“Precisei de ajuda para me inscrever no site para receber a vacina”

Fotografia preto e branca de Sebastião Moreira recebendo a vacina contra a Covid-19 acompanha relato "Precisei de ajuda para me inscrever no site para receber a vacina" para a Memória Popular da Pandemia.

Memória de Sebastião Moreira

Missionário do Conselho Indigenista (Cimi) - Cuiabá, MT
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A minha vez de receber a vacina foi tranquila. Fiz a inscrição em um site de vacina mal feito. Precisei pedir ajuda, pois não entendo muito de tecnologia. Tive que mudar de mês a mês até chegar em julho de 1954. Imagina o tanto de clicada que eu tive que dar! 

Em print, é possível ver o site de vacinação contra a Covid-19 da Prefeitura de Cuiabá. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Site da Prefeitura de Cuiabá

Os meus filhos moram com a minha ex-esposa em Florianópolis. Um deles deu muita risada quando contei a minha experiência com o site de vacina. Ele ainda disse: “Pai, se a prefeitura quiser, eu arrumo esse site pra eles.” Pensando bem, até o meu casamento de 30 anos acabou devido a essa minha vida de militância…

Tomei a primeira dose no dia 16 de abril de 2021. Fui de carro próprio com uma amiga para a fila do drive thru, no Memorial Papa João Paulo II, em Cuiabá. Foi tranquilo, apesar da longa fila. No total, fiquei cerca de uma hora esperando para me vacinar. O pessoal que atendeu a gente é extremamente atencioso e paciente. São muito legais os servidores da saúde.

Sem nome no site de vacina

Já saí de lá com a data da segunda dose no meu cartão de vacinação. Ficou marcada para o dia 15 de maio. No entanto, faltando dois dias, o meu nome não aparecia no site de vacina da Prefeitura de Cuiabá. Só veio aparecer três dias depois, o que atrasou a minha segunda dose para o dia 18 de maio.

Fico imaginando como foi para as pessoas que não têm acesso à internet acessarem aquele site de vacina…

Esperei por cerca de uma hora para receber cada uma das doses da Coronavac. Na primeira, senti uma leve dor de cabeça que aparecia toda vez que eu me lembrava da vacina. A dor durou umas 30 horas, e depois passou. Já na segunda dose, não senti nada.

As vacinas demoraram muito no país inteiro. Ainda hoje, a nossa população não está imunizada. Por isso, estamos pagando um preço muito caro, com quase 600 mil mortes. Sendo que muitas delas poderiam ter sido evitadas se o país tivesse levado a sério a questão da vacinação, bem como todo o protocolo recomendado pela Organização Mundial da Saúde

Foram muitas perdas para a Covid-19

A pandemia afetou a minha família em casos de Covid-19, mas não teve óbito. Tive uma febre muito forte e dor de cabeça. No entanto, fiz uns remédios caseiros e me senti melhor. Fiz o teste para detectar o motivo na Bioenergética e deu positivo para a Covid-19. 

Em foto, é possível ver Sebastião sentado em um banco de madeira embaixo de uma árvore acompanhado de onze indígenas em aldeia. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Acompanho 8 povos indígenas no Araguaia

Foi no trabalho com os indígenas que tive muitas perdas, pois muitos dos que conheci faleceram de Covid-19. Um dia, um amigo do povo Rikbaktsa (terra Eribaktsa, do município Brasnorte) mandou mensagem dizendo que estava indo fazer o teste. Deu positivo. Então, ele veio pra Cuiabá. Não demorou muito e ele faleceu.

Outra perda foi a do cacique Matias, do povo Kayabi (terra Kayabi Abiaká, município de Juara). Foi o primeiro povo que me acolheu, em 1979, quando passei a morar em terra indígena. Sai de lá em 1985. Essa região concentra três povos. Na margem direita do Rio dos Peixes, ficam os povos Abiaká e Munduruku, e na parte esquerda, os Kayabi. 

Em foto, é possível ver o cacique Raoni apertando as mãos de Sebastião, que está de camisa vermelha. Os dois estão se cumprimentando e sorrindo. Há outras duas pessoas em segundo plano, um homem e uma mulher. No primeiro plano ao lado de Raoni, aparece parte do rosto de uma indígena de cocar azul que observa Raoni e Sebastião se cumprimentando. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Com o Cacique Raoni

Acompanhei a situação dos povos de perto em contato com o Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (DSEI) e com universidades e institutos federais. Conseguimos álcool, sabonetes, máscaras…

Muitas vezes, lideranças ligavam pra mim contando da tristeza que é essa doença. Porque quando ela chega, todo mundo sofre, pois todos são ameaçados. Além disso, quando um morre na aldeia, as pessoas não podem fazer os rituais sagrados. Isso causa muito sofrimento. Muitos me ligaram chorando. Confesso que eu também chorei muito.  Foi um período de muita dor, muita tristeza. 

Vida inspirada na luta

Eu fui seminarista jesuíta. Sou de uma família tradicional mineira e fui criado na roça. Desde o início, estive na linha de teologia e libertação. Mas, esse negócio de vida religiosa começou a me perturbar. Eu vivia no interior de Nova Denise, em Mato Grosso. Vim pra Cuiabá em 1977 e comecei a estudar, porque eu queria entrar na vida religiosa e pensei em ter uma experiência fora, de conhecer a cidade, antes de entrar para o Seminário. Aqui, em Cuiabá, tínhamos trabalhos sociais ligados a igrejas em bairros, na luta por resistência e moradia.

Em foto, é possível ver uma foto do rosto de Sebastião de quando ele tinha por volta de 30 anos. Ele olha fixamente para as lentes da câmera. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.

Participei da fundação do PT em Cuiabá, em 1979. Foi, então, que eu conheci o pessoal do Conselho Missionário Indigenista (Cimi). Assim, passei a fazer parte. Mas, como eu queria ser padre, no segundo semestre de 1982, fui para o Seminário no Rio Grande do Sul, na cidade de São Leopoldo. Em 1983, fui para o noviciado em Cascavel, no Paraná, onde fiquei por um ano.

Em seguida, voltei para as aldeias Tatuí do povo Kayabi, Mayrob, do povo Abiaká e Nova Esperança, do Povo Munduruku. Passei a morar em cada uma dessas aldeias durante um tempo e saí de lá em 1985. Eu procurava se havia sinais de indígenas sem contato, pois havia história de índios que ainda não tinham sido encontrados. Encontrei alguns sinais, apenas. Peguei malária por 13 vezes. Depois, em Cuiabá, em 1986, entrei na coordenação do Cimi Regional. 

Fake News

Quando chegaram as vacinas, muitas pessoas tiveram uma certa resistência, devido a um monte de fake news, em sites e redes sociais, e por conta da influência evangélica. Tem um rapaz, formado e muito meu amigo, que me ligou à noite contando que não tomou a primeira dose, porque ficou em dúvida. Ele só tomou a primeira dose quando viu pessoas sendo vacinadas com a segunda, para ter segurança. Fico abismado, surpreso, de ver uma liderança esclarecida, com formação superior, sendo do Conselho de Saúde e professor, ficar em dúvida devido às influências externas.

Ele só me contou isso porque é meu amigo, mas me disse também que 30% da população de muitas aldeias teve a mesma atitude dele, por desconfiança. A gente conversou e ele me contou que ficava em dúvida diante das fake news. As pessoas acabam confusas diante de tanta influência negativa. Essas questões são tão fortes que influenciaram uma pessoa como ele. 

Desde a pandemia, nós do Cimi não vamos às aldeias. Antes, ficávamos lá por um mês, mas depois isso mudou. Desde então, a gente tem realizado reuniões virtuais, que são as articulações dos povos da região. Daqui de casa, acompanho oito povos indígenas do Araguaia. 

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