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25 a 39 anos Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“A gente foi se adaptando a novos hábitos durante a pandemia”

Foi muito difícil me armar nessa pandemia aí em que vivemos. Pensei tanta coisa, inclusive que a qualquer momento ficaria doente. Pensei em meus filhos aqui em casa. Pelo menos deu para trabalhar, caí para dentro das entregas, e trampei de entregador em uma pizzaria.

O que vinha para entrega, tava agarrando. Fiquei desesperado, tenho três filhos em casa. Não sabe se vai ter trabalho, tava tudo fechado, no começo ficou com pique de que ia fechar, não ia ter nada…

Enfim, foi aquilo, fui me adaptando, me preveni, passo bastante álcool em gel na mão, lavo bem as mãos, deixo sempre o sapato fora de casa. Fazendo coisas assim que a gente não fazia todos os dias, agora tem que se adaptar a esses hábitos, pois tenho três filhos em casa. São dias difíceis e não desejo isso para ninguém. 

Muita gente morreu. Alguns familiares, alguns amigos, pegaram essa parada aí. Momentos assim são assustadores mesmo. Mas agora está dando para controlar, tem trabalho ainda, né? Tomara que agora não feche tudo de novo. Tomara que não venha o pior, que até então tá dando para levar.

Mas tem muita gente morrendo ainda. Tem que se prevenir nessa pandemia, tem que se cuidar, lavar bem as mãos. Toda hora. Tem que ser chato mesmo, toda hora tem que estar vendo as crianças, limpando eles, limpando as coisas com álcool, lavando bem o chão, nunca entrar em casa direto da rua com os sapatos. É assim, novos hábitos de viver. Novas coisas.

A gente foi se adaptando aí.

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18 a 24 anos Ensino Fundamental Incompleto Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Paraná Parda Raça/Cor

“Espero que logo a gente possa sorrir, e não apenas com os olhos”

Eu sou Diego Ferreira, militante do Movimento Sem Terra (MST) do Estado do Paraná. Para nós do MST, muita coisa mudou por causa da pandemia. Acho que a gente nunca viveu isso , especialmente em ter que adotar o uso da máscara e o uso do álcool em gel. Sentimos falta do aperto de mão, do abraço no companheiro quando a gente se encontrava no meio da rua, da família.

Hoje foi preciso parar de visitar a família e dos parentes nos visitar. A nossa rotina do MST, os acampados e os assentados da reforma agrária, do trabalho, a quarentena, a produção de alimentos… tudo mudou! Pois esses alimentos eram produzidos para a comercialização, consumo e doação. Isso para a campanha de solidariedade que o MST criou no início da pandemia Já doamos, aqui no norte do Paraná, cerca do 100 toneladas de alimentos, por exemplo.

O que eu, Diego, levo de ensinamento da pandemia é a solidariedade e o trabalho voluntário. Tem muita gente cuidando do próximo. Lembrando que é importante cuidar da gente também.

O vírus, que até hoje não sabemos como funciona, como ele age, nos deixa preocupados. Mas vamos fazer a nossa parte e contribuir nos fortalecendo e torcendo para que forças médicos e cientistas evoluam na busca da vacina contra a Covid-19. E que possamos, logo em frente, nos abraçar, apertar as mãos e sorrir, e não apenas com os olhos.

E é isso aí! Um grande abraço e até a próxima!

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40 a 59 anos Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Minas Gerais Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor

“Minha casa e meu espaço de trabalho se fundiram em um mesmo lugar”

Por ser professor do ensino superior, estou, neste momento, trabalhando em home office. Por isso, minha casa e meu espaço de trabalho se fundiram em um mesmo lugar. Tenho tido oportunidade de me dirigir aos meus alunos da minha casa. Sinto que é um privilégio, porque nem todas as pessoas têm condições de poder trabalhar da forma mais segura, sem correr o risco de contato social.

Com isso, percebo um pouco das desigualdades que a gente tem vivido em nosso país. Fatos que a gente registra, sobretudo, no campo das relações raciais. Por exemplo, como negro profissional que está tendo oportunidade de trabalhar em casa, eu me sinto um pouco privilegiado. Porque não são todas as pessoas negras que podem desfrutar dessas condições, mesmo que essas condições signifiquem um trabalho dimensionado de uma maneira muito diferente. 

Hoje o meu tempo de trabalho é absurdamente grande, desde quando eu levanto até a hora em que vou me deitar.

Todo o meu dia está envolvido com questões de trabalho, e é um pouco mais tenso, porque vivo no mesmo espaço. Por isso, a gente tem que criar estratégias para fazer com que este trabalho não signifique uma sobrecarga psicológica.

Contratempos durante aulas remotas

Neste momento, eu tenho uma preocupação muito grande com os meus alunos. Sobretudo com minhas alunas.

Leciono em um curso de pedagogia, e tenho percebido que elas têm enfrentado situações muito difíceis, a começar com as questões de acesso às redes para poder acompanhas as aulas.

Além disso, não são poucas as vezes em que, num momento da aula, algumas das alunas se encontram em trânsito, dentro de um ônibus ou na rua. Aí precisam ligar o celular para poder acompanhar um pouco das aulas. Isso me preocupa, porque sei que o processo de ensino e de aprendizagem precisa de uma mediação maior, em que a gente possa estar mais atento em relação ao desempenho de cada um dos alunos.

O que tenho feito é gravar minhas aulas para que todo mundo possa recuperar depois uma gravação. Assim, todos ficam atualizados em relação aos conteúdos.

Juventude em situação de vulnerabilidade

Além dessa atividade como professor, eu também desempenho a atividade de vice presidente de uma entidade. O trabalho voluntário acontece em uma entidade chamada Associação Profissionalizante do Menor (ASSPROM), que faz uma intermediação entre jovens entre 16 até 25 anos. Essa intermediação é feita ao mercado de trabalho com grandes empresas e nas três esferas do governo.

No entanto, criar oportunidade de vínculo de primeiro emprego para a juventude tem sido muito afetada durante a pandemia.

E essa associação atende exatamente as pessoas que mais precisam ter um acesso ao mercado de trabalho. Houve redução de postos de trabalho, e muitas famílias ficaram em situação de vulnerabilidade ainda maior. Além disso, muitos destes jovens que estão, hoje, sendo vinculados na própria associação, também são, em parte, arrimo de família.

Juventude negra é a mais afetada

Aqui em Belo Horizonte, essa juventude – sobretudo a juventude periférica e negra, homens e mulheres – tem sofrido um impacto muito grande dessa pandemia. Enquanto alguém que está à frente de um projeto social que cria condições que estes jovens tenham uma possibilidade maior ao mundo do trabalho, isso me preocupa.

Porque muitos desses jovens se encontram em estudo remoto, e nem sempre as condições que eles têm de acesso são as melhores. Isso pode significar, daqui para frente, um problema maior no que diz respeito à evasão escolar e à interrupção de projetos de vida.

Sou José Eustáquio de Brito, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, onde leciono na Faculdade de Educação e também na Faculdade de Políticas Públicas.

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Homem Cis Rio de Janeiro

“A pandemia nos trouxe uma solidariedade que estava estocada em algum lugar”

Eu já fui do escritório para o home office. Desde 15 de março é em home office que nós estamos trabalhando. E tem funcionado. Graças a Deus essa questão do trabalho não é um problema.

No início, eu fiquei com muito receio. Muito medo. Muito medo. Mas, depois, acho que… talvez eu tenha me acostumado. Me centrado mais, meditado mais. Então, fui me acalmando. O medo ainda existe para me trazer cautela, mas a fobia grande já passou.

Catadores do Bem

O projeto social Catadores do Bem começou em 2012, ali de forma bem tímida, entre amigos que reuniam verba de outros amigos para comprar cestas básicas. Nosso público, nosso pessoal, nossos assistidos, sempre foram catadores de material reciclável. Então a gente quis trazer para os catadores aqui do nosso bairro – Irajá, zona norte, subúrbio do Rio de Janeiro – uma visibilidade maior.

“Como assim você só quer me entregar uma cesta básica?”

Nós sempre os víamos catando, ali pela manhã, em dia de coleta de lixo, e íamos até eles oferecendo cesta básica. No início foi muito difícil, porque eles tinham muitas suspeitas: “como assim você só quer me entregar uma cesta básica?”, “você tem algum partido político?”, “precisa do meu CPF, RG?”. “Não preciso de nada, só vou te entregar esse papelzinho aqui, que é uma senha, e no dia tal você aparece naquele endereço que você vai ganhar uma cesta básica”.

E ao longo dos anos a gente foi criando vários vínculos, afetivos mesmo, com esses trabalhadores, e a gente foi aumentando. Lá no início a gente conseguia, sei lá, dez cestas básicas. Hoje nós atendemos 90 famílias. Esse “bum” aconteceu há uns dois, três anos atrás. A gente começou a se organizar melhor. Acho que na época a gente assistia vinte famílias. E falamos: vamos organizar isso aqui. Aí a gente se mobilizou para ter mais voluntários. Hoje a gente tem trinta voluntários por evento. Já chegou a cinquenta voluntários. Um grupo de mobilização online. Tem um site bem específico para voluntariado, que é o Atados, eles nos ajudam. A gente oferece uma vaga: “ó, a gente precisa de voluntário para essa ação, em tal lugar”. E alguém lá se inscreve e participa do projeto.

Solidariedade muito além das cestas básicas

Além das cestas básicas, que é o pilar da nossa organização, a gente oferece materiais de segurança de trabalho – capacete, luva, corda -, damos carrinhos para eles conseguirem coletar e armazenar melhor os produtos que vão coletando. A gente trás também para eles, além da visibilidade, um reconhecimento.

A gente descobriu, através de pesquisa, que os catadores de material reciclável – que a gente vê pelas ruas de toda a cidade – são responsáveis por 90% da coleta de material reciclável do Brasil. Eles são agentes ambientais totalmente desvalorizados.

E são famílias muito humildes, muitas que criaram seus filhos, seus netos na coleta. E que pela primeira vez estão sendo reconhecidos. Pela primeira vez estão sendo vistos como trabalhadores, como pessoas responsáveis. São autônomos, estão ali produzindo sua renda.

Além disso, a gente também faz encaminhamento para a pessoa tirar certidão, identidade, CPF, depois leva para o Bolsa Família, fazer cadastro. Sempre tentando levantar aquela família. A gente dá cesta básica porque a gente entende que a renda que eles tinham acabado de produzir ainda é muito curta, também por causa do preço, que é muito desvalorizado, então a gente dá esse complemento.

A gente quer que eles tenham o direito assegurado, que é o Bolsa Família. E é incrível que até hoje a gente encontra famílias que não têm o Bolsa Família.

No centro do Rio de Janeiro, que é uma cidade grande, capital, e ainda tem gente sem RG, CPF. A gente vai lá e ajuda, aí eles tiram. As crianças precisam estar na escola, então os pais dão atestado de que estão na escola, lá da Secretaria direitinho. É uma exigência nossa, e isso vai trazendo mais senso de responsabilidade para eles também.

Credibilidade

A gente conseguiu, mesmo sendo um projeto social em que você precisa fazer o depósito em uma conta que é um CPF, uma pessoa física, a credibilidade das pessoas cresceu muito com o nosso projeto. Muito, muito, muito.

Eu posso dizer que em oito anos é a primeira vez, agora, mês passado, que a gente conseguiu o apoio de uma empresa, que deu para a gente 314 cestas básicas. Isso foi um marco para a nossa história.

Eu, que sou o Caio, sou fundador do projeto e sou administrador. Eu trabalho com administração de empresas. Então para eu estar no projeto faço questão de ter transparência financeira. “Olha, esse é o nosso extrato bancário. Isso é o que aconteceu na nossa conta. O que saiu, o que entrou, é isso”. E isso fica disponível para todo mundo responder, palpitar. Que afinal a gente também não pode esquecer que é pessoa física.

Acho que até agosto isso muda, do papel de ONG, já crescemos muito, muito, muito, precisamos realmente criar um novo formato, mais profissional, mais maduro, até para que a gente consiga ter mais ajuda de empresas.

Café da manhã, gincana, oficina

Um evento que a gente faz sempre no segundo sábado do mês acontece da seguinte forma: a gente recebe os cadastrados e eles participam do café da manhã. Normalmente tem…tinha, antes da pandemia, uma gincana de empatia, de entrosamento, de voluntários, em que as pessoas assistidas tinham oficina de penteados afro, para as mulheres, os homens, se sentirem belos, se identificarem como belos mesmo, aumentar a auto estima. Oficina para crianças, para pais ficarem à vontade lá. E ao fim desse evento, que dura a manhã toda, os voluntários chegavam oito horas da manhã e vão sair uma hora da tarde. E no tempo ocorrem oficinas. Ocorriam…antes da pandemia. Isso motivou muito.

Durante a pandemia, a gente precisou mudar o formato da gincana. Se não me engano, nossa oficina foi dia 14 de março, então a gente ainda tinha acabado de entrar ali, mas aconteceu – talvez por não saber exatamente o que era aquilo – acabou acontecendo. Em abril, nós já dispensamos o café da manhã e as oficinas. Nos concentramos apenas em fazer o cadastro, revisar os dados das pessoas e entregar cestas básicas. E desde então tem sido apenas isso. Sem café da manhã. Para diminuir também o número de voluntários. A gente ainda precisa deles, mas conseguiu reduzir bastante o número de voluntários participando.

Reduziram o quilo do plástico em 50%

Em abril, eram 60 famílias. Por causa da pandemia, a gente aumentou para 90 famílias. Porque eles ficaram sem renda. Os ferro velhos estavam fechados. Os pouquíssimos que abriram reduziram o quilo do plástico em 50%. E foi só diminuindo, diminuindo. Um valor que já é muito precário foi reduzindo ainda mais.

Agora em julho a gente conseguiu dar duas cestas básicas por família. Conseguimos apoio, além de duas cestas básicas, para dar um vale alimentação, para eles irem no mercado, para eles terem autonomia de comprar o que quiser no mercado. Biscoito para criança, leite, bolo, terem essa oportunidade também, não só ficar recebendo cesta básica, eles poderem escolher. E também estamos com um projeto para em setembro entregar um cartão de renda mínima, que a gente conseguiu com o projeto Pimp My Carroça, Cataki, que também apoiam trabalhadores autônomos catadores de material reciclável. Então vai ser um cartão de R$650, acho que 67 famílias foram aprovadas para receber. Para receber foi uma triagem muito grande.

A gente faz hoje parceria com ferros velhos. Os ferros velhos indicam pessoas, seu José, dona Maria, eles vendem aqui, de fato eles são catadores. Porque ainda mais em tempos de pandemia, muita gente desempregada, muita gente realmente necessitada, se fazia passar por catador. E como a gente é muito pequeno, não somos nem uma ONG, somos um projeto de amigos ainda, a gente se concentra em catadores. Nós queremos atender catadores. Não podemos ainda talvez salvar todo mundo. Então a gente foca ali nos catadores, talvez a grande parte esteja com a gente desde o início, isso é muito significativo para a gente.

“Olha, eu não preciso mais da cesta básica, posso abrir minha vaga para alguém”

É muito bacana quando uma pessoa consegue emprego, por exemplo, e ela vem até a gente e fala “olha, eu não preciso mais da cesta básica, posso abrir minha vaga para alguém, consegui um emprego bacana, qualquer coisa, se eu precisar voltar eu volto, tudo bem”. Eles têm esse senso de importância, sabem a dificuldade que é para dar todo mês o valor necessário.

É no sábado, né, e na sexta-feira à noite a gente teme não bater, mas a gente sempre bate. Nem que seja sábado de manhã aparece algum dinheiro, bate. Para render mais o dinheiro, a gente não compra cesta básica pronta. A gente vai no Atacadão, vai no mercado de atacado, compra produtos para a nossa cesta, até porque a nossa cesta é muito diferenciada, vai ter absorvente para as mulheres, vai ter produto de higiene, hoje vai ter detergente, vai ter água sanitária, justamente para conscientizar sobre a limpeza na pandemia.

A gente percebe muita preocupação dos catadores. Todos – podemos dizer que moram em comunidades, em favelas do Rio de Janeiro – têm a preocupação, mas não entendem total o perigo que está acontecendo. Mas desde abril nós entregamos máscara para eles, então em abril receberam, maio receberam, junho receberam. Para que possam não ter só uma, que possam limpar, trocar, dar para alguém, dar para um filho, a família toda utilizar. Isso é um projeto de educação mesmo, a gente está tentando passar para eles, alertar para eles.

Mesmo sem os eventos, a gente está ali

Está todo mundo com muita saudade dos eventos que aconteciam, da alegria que acontecia. Em junho teria nosso arraia, que é uma baita festa, aluga cadeira, mesa. É uma alegria sem fim. Não vai acontecer, infelizmente. Festa de dia das mães, dia dos pais, que foram inviabilizadas pela pandemia. Mas a gente está ali.

É legal que eles percebem a nossa persistência. A gente está aqui, com voluntários, correndo risco junto com vocês. A gente faz questão de estar aqui, todo mundo se cuidar, todo mundo vir de máscara, para participar aqui é necessário estar de máscara. E acredito que a gente seja muito valorizado por eles. É um afeto, realmente um afeto, que circula ali no nosso meio. E é extremamente cativante. Os voluntários vem e ficam no projeto. A rotatividade de voluntários não é grande, isso é um sinalizador muito bacana. Alguns voluntários de mais idade não puderam participar durante esse processo de pandemia, então os mais jovens estão com a gente nessa força tarefa.

Solidariedade em dias de pandemia

Está sendo tudo diferente do que a gente planejou para este ano, mas, ao mesmo tempo, a gente conseguiu saltar de 60 para 90 famílias. Tudo isso porque a gente ficou com muito medo. “Cara, será que a renda vai diminuir?”, “Tem muita gente perdendo emprego”, “Tem muita gente sendo prejudicada, de verdade”.

Mas aconteceu totalmente o contrário. Isso eu escuto dos nossos parceiros: a solidariedade em dias de pandemia aconteceu muito e os projetos puderam crescer. As famílias que perderam emprego, e algumas que já tinham sido catadoras voltaram a ser catadoras para manter se manter. E puderam ser assistidas pelo projeto. Justamente porque a solidariedade aumentou, a arrecadação aumentou.

Fomento empresarial à solidariedade

A ajuda que as empresas nos deram agora em julho foi fundamental. A gente conseguiu dar duas cestas básicas para os nossos catadores, conseguiu dar renda que eu falei. E nós distribuímos para outros projetos. “Isso já está suficiente. O que a gente faz com isso? Quem está precisando? Quem são nossos parceiros? Há pessoas que fazem um projeto parecido com o nosso e são de confiança?”. Nós conseguimos dar 110 cestas básicas. Isso para mim é emocionante demais. A gente conseguiu fazer muito pelo projeto que eu participo, e ainda fazer muito pelo outro projeto do outro.

Como falei, até março, eu sei o que é juntar dinheiro para 110 cestas básicas. É muito dinheiro: a gente está falando de uns 4 ou 5 mil reais. Uma cesta básica da nossa qualidade, né. Porque no nosso projeto de julho nós recebemos cestas básicas, mas não tinha por exemplo itens de higiene, absorvente, que é fundamental para as mulheres, não tinha fralda, que a gente dá todo mês para as mães, item de higiene, limpeza. Então, com o dinheiro que a gente conseguiu, nós fomos lá e complementamos para que a cesta não diminua o padrão. Nós temos um padrão altíssimo de qualidade, vamos manter esse padrão.

Pós-pandemia?

O pós-pandemia ainda é uma incógnita para mim, tenho muitas suspeitas. Mas, o que eu posso observar, e quero defender, é que a pandemia nos trouxe uma solidariedade que estava estocada em algum lugar.

Por que esse dinheiro não aconteceu antes? Por que os voluntários não chegaram antes? “Então, no pós pandemia, por favor, não vai embora, que a gente vai continuar precisando de vocês”. Porque a gente não quer sair de 90 e voltar para 60 famílias. E essas 30, vão para onde? Vão fazer o que? Então é uma coisa que eu quero muito focar no projeto, que isso se mantenha.

Nós somos capazes de ser mais solidários. Nós estamos comprovando isso. Os projetos parceiros estão comprovando isso. Mesmo com toda a crise econômica que encostou em todo mundo de alguma forma, a solidariedade aumentou.

Higiene

Acho que no pós pandemia a noção de higiene vai ficar mais apurada, vai ficar mais aguçada. Então, por exemplo, água sanitária, detergente na minha cesta, não quero mais tirar. Não sei como a gente vai pagar isso, mas não quero mais tirar.

E a gente vai aprendendo muito de pouquinho em pouquinho também. Há uns dois, três anos atrás, falaram, uma mulher pediu “será que vocês podem dar absorvente?”. Falei, caramba, lógico que a gente tem que dar absorvente. Há quatro anos não tinha café da manhã. Aí a gente estava na dinâmica do cadastro, de dar a cesta, e uma mulher falou: “preciso ir embora, não como desde ontem, então não estou me sentido bem, preciso ir embora comer alguma coisa”. Cara, se a gente quer que eles fiquem aqui felizes, a gente precisa dar café da manhã para eles, óbvio. Mas passou a ser óbvio naquele momento. A gente aprendeu com eles e desde então nunca mais largou isso.

Saúde

E acho que a valorização da saúde também vai ficar muito marcante no pós pandemia, acho que eles vão valorizar muito mais quando a gente entregar luva para eles, bota de proteção para eles, porque o cuidado com o corpo, a consciência do corpo pode estar mais aguçada. Isso é uma resistência que eles têm muito grande. Queriam só o carrinho, e desvalorizavam itens de segurança. Mas agora, com o medo que eles estão, mesmo não tendo talvez a noção total, eu acredito que vão valorizar isso.

Então para mim são esses dois pontos: a valorização da saúde por parte dos catadores e uma vontade de colaborar, ser voluntário, ajudar projetos que você confie por parte toda a sociedade.

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40 a 59 anos Homem Cis Parda Pós-Graduação Completa Rio de Janeiro

“Como professor de uma escola pública, pude perceber como as aulas remotas serviram para aumentar ainda mais as distâncias sociais”

Inicialmente, a instauração da pandemia trouxe algumas mudanças em meu estado emocional. Fez também com que eu tivesse que me adaptar à nova ordem mundial, instituída pela Organização Mundial de Saúde

Além de lidar com as mudanças que surgiram e com as emoções provenientes desse momento, percebi alterações comportamentais em meus filhos, que perderam o convívio com colegas de escola e aspectos da rotina, como saídas de casa para passeios e viagens. 

Somado à perda de contato com as pessoas, as crianças tiveram que lidar com as aulas remotas. Isso foi complexo para mim também, devido à falta de interação nas salas de aula e outros ambientes.  Apesar das dificuldades, as crianças se adaptaram bem durante esse processo.

Como professor de uma escola pública, pude perceber como as aulas remotas serviram para aumentar ainda mais as distâncias sociais. Devido ao fato de não possuírem acesso à internet, ou até mesmo computador em casa, muitos alunos não conseguiam acessar a plataforma.

Insegurança financeira

Perdi muitas possibilidades de realizar trabalhos devido ao fechamento provisório e, mesmo, permanente de espaços culturais durante o a pandemia. Mas ser funcionário público me permitiu trabalhar em casa e manter o meu salário. Assim, me sinto privilegiado, especialmente diante de tantos profissionais autônomos que perderam completamente os seus ganhos.

Foto montagem com três pessoas olhando através de visores de máquinas fotográficas acompanha relato do professor Alexandre Freitas para a Memória Popular da Pandemia. Relato aborda as dificuldades enfrentadas por ele, seus filhos e estudantes com o fim das aulas presenciais.

Porém, a insegurança financeira permanecia, já que apenas o salário do estado não seria suficiente para manter o orçamento familiar equilibrado. De certo modo, esse cenário profissional instável foi compensado pela necessidade das empresas em se adaptar aos novos desafios impostos, que fez com que passassem a inserir projetos de produção de vídeoaulas e vídeos institucionais de veiculação remota. Isso permitiu que eu pudesse realizar alguns trabalhos extras nessa área.

Retomada das aulas presenciais

Agora é esperar para ver o que nos reserva o próximo ano. Me preocupo bastante com o que ocorrerá com as escolas, no sentido da possibilidade de retomada das aulas presenciais. Pois, apesar das dificuldades referentes a esse processo de adaptação, me sinto inseguro com a ideia de meus filhos voltarem a frequentar uma sala de aula.

Como professor, falo também por mim: sinto muita falta da aula presencial. No entanto, compreendo a necessidade de ainda nos mantermos distanciados, em quarentena, nos preservando o máximo possível. Especialmente, quando há milhões de pessoas em todo o mundo perdendo suas vidas por causa desse vírus. Entre elas, o diretor da escola onde leciono.

Sou solteiro, tenho 46 anos, sou carioca e pai de Artur (de 12 anos) e Olívia (de 6 anos), filhos provenientes de 2 casamentos. Sou professor de Arte da rede estadual do Rio de Janeiro e ministro cursos e palestras sobre cinema e fotografia em diversos espaços culturais, além de realizar trabalhos de fotografia e vídeos institucionais. Anteriormente à pandemia, minha rotina consistia em sair para lecionar na escola e nos espaços culturais e, eventualmente, realizar trabalhos como fotógrafo e videomaker.  Como nos últimos anos os serviços nas áreas de foto e vídeo estavam mais escassos, priorizei o meu ofício como professor, dividindo-me entre os trabalhos e os cuidados de meus filhos, já que possuo uma guarda compartilhada com as suas mães. 

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25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Pós-Graduação Completa Raça/Cor São Paulo

“A população precisava de informações sobre a Covid-19”

A Vila Brasilândia é um distrito localizado na região norte da cidade de São Paulo. De acordo com o último censo do IBGE, realizado em 2010, a região conta com mais de 264mil habitantes. É uma das regiões mais vulneráveis da cidade, onde não há acesso à água encanada para toda a população e à rede de tratamento de esgoto é precária, quase nula. 

O Coletivo ADESS é uma organização da sociedade civil, fundada em 2014, com objetivo de trabalhar a autonomia a partir da geração de renda e economia solidária. Desta forma, a cultura é utilizada como principal meio para alcançar os objetivos. 

A partir de meados de março de 2020, quando a pandemia do novo Coronavírus atingiu o Brasil, nós da Brasilândia passamos a perceber nossos colegas e familiares adoecerem e morrerem da nova doença. Além do risco da Covid-19, a pandemia escancarou a grande desigualdade existente no nosso país.

Já nos primeiros levantamentos, realizados pela Prefeitura de São Paulo, era possível ver a calamidade sobre os índices da mortalidade e de pessoas infectadas. Nossa região foi apresentada por semanas seguidas como a que mais tinha óbitos na cidade de São Paulo pela nova doença.

Quem mais sofreu com a pandemia foi a população que já tinha seus direitos negados, passamos a sentir fome e não pudemos nem enterrar os nossos.  

População carente

Naquele momento não contávamos com o apoio do governo, tampouco tínhamos auxílio emergencial. Apenas com a coragem, iniciamos nossa distribuição de cestas compostas por alimentos, produtos de limpeza e higiene pessoal. E também, claro, de máscaras de tecidos. Dessa forma, passamos a atender mais de 600 famílias por mês. Tudo isso apenas com apoio de amigos e de outras Organizações e Movimentos Sociais.  

Quando a gente recebia muitas unidades de alguma coisa, trocávamos por algum item que não tinha mais. Fizemos assim com máscaras e álcool em gel.  

Além de comida, as pessoas precisavam de informações sobre a Covid-19 e sobre o que o Governo estava fazendo em relação ao enfrentamento da pandemia. Para ajudar, nesse sentido, utilizamos da estratégia de colagem de lambe-lambe e de carros de som pelo bairro, com informações sobre a doença e ensinando a população a se prevenir.  

Além de informação sobre a pandemia, as pessoas clamavam por distração. Por isso também entregamos livros para as pessoas romperem as barreiras do isolamento, de certa forma. Apoiamos também os trabalhadores da saúde que estão atuando na linha de frente contra a Covid-19, levando uma carta escrita por alguém do Brasil especialmente aos profissionais da saúde.  

É assim que a favela, a comunidade, faz. Trocamos quando podemos, mas sempre dividimos. É assim que a favela sempre se sustentou e é assim que a favela vai seguir.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Homem Cis Prta

“Sendo uma bixa preta afeminada, eu já havia vivenciado outros contextos de isolamento social”

Sendo uma bixa preta afeminada, eu já havia vivenciado outros contextos de isolamento social. Entretanto, o isolamento social enquanto única alternativa de proteção contra a Covid-19, durante uma pandemia que tem matado milhares de pessoas no mundo todo, acarreta outras questões. Interpela o contexto socioeconômico, a saúde do corpo e da mente. 

Sendo uma pessoa preta e gay, estou inserido em populações vulnerabilizadas pela sociedade há bastante tempo. De alguma forma, vivenciamos os impactos de isolamento social pelo Estado na negação de nosso acesso aos direitos básicos, principalmente, no que se refere à segurança e à saúde.

Com a pandemia, as desigualdades sociais ficaram mais evidentes para muitas pessoas – mas nunca foram uma novidade para a gente. Temos visto que as principais vítimas da pandemia são justamente as populações mais vulnerabilizadas de sempre. Nem mesmo a pandemia e o isolamento empacaram os números que apontam para o genocídio da juventude negra e de pessoas trans e travestis.

Atividades suspensas, renda suspensa

Eu trabalho nos setores que foram os primeiros a parar por conta pandemia. Sou professor numa escola municipal, que teve as aulas suspensas assim que o primeiro caso foi comprovado em Salvador. Além disso, atuo como produtor artístico e cultural, e tive que cancelar e paralisar projetos voltados para a cena cultural por conta da pandemia.

Pessoalmente, além de ser considerado grupo de risco (o que me deixa muito afetado psicologicamente, com medo de ser contaminado de alguma forma, mesmo tomando todos os cuidados necessários), a questão econômica é um dos fatores que me preocupa. Não tenho um emprego fixo e dependo das atividades que foram suspensas.

Artvismo em contexto de isolamento

Sou um dos idealizadores do Coletivo Afrobapho, um grupo formado por mais de 15 jovens negros LGBT das periferias de Salvador que utilizam as artes como ferramenta de mobilização social e Artvismo. Nós atuamos com ações presenciais como performances, shows, intervenções urbanas, etc.

Com a pandemia, paralisamos as atividades artísticas e culturais. Inclusive, a produção de conteúdo audiovisual. Temos utilizados os aparatos tecnológicos e digitais para comunicação e até mesmo como forma alternativa de continuidade das atividades que desenvolvemos.

Estamos seguindo todas as orientações de isolamento social que a Organização Mundial da Saúde (OMS) determinou. Nesse período, temos recebido alguns convites de trabalhos online e tentado os auxílios governamentais para sobrevivência.

Que normalidade?

Vejo muita gente falar de um “novo normal”, de uma “volta à normalidade”. Mas nós, corpos dissidentes, sabemos que o problema sempre esteve nesse conceito do que é considerado normal nessa sociedade racista e LGBTfóbica.

Entre utopias e distopias, desejo que o pós-pandemia não seja tão caótico para as populações mais vulnerabilizadas. Sabemos que é a base da pirâmide social que vai ter que segurar o rojão do processo de recuperação socioeconômica. São os corpos dissidentes que têm construído e proposto novas narrativas de vida, desde muito tempo.

Espero que consigamos resistir e existir em comunhão contra o projeto opressor que tem se reconfigurado a cada época pra nos fazer falhar, pra nos eliminar. Venceremos. 

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta Rio de Janeiro

“Nas prisões, com um surto pandêmico como esse, essa ação do vírus não vai trazer só extermínio”

Eu tive uma passagem em 2010. Começo minha história a partir desse processo. Apesar de haver outros marcos importantes na minha vida, esse vai contribuir muito pra esse relato.

Em 2010, já vivenciando uma vida familiar, acontece um processo de prisão e fico um período de cinco anos e seis meses cumprindo essa medida. Isso trás – para o meu futuro, presente e como fica no passado – muitas recordações, reflexões e questões nocivas. Mas que podem ser construtivas com um esforço próprio.

Quando falamos sobre sistema de prisão, a gente sabe que não funciona. Não trás benefício e sim danos. A sociedade que se debruça em cima das prisões como se fossem resolver todos os problemas sociais. Sabemos que existem diversas questões quando falamos de prisões, que trazem discussões, dores, sentimentos. Temos que ficar bem complacentes, pois são realidades diferentes.

Abordando o assunto prisões, você pode afetar diretamente uma pessoa que acredita que sofreu uma violência e reforçar que o sistema precisa ser assim. Ou pode afetar também outro público, que acredita que as prisões não são o caminho. Mas eu, lidando com essa questão, venho me trazendo muitas reflexões. A partir desse impulso, me trás um despertar para uma realidade, uma urgência.

Somos muito doutrinados, orientados para não enxergar a violência provocada pelo Estado. Conseguimos enxergar a violência que sofremos diretamente, no cotidiano, num furto ou assalto a mão armada, mas as que sofremos historicamente somos educados para não enxergar.

Começando a nos organizar…

A partir desse momento de viver intramuros, no cotidiano da prisão, começo a enxergar do ambiente micro uma questão macro dentro de uma realidade restritiva de direitos. Conseguimos notar como essa dinâmica social reflete diretamente nesses ambientes de privações.

As violências sofridas, não apenas dentro das unidades prisionais, mas antes mesmo de se entrar num sistema prisional brutal. A partir desse movimento, a gente começa a construir em coletivo, tentar se inserir em atividades atividade, incidir politicamente, apesar das restrições. Trazer ideias que poderiam mudar muitas trajetórias e realidades para uma galera que vem sofrendo, sendo massacrada, diluída, pulverizada dentro desses ambientes. E começamos a nos organizar para combater um sistema que vem trazendo reflexos nocivos, então alguns companheiros e eu começamos esses trabalhos.

“Eu sou eu – reflexos de uma vida na prisão”

A partir daí, o “Eu sou Eu” começa a ser construído dentro dessas unidades. Trazendo informações, vínculos familiares para essas pessoas que estavam ali, seus parentes vivendo uma ruptura dentro daquele local e vai potencializando. Alguns companheiros vão progredindo, dando sequência a essa dinâmica.

Nos encontramos na Praça da República, ali no Centro da cidade. Parece um surto de desespero para tentar fazer alguma coisa, sair daquele lugar que foi proposto, só recebendo danos, opressões, repressões.

Queríamos sair daquele lugar e tentar ajudar outras pessoas, porque nossos familiares foram extremamente afetados, a gente viu como é que é um processo de prisão, que não arrasta só um corpo, mas sim corpos. Os que são privados de fato entre concreto e grades e os que ficam privados socialmente e são sentenciados, não por um sistema jurídico, mas por um sistema social que também sentencia muito mais agressivamente do que apenas um bater de um martelo.

E hoje o “Eu sou Eu” está completando três anos, caminhando para quatro anos. Trazendo a realidade prisional que muitas vezes as pessoas não conhecem de fato, que é o dia a dia do cadeado que tranca e o que abre, do confere a visita, saída de uma unidade para outra.

Embora existam muitas pesquisas e pesquisadores debruçados nesse assunto, a realidade e a vivência extrapolam toda essa dinâmica. Trazemos essa visão, tentamos contribuir de alguma forma para que políticas públicas sejam cumpridas, sabendo que estas podem ser violadas diariamente. O Estado não consegue dar conta disso: ou por ser um projeto bem estabelecido, ou porque falhou.

E chega a pandemia

A gente tá vivenciando um momento pandêmico, uma realidade que vem mudando bruscamente, tanto socialmente, como financeiramente, e potencializa a desigualdade.

Quando se trata do sistema prisional não é diferente, já que se torna uma caixinha praticamente intransponível. Várias instituições de controle não conseguem ter muito acesso aos interiores das prisões. A própria secretaria de administração penitenciária tem essa autonomia de gerenciar esses ambientes, e traz informações subnotificadas, imprecisas, inverídicas – como se estivessem cumprindo as determinações penais.

Dentro desses ambientes, com um surto pandêmico como esse, entendemos que essa ação do vírus não vai só trazer um extermínio, mas também vai ser usada como um ferramenta de punição e até mesmo como uma forma de esvaziamento das unidades prisionais.

Porque se a gente tem um serviço de Sistema Único de Saúde (SUS) precário, um sistema na prisão que não funciona, não tem funcionários suficientes que dominam a medicina. Faltam funcionários para realizar o controle de testagem e de notificação. Há muito menos espaço para isolar pessoas contaminadas e de grupos de risco. São arquiteturas totalmente despreparadas, que não foram pensadas em trazer saúde, educação, “ressocialização”.

Temos um número enorme de contágios, mortes que não são notificadas, muitos familiares nem sabem. Enquanto pra muitos faz refletir sua humanidade, para outros é extremamente nociva, genocida. Uma realidade que trás medo, porque é um projeto de uma população específica – eu me incluo nessa estatística de pessoas pretas, faveladas e periféricas – a criminalização da pobreza. Esses espaços estão destinados para essa população.

“Nós por nós”

Nesse momento, sou articulador político e mobilizador da iniciativa Direito a Memória e Justiça e cofundador da associação Eu sou Eu – Reflexos de uma vida na Prisão

Para o futuro, eu vejo que existe a possibilidade quando construímos a partir da nossa realidade, do “nós por nós”, do compartilhamento das nossas dores e fazer disso uma nova conjuntura política com cuidado para não tropeçar nas mesmas questões que o Estado nos empurrou.

Mas com um Estado extremamente capitalista, de narcisismo, fica muito difícil de pensar em dias melhores. Parece que vai continuar essa questão de “ser resistência”.

Pra desfrutar de um futuro mais justo, vai partir de uma política popular, movimentos se unindo.

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“A Covid-19 agravou violações de direitos sofridas pelas pessoas que vivem com HIV”

A Covid-19 agravou as situações de violação de direitos sofridos pelas pessoas que vivem com HIV, porque é profunda a desigualdade social e econômica dessas pessoas.

Por exemplo, a população trans é uma população que vive em grande parte da prostituição. Sem poder ir à rua, muitas ficaram numa situação dramática, sem comida, medicamento, sem condições de se prevenir de DSTs.

Campanhas de prevenção e setor privado

É terrível notar, com a Covid-19 a nível federal, que não temos campanha de prevenção. Aqui no Rio, quem faz a campanha de prevenção que tem mais alcance é O Globo e o Itaú. É o poder privado. O mundo dos negócios é que esta fazendo a prevenção. Isso é muito perigoso, a coordenação é deles próprios, se uma hora eles não quiserem financiar, podem falar:

“Meu negócio é banco, dinheiro, mundo financeiro, tô fazendo isso por um favor. Não quero mais colocar dinheiro nisso”, acabou a campanha de prevenção.

As pessoas ficam desbaratadas, não sabem o que fazer exatamente. Eu critico o pessoal do Leblon que vai para os bares, as pessoas de Campo Grande que não se protegem. Mas temos que nos perguntar o que o Estado tem dado para essas pessoas, onde elas estão se informando.

É na Globo pelo Drauzio Varella – não é esse o caminho. Isso mina a confiança, não trás realmente mudanças no comportamento. E usando somente o poder punitivo, se elas não sabem exatamente o que seria correto. Isso leva à violência e aos estranhamentos que estamos vendo.

Foi porque não se cuidou…

Fora a questão do ônibus cheio – acaba que se a pessoa contraiu foi porque não se cuidou. Isso é um passo para agredir direitos. Uma empresa pode demitir um funcionário que contraiu Covid-19 alegando que “pegou porque não se cuidou”. Mas fez prevenção no local de trabalho? A responsabilidade do transporte urbano com a prevenção deveria ter um posicionamento. O que a Fetranspor, Secretaria de Estado declara? Qual é a sua campanha? Não era apenas da prefeitura e sim em coletivo. 

Neste momento, precisávamos primeiro de uma política de prevenção clara, não essa confusão que está aí. Isso seria fundamental, até como uma maneira de demonstrar cuidado e atenção. Ter as secretarias de estado e município e também do nível federal trabalhando de forma coordenada. Inclusão da sociedade civil nos conselhos.

São Paulo tem um conselho, mas não participa a sociedade civil. Não tem pacientes, familiares. Só empresas participam desse conselho social. E um ou dois cientistas. Aqui no Rio, na prefeitura, a gente nem sabe quem compõe. Isso resulta em bagunça como vimos nos hospitais de campanha que foram prometidos e não foram entregues, roubos, prejuízos para a sociedade. Uma preocupação com os mais vulneráveis, inclusive as pessoas historicamente vulneráveis.

Pessoas que vivem com HIV, ONGs e pressão por políticas assistencialistas

Grande parte das ONGs no campo das pessoas que vivem com HIV está sendo demandada cada vez mais para um posicionamento assistencialista de ofertar cestas básicas. O que é compreensível. A gente entende que essa demanda aumenta muito.

Mas, por outro lado, as ONGs estão muito fragilizadas. E assumir nas costas grandes tarefas de assistencialismo em médio prazo pode ser um problema institucional grave. Por falta de pessoas, de fundos. Fora um abandono de uma agenda de força política e social para mudanças, de agente de mudanças, e não somente um mitigador de problemas.

Sobre a pressão pela questão humanitária, precisamos discutir com eles que isso não deveria substituir a força política e social, capaz de manter políticas democráticas de Estado, como, por exemplo, a distribuição universal de medicamentos. Não é possível trabalhar só com ajuda humanitária, mas sim com força política para manutenção da política de Estado, que é o acesso universal. As populações vão continuar vulneráveis devido a uma crise econômica que não se recupera tão fácil. E hábitos e estilos de vida que será difícil modificar.  

Pós-pandemia e filantropia

No pós-pandemia, precisaremos de uma mudança na filantropia de apoio: alianças, políticas de solidariedade entre as organizações, como projetos intersetoriais – seria muito importante.

Acho que, mais do que nunca, as políticas de solidariedade que o Betinho falou são um desafio de como vai ser a nossa habilidade – enquanto movimentos sociais e sociedade civil – de formar alianças e encontrar denominadores comuns. E ter quem apoie.

Filantropia apoia um tema como meio ambiente, gênero, educação popular. Mas talvez vá precisar de agências que financiem meio ambiente e saúde (como o Betinho deslumbrou uma hora, quando a ABIA 92 participou do Eco 92).

O que tem a AIDS a ver com Eco 92? Na época do Betinho, tinha tudo a ver. Porque as condições ambientais fomentam doenças e favorecem epidemias – elas não surgem porque um vírus simplesmente surgiu. A cultura filantrópica intersetorial ainda é pouca na questão de políticas de solidariedade; mas é essencial para mudar o que queremos mudar. 

“Betinho” é uma referência ao sociólogo e defensor de direitos humanos Herbert de Souza. Betinho foi um dos articuladores da Campanha Nacional pela Reforma Agrária e tornou-se um símbolo de cidadania no Brasil ao liderar a Ação da Cidadania contra a Fomes, a Miséria e pela Vida. Em 1986, depois de saber que convivia com o vírus HIV, ajudou a fundar a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).

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“Assim que as aulas foram suspensas, vivi um terrível período de incerteza”

Desde o surgimento das primeiras notícias sobre o novo vírus em Wuhan, na China, voltei minhas atenções para lá. Por dois motivos. Primeiro, tenho grande interesse em geopolítica. Segundo, porque Campinas tem hoje uma crescente comunidade chinesa, voltada para o comércio de artigos importados de sua terra natal.

O vírus fatalmente deixaria o território chinês, devido ao gigantesco volume de comércio da China com o mundo globalizado, e colocaria populações em risco.

Hoje, sabemos que muitos países do mundo demoraram a entender o que se passava de fato e a Organização Mundial de Saúde (OMS) deveria ter se antecipado à evidente pandemia.

Aulas suspensas e ensino remoto

Durante o início do ano letivo, nas aulas, eu tratei com os estudantes sobre o que eram vírus e das relações do Brasil e do mundo com a China. Já havia um clima de apreensão.

Assim que as aulas foram suspensas, vivi um terrível período de incerteza.

Para “salvar” o ano letivo, o governo de São Paulo cria um plano de atendimento online na educação, com aulas ou atividades através de plataformas online, seguido por muitos municípios. Ação de êxito contestável, num país onde as pessoas têm dificuldade de fazer todas as refeições, em que celulares e computadores, quando se tem, muitas vezes são de uso coletivo nas famílias.

Famílias essas que já enfrentavam problemas como o desemprego. Muitas vezes, colocadas em risco em nome de um falso empreendedorismo, pois as poucas alternativas são entregar fast food e ser motorista de aplicativo, sem direito trabalhista algum.

O decreto sobre o isolamento social autorizado pelo STF mostrou como o governo federal estava perdido e descuidado do povo.

O Auxílio Emergencial, que deveria amenizar o sofrimento, acabou sendo mais um problema. A demora para os saques e ausência de liberação pelo aplicativo acirraram ainda mais as desigualdades.

O negacionismo é algo muito assustador aqui no Brasil: governantes, profissionais de todas as áreas e a população leiga disseminando absurdos, saindo de casa sem necessidade, não usando máscara, atacando imprensa e profissionais de saúde. Isso mostra como somos um arremedo de democracia e na verdade pouco solidários.

Ressalto que fiquei de início, cerca de um mês e meio, sem sair de casa, sem ver familiares, namorada e amigos. Aliás, ainda saio só mesmo só for imprescindível.

E, por fim, me solidarizo diariamente com as famílias dos muitos milhares de mortos que infelizmente teremos.

Que venham logo as vacinas.