades poderiam, de certa forma, desacelerar nossa vulnerabilidade e ainda ajudar a ONG Nariz Solidário.

Quais os próximos passos?

Resolvemos fazer esse teste e nos vimos mexidos e modificados com essa experiência.

Pensei que eu iria ajudar, mas fui a maior beneficiada. Pudemos nos conectar com pessoas de todas as idades, em todo o Brasil e, algumas vezes, até pessoas que moravam fora compartilhando experiências íntimas, medos e brincando juntos.

Lembro-me de situações delicadas e especialmente impactantes, como uma das alunas que assistiu alguns dos nossos encontros ao vivo, juntinho com sua mãe, da cama do hospital.

Mandava-nos fotos ou vídeos e nos tornamos tão íntimos nesses momentos, conseguindo nos fortalecer nesse período tão delicado.

Nadja Moraes no curso online "Humor e Saúde", ministrado pela ONG Nariz Solidário.

Foi quando vimos que era possível

É possível, independente das circunstâncias, encontrar um farol de luz, caminhos que nos deem suporte, leveza e alegria, mesmo em momentos de grandes desafios. Mesmo em contato com a morte.

Tivemos uma mãe solo que passava por uma depressão, com uma filha especial, e pudemos ver em primeira mão o seu progresso, sua abertura, sua vontade de viver e de brincar, despertando através de nossas trocas.

Tivemos um palhaço de circo tradicional na ONG Nariz Solidário, com tanto a ensinar, com tanta estrada e picadeiro em suas memórias, aberto para aprender e compartilhar conosco suas histórias.

Ele, que faleceu recentemente, deixou-nos um legado incrível de humanidade. Cada troca enriquece a todos. Eleva-nos e nos mostra que existem caminhos mesmo em meio à dor.

O potencial dessa semente iniciada durante a pandemia só nos mostra que mesmo à distância, é possível construir pontes.

Mesmo na dor, é possível se ver sorrindo e encontrar fagulhas de alento e alegria e contribuir cada vez mais para uma sociedade onde possamos nos ajudar sempre, contar uns com os outros e cuidar de nossas feridas juntos.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Distrito Federal Parda Pós-Graduação Completa

“Na pandemia, a Tulipas do Cerrado começou a distribuir alimentos e produtos a grupos em vulnerabilidade social”

Sou Victória, mulher cis parda, tenho 26 anos, sou enfermeira, especialista em saúde mental, álcool e outras drogas, e redutora de danos voluntária na organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado desde 2019. Resido em Ceilândia, periferia do Distrito Federal e irei fazer o relato a partir dos impactos que a pandemia trouxe à ONG.

Antes da pandemia, a ONG Tulipas do Cerrado realizava ações de redução de danos nas ruas, em territórios vulneráveis, com foco nas pessoas em situação de rua, profissionais do sexo e população LGBTQIAP+. Além disso, a organização estava se inserindo nos ambientes de festas, com a oferta de acolhimento e atendimento às pessoas que estavam sob efeito de álcool e outras drogas, bem como realizava ações de redução de danos (oferta de água, frutas, informações de saúde) para o público que frequentavam as festas. 

A Tulipas do Cerrado também realizava cursos, seminários e oficinas em volta das temáticas: redução de danos; guerra às drogas; trabalho sexual; cuidado à população em situação de rua; atenção à saúde da comunidade LGBTQIAP+

Pandemia: ações na rua deram lugar a atendimento psicossocial e arrecadação de alimentos

Porém, com o surgimento da pandemia do novo Coronavírus e as medidas de enfrentamento focadas no distanciamento social e na quarentena, a instituição ficou dois meses fora das ruas, o principal local das ações. Nesse período, realizamos mobilização pelas redes sociais para adquirir doações de roupas, produtos de higiene pessoal, alimentos não perecíveis, cestas básicas e água, para que pudéssemos entregar em domicílio esses insumos para as pessoas que estavam sendo acompanhadas pela ONG. 

Ainda naquele tempo fora das ruas, a organização passou a oferecer atendimento psicossocial online. A ONG conta com uma equipe multiprofissional voluntária de profissionais da saúde que tem experiência em cuidado em saúde mental na perspectiva psicossocial e de redução de danos, da qual eu faço parte. Essa atividade tinha os objetivos de dar suporte e escuta qualificada às pessoas que estavam em sofrimento mental e em situações de agudização de quadros de ansiedade e/ou depressão causadas pelo impacto da pandemia (isolamento, pobreza, insegurança, mortes…). Esse trabalho envolvia também o encaminhamento dessas pessoas para a Rede de Atenção Psicossocial do Distrito Federal e Entorno, para dar continuidade no cuidado e acessar outros profissionais, como psiquiatra e terapeuta ocupacional.

Doações

Em meados de abril de 2020, a Tulipas do Cerrado começou a distribuir doações de alimentos, roupas, máscaras e álcool em gel a grupos de trabalhadoras sexuais cis e transgênero, chefes de família, que estavam em vulnerabilidade social decorrente da pandemia. A entrega de cestas básicas, cesta verde e ticket alimentação ocorrem mensalmente com a ajuda de múltiplos parceiros da rede.

Em 2020 e 2021, a Tulipas do Cerrado participou de editais que possibilitaram a implementação de projetos voltados a prevenção do Covid-19, redução de danos e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, com foco na população em situação de rua e trabalhadoras sexuais. 

Com os recursos financeiros adquiridos, foi possível: custear medicamentos para alívio de sintomas do Covid-19 às mulheres assistidas pela instituição; pagar gás de cozinha para as que não tinham condição de obter por conta própria; e oferecer ajuda de custo àquelas que estava indo aos territórios para realizar as atividades do projeto.

Atualmente, as atividades da Tulipas do Cerrado têm sido possíveis com a ajuda de outras organizações e coletivos, bem como com o financiamento de projetos. Mesmo que nossas atividades estejam aquém do que projetamos antes do surgimento da pandemia, creio que estejamos realizando da melhor forma que tem sido possível e, apesar das dificuldades, temos conseguido reduzir os danos sociais e de saúde e provocar melhorias na qualidade de vida das pessoas que são acompanhadas pela ONG.

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40 a 59 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Trans Pós-Graduação Completa Raça/Cor Santa Catarina Sem categoria

“A Covid-19 fez com que sentíssemos medo de todos, até dos amigos e parentes”

A vacina chegou bem na época da minha mudança para Santa Catarina. Então fiz 534 km de volta para ser vacinada. Sai às 5 horas da manhã e cheguei em Portão às 14h30. Fui direto tomar a vacina: foi tanta alegria que não senti nada. Minha expectativa para o futuro é que tenhamos um governo que preze pela vida e pelo social e que olhe para todos.

Na verdade, ficamos com medo uns dos outros – era esse o sentimento que eu tinha – até dos amigos e dos parentes. A gente tinha medo de se encostar, de se aproximar. Foi um período muito triste… nojo e medo foi o que mais senti. …Isso fez que refletíssemos sorbe o que realmente e a resposta foi a vida, a saúde, a família, a liberdade.

Outra coisa marcante foram as filas nas portas dos supermercados, coisa nunca vista. E a neurose em limpar as compras, limpar as mãos, trocar de roupas e de calçados a cada vez que sair na rua. Foi estressante, ainda é, pois não estamos livres da contaminação. Parece um filme de ficção científica.

Famílias puderam fortalecer seus laços, enquanto outras não suportaram as suas diferenças e se desconstituíram. O que todo mundo sente falta é de abraço, de aconchego, de aglomeração e de proximidade – coisas que tínhamos, eram comuns, mas nem dávamos tanta importância. 

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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa Sem categoria

“A pandemia isolou minha gestação”

A gestação de minha filha foi ainda antes de todo esse contexto de pandemia, mas fiquei bastante frustrada por ter que vivenciar algo tão desejado, como a gravidez, em isolamento, distante até mesmo de minha família. Foi, então, que, durante um desabafo com o Eduardo, fundador da ONG Nariz Solidário, ele me provocou dizendo: “você é palhaça, seja criativa!”. Fiquei com aquilo na cabeça e pensava: “mas como?”

Tenho 33 anos, sou pedagoga, contadora de histórias, e trabalho de forma voluntária como palhaça na ONG Nariz Solidário, espaço em que busquei doar meu tempo e que me proporciona crescimento em cada uma das ações.

A arte sempre me colocou sob a necessidade de escutar o outro, mas, primeiramente, precisava ouvir a mim mesma. Foi assim que os treinamentos do Nariz Solidário me ensinaram sobre aceitação pessoal. Entre encontros e oficinas, redescobri a essência de minha palhaça: reencontrei-me enquanto pessoa, reconciliando-me com a minha infância e descobrindo uma nova mulher. Só a partir daí realizei um dos meus maiores sonhos: a maternidade.

Paracegover: Nesta foto, Elenice está sentada na grama ao lado de Eduardo. Ela está de calça preta com bolinhas brancas, usando nariz de palhaço e tiara laranja na cabeça. Elenice veste um top que cobre apenas seus seios e deixa sua barriga amostra. Ao seu lado, Eduardo está agaixado e fitando sua esposa com um largo sorriso no rosto. Eduardo é um homem branco de meia estatura, veste uma camiseta preta, calça jeans, óculos e boina preta.

Mas aí veio a pandemia…

Queria exibir meu barrigão e minha alegria para o mundo e não podia nem sequer sair de casa. Fui refletindo e, um dia, me veio a ideia de fazer autorretratos em casa, para não perder cada fase do crescimento daquela vida que vinha crescendo em mim.

Antes, minha ideia era fazer um book de gestação na montanha, já que sou montanhista e minha gravidez estava tranquila e saudável. Mas, com a necessidade de cumprir com o distanciamento social por conta da pandemia, meu mundo passou a girar em torno de quatro paredes.

Além disso, a provocação de Edu fez surgir em mim a ideia de registrar uma das atividades que compunham parte de meu trabalho remoto: a contação de histórias. Realizava duas vezes por semana lives para crianças da educação infantil e, ao final de cada enredo, eu me fotografava. Foi lindo. Usava figurinos e elementos específicos para cada temática. O tempo passava mais rápido e mais leve. Em agosto de 2020, minha Ana Clara nasceu.

Outro misto de alegrias e dores

Estava muito feliz por, enfim, ver meu bebê. Mas triste por ter que evitar contatos externos. Mesmo durante a licença maternidade, preferi não me afastar da família Nariz Solidário, mantendo contatos remotos, devido à pandemia. E, apesar de ter menos tempo devido às novas demandas exigidas pela maternidade, não abandonei as oficinas oferecidas pela ONG. As aulas trouxeram um sentido para o meu viver, já que, através delas, e por meio da “arte da palhaçaria”, consegui levantar diariamente com entusiasmo para enfrentar os obstáculos do isolamento social.

Com 22 semanas de gestação, hoje, uma nova vida cresce em mim, e sinto-me a pessoa mais realizada do mundo. Tudo isso devo às oficinas do projeto “De Nariz para Nariz”. Ao realizar os treinamentos em casa, brinco com a minha pequena e improviso cenas simples, que me divertem e a fazem rir.

Paracegover: A foto mostra Elenice, uma mulher branca com cabelos curtos de coloração castanha, sentada em uma poltrona, com um violão ao lado. Na parede, há corações rosas colados e um urso panda apoiado  sobre a almofada da poltrona. Elenice veste uma tiara de laço vermelho com bolinhas brancas, mesmas cores de sua camiseta polo. Na foto, Elenice está sorrindo e com a mão apoiada em sua barriga grávida de aproximadamente 5 meses.

Ana Clara tem menos de dois anos, mas sua pureza e encantamento com pequenas coisas a fazem rir de situações que, geralmente, nós adultos, reclamamos. Cada gargalhada que ela solta quando eu bato o cotovelo sem querer na mesa, por exemplo, me permite refletir e fazer daquilo um jogo lúdico, repetindo a ação apenas para ver seu sorriso.

A arte me prepara

A arte me prepara e me ensina. Sua presença em nossas vidas transborda tanto amor, que eu e meu esposo escolhemos ter nosso segundo bebê. Hoje, temos o Francisco a caminho! Nos últimos tempos, aprendi que a vida está aí para ser vivida: intensamente, dentro de qualquer possibilidade!


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Distrito Federal Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor

“Desenvolvi um projeto de alfabetização para mulheres vítimas de violência”

Relato produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Trabalho na Associação das Mulheres de Sobradinho II, onde são atendidas várias mulheres de diversas faixas etárias. Trabalhamos com vítimas de violência domestica, especificamente, mas também atuamos com ações sociais, de assistência. Não o assistencialismo, porque a gente vem com o viés multidisciplinar. Então, nós prestamos assistência às mulheres, totalmente como pessoas voluntárias. Nós temos consultoria jurídica, nutricionistas, psicólogos, psicoterapeutas, e também professores. Eu sou uma delas.  

Sou professora da Secretaria da Educação. Aposentei-me, mas descobri durante a minha aposentadoria que terei de fazer outras atividades. Então, encontrei na Associação das Mulheres um momento que me ajudou na pandemia. Sou da parte social, oferecemos palestras, palestras temáticas voltadas para mulheres, meninas e mulheres idosas.

Essa vivência trouxe à tona o fato de algumas mulheres serem analfabetas. Comecei a pensar em atender essa demanda, que estava realmente invisível dentro da Associação. Enxergamos essa situação a partir da observação de como elas se comportavam, do receio até mesmo de assinar a lista de frequência. Isso despertou o meu olhar. Surgiu dessa observação, a ideia de desenvolver o projeto Brincando com as Letras e Contando Historias. Dessa forma, eu parto da vivência dessas mulheres para trabalhar a alfabetização.  

Tivemos um trabalho intenso na pandemia, porque as mulheres estudavam para obter, presencialmente, a formação de manicure, maquiagem, fotografia e gastronomia que a gente faz. Trata-se de um trabalho em rede com parcerias, por isso, a gente busca também o apoio de Organizações Não Governamentais do Distrito Federal. As mulheres tiveram, de uma hora para a outra, que se ausentar da Associação por um determinado tempo, porque aqui não poderiam ser atendidas, porque paramos por duas semanas para buscar alternativas para a permanência do nosso trabalho.

Durante a pandemia, pedimos o uso externo da associação para que nós não atendêssemos aqui dentro, no espaço fechado, para evitar aglomeração. Dessa forma, começamos a atender em rodas de conversas, utilizando o espaço da guarda mirim, que fica ao lado da associação. 

Mulheres faltavam ao encontro, por sofrerem violência doméstica

Logo, as mulheres que faziam parte dos encontras levaram a informação para outras mulheres. A notícia de que a gente tinha voltado ecoou nos quatro cantos e nem foi mais necessário ligar para elas. Estamos juntas todas as quartas-feiras em nosso “encontrão”. E, a partir desse momento, às quartas-feiras, a gente percebeu que muitas delas, além de depressão, estavam sofrendo abusos e outras violências.

Muitas sofriam violência psicológica, devido ao confinamento, à baixa renda, à extrema pobreza. A situação era de vulnerabilidade, tanto econômica quanto física. A gente começou fazendo alguns estudos de caso e percebemos que muitas delas quase não estavam vindo, porque haviam sofrido violência doméstica.

Atendemos casos em que tivemos que fazer uma interferência, porque a gente trabalha em rede junto com o Centro de Referência em Assistência Social (Cras), Conselho Tutelar, Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), Secretaria da Mulher e todos os seus equipamentos. Também trabalhamos com as delegacias 13ª e 35ª, que atende toda região de Sobradinho II e toda parte de condomínios, porque a violência não está presente só na classe social baixa, mas em todos os espaços. 

O conhecimento dá condições ao indivíduo de enxergar a vida de outras formas

A transformação na vida das pessoas demora a vir, mas alguém tem que começar a fazer alguma coisa para que essas mulheres deixem de ser violentadas e mortas todos os dias. Encontramos, na escola, um espaço ideal pra levar isso à frente e dizer para essas meninas que elas podem, sim, transformar suas próprias vidas. É um trabalho corpo a corpo. No entanto, a gente deixou de trabalhar a questão do assistencialismo. Não somos mais uma associação pensada em assistencialismo, mas pensamos na assistência do ser humano em todos os sentidos.  

Durante a pandemia, nós percebemos que houve uma demanda crescente em relação à atenção e atendimento. E, particularmente falando da minha vida como professora que atuou durante 30 anos na Secretaria de Educação, digo que, para mim, este momento é impar, singular, porque tenho aprendido muito. Tenho dez alunos e, durante o trabalho como professora, me identifico demais, porque as nossas histórias são muito parecidas. Não no que diz respeito ao conhecimento acadêmico, mas são muito parecidas na vivência, na origem, nordestinos, pais autoritários, patriarcalismo evidente, em que o bater é a solução.

Assim, me identifiquei demais. Parto do princípio da vivência deles e, pra mim, a pandemia trouxe a oportunidade de aprender mais, de buscar mais conhecimentos e isso fez com que eu abrisse meus olhos, pois é um aprendizado pra mim. Expectativas daqui pra frente, em relação a essas mulheres, é que elas tenham acesso ao conhecimento. Conhecimento é tudo. Conhecimento é dar ao individuo a capacidade de discernir o que é acerto, o que não é, dar condições ao individuo de enxergar a vida de outras formas, abrir a janela, conceder outros olhares. Por isso, a gente transforma essas mulheres, acreditando no conhecimento que elas estão adquirindo. E isso elas levarão para o filho, o neto. Enfim, a gente acredita que é chegando na família que a gente vai fazer uma transformação social.  

Relato de Edvalda Paixão, produzido pela associação Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Escolaridade Estado Gênero Idade Minas Gerais Mulher Cis Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor

“Para mim foi muito complicado manter o delivery”

Tive que readaptar meu negócio para o ramo de delivery, devido à necessidade de manter as despesas da empresa. No entanto, entendi que, ao contrário do que se diz da necessidade de transformação, nem sempre a gente vai se adaptar ou o negócio vai dar certo.

Antes da pandemia, oferecia serviços de gastronomia em praças públicas, trabalhava com serviços de catering para camarins, shows e eventos corporativos. Mas com a chegada do coronavírus, tudo isso foi modificado.

A pandemia me fez repensar outras formas de atuação, então dentro da gastronomia afro-brasileira. Então, passei a oferecer serviços de delivery. Mas no meu caso, por exemplo, foi muito complicado manter o delivery. Passou de uma questão financeira a uma questão pessoal e até mesmo de conseguir estar feliz com a minha atuação. Então, em um dado momento decidi não mais continuar com o delivery. Daí começaram a aparecer outras propostas de trabalhos corporativos, os quais têm me mantido hoje em dia.

Aprendizados

O lado transformador foi a possibilidade de poder transitar em outros meios. Porque quando se escreve um projeto para criar uma startup delimitamos um poucos os nichos e dentro do que eu tinha como projeto do ramo gastronômico não tinha delivery. Mas ao mesmo tempo percebi que minha proposta inicial era a que me fazia feliz e a empresa avançar.

Percebi mudanças pessoais também. Hoje vejo que nem tudo está sob controle. Enquanto mulher negra empreendedora percebo que é muito importanto pensar nos obstáculos, nas necessidades de transformação e acreditar na minha certeza, no meu sonho. Hoje creio muito mais em minha capacidade e naquilo que sempre escolhi para ter como ofício.

Aprendi também que nem tudo está sob controle. Especialmente para nós empreendedores. Saber que a qualquer momento uma transformação pode haver é um importante aprendizado. Dessa vez foi a pandemia. Nós, empreendedoras, estamos susceptíveis a mudanças.

Conselho à você, empreendedora

Esteja ancorada de alguma forma. Fique por dentro do que está acontecendo em seu mercado. Qualifique-se para quando acontecer algo imprevisível você possa ter, pelo menos, o mínimo de possibilidade de se manter. É importante ter um suporte financeiro, uma economia preparada para um momento de eventualidades. E nunca deixe de acreditar no seu sonho. Tenha certeza do que você quer e mesmo que o caminho o qual você tenha traçado tenha sofrido algum desvio, lembre-se para onde você quer chegar.

Sou Kelma Zenaide, empreendedora do ramo gastronômico. Moro em Contagem, Minas Gerais.

Veja também:

“Hoje o meu quarto é minha sala de aula e lugar de estudo”

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25 a 39 anos Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“O governo não está garantindo o direito básico à água”

“Como higienizar as mãos, lavar a casa, as roupas, fazer comida se não tem água na favela?”, disse uma moradora da Maré, favela localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro e com aproximadamente 132 mil moradores. E, assim tem sido os dias de inúmeros outros moradores de favelas da Zona Norte e Oeste do Rio. O pior é vivenciar isso em meio a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), sendo a água uma das principais recomendações para que a população não corra o risco de ser contaminada pelo vírus. 

As autoridades públicas do Rio, em entrevistas às mídias, afirmaram que o abastecimento da água no município só será normalizado no final do mês de dezembro. Até o momento, só no município do Rio mais de um milhão de pessoas já está sendo afetadas. De acordo com a Cedae, são 30 bairros que estão neste momento sofrendo com a falta do abastecimento de água. 

Mas, infelizmente, sabemos que a falta d’água não começou agora nos locais mais pobres da cidade. A maioria das favelas e periferias do Rio de Janeiro nunca tiveram esse direito humano básico garantido na sua totalidade. O que se tem hoje dentro das favelas e periferias, foi construído pelas próprias mobilizações locais para sobrevivência dos que habitam este espaço. E essa cruel situação só vem se agravando. 

A luta pela água, um direito básico

Ainda no início deste ano, lá em março, quando o mundo passou pela primeira onda da Covid-19, várias denúncias sobre a falta d’água começaram a surgir em diferentes pontos da cidade. A favela do Amorim, também na Zona Norte do Rio, foi uma das que tiveram que fazer protesto na avenida para chamar atenção das autoridades públicas em relação a este grave problema. 

Os moradores só conseguiam água porque a Fiocruz disponiblizava uma mangueira para os moradores durante o dia. Uma das moradoras na época disse a seguinte frase: “Eu não consigo ir no local que dá para pegar água porque estou numa cadeira de rodas, sou idosa, estou dependo das pessoas da rua para ter água em casa”. Este e outros relatos chegam diariamente e de diferentes partes da cidade.

O nosso povo está morrendo de fome, de Covid-19, de desemprego, de sede. Enfim, a realidade na favela nunca foi fácil e, agora, em tempos de pandemia, tudo só tem piorado. Sinceramente, se isso não é genocídio, eu não sei o que é! Lutemos juntos e juntas para sobrevivermos a tudo isso!

Sou Gizele Martins, moradora da Maré, comunicadora comunitária, jornalista e mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas. Sou ainda defensora de direitos humanos e há quase 20 anos circulo as favelas do Rio, do país e do mundo para conhecer de perto as violações cotidianas de direitos. Faço disso matéria, artigo, mobilização e muita luta cotidiana em defesa do direito à vida!

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25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Pós-Graduação Completa Raça/Cor São Paulo

“Quem sobrou teve que aprender a dar aula à distância”

Tudo mudou com a pandemia. Eu, por exemplo, que sempre conciliei vários trabalhos, tive que me reorganizar radicalmente. Em minha atividade principal, de educador nas prisões juvenis na Grande São Paulo, aconteceu uma organização de educadores/as inédita de início, seguida de muitas demissões. Quem sobrou teve que aprender a dar aula à distância.

Pela minha experiência em rádio e Podcast, acho que foi mais fácil dar o passo para o vídeo e ver o que conseguiria fazer. Tinha de tudo um pouco na minha oficina: de leitura de jornais a gravação de músicas, de shows de grupo de rap a rodas de conversa.

À distância, fui por dois caminhos: música e leitura, tentando trocar o máximo possível de ideias com os meus alunos. Completamos 6 meses de aulas remotas e, apesar de tudo, ante às condições, aconteceu.

Foram 17 turmas, em 6 unidades diferentes, que renderam nove podcasts, quatro saraus e até duas fanzines. Fora as trocas, reflexões e afetos que não foram contabilizados.

Seguimos para 2021 na expectativa do fim da crise sanitária; das aulas presenciais serem retomadas sem colocar em risco a saúde de ninguém; da recontratação de quem perdeu o emprego e de encontrar algum aluno dessas aulas à distância, só que em liberdade

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