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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Prta

A pandemia me machucou bastante

Quando a pandemia ainda não tinha chegado ao Brasil, eu já estava acompanhando as informações, por ser jornalista. E os dados que nós temos hoje sobre a pandemia são levantados pelo observatório de imprensa. Isso evidencia a importância desse ofício, tão atacado pelo governo vigente. Em 2019, eu atuava como assessor parlamentar de um deputado, que não se reelegeu e, por isso, fiquei desempregado.

Tenho 31 anos, nasci em Salvador, que é uma terra que eu amo, mas que não me ama. Digo isso por uma série de questões estruturais.: sou cristão, filho de pastor – mas costumo dizer que sou um cristão sem frescuras, porque eu bebo, xingo, fumo, transo e acredito em um ser que não me julga por essas questões. Tenho uma fé que, acima de tudo, acolhe e aceita as diferenças. 

Sou jornalista e, apesar de saber, me esforçar e receber feedbacks sobre a minha competência profissional, eu ainda carrego um complexo de inferioridade que me atrapalha bastante, mas que não me impede de realizar. Sou cantor, compositor, músico… também sou ativista, de vez em quando – porque ativismo não paga boleto. Desde cedo, o que me fez ser taxado como “rebelde” foi o fato de eu nunca ter aceitado a missão de ser exemplo. Eu nunca quis ser exemplo de nada – e meus pais queriam que eu fosse. 

Laços de família

Normalmente, só falo com as pessoas que tenho intimidade. Minha família era muito humilde. Lembro que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, meu pai ficou desempregado. Eu e meu irmão fomos matriculados numa escola em tempo integral, que ficava do outro lado da cidade. Acordávamos às 4 da manhã e chegávamos em casa às 20h/21h. Sem dinheiro para pagar passagem, subíamos no ônibus pela parte de trás, com o caderno dentro de um saco, e descíamos em um ponto muito distante e completávamos o trajeto até a escola caminhando.

Era um processo delicado. Na escola, me batiam e praticavam bullying comigo – em um tempo que nem se chamava de “bullying”. Aturei essas situações por algum tempo, até que um dia eu me revoltei e a introspecção se tornou violência. Passei a revidar as agressões. Apesar de gostar de estudar, eu não era estudioso, porque eu assimilava o ambiente da escola a algo parecido com uma cadeia. Ainda assim, passei a me envolver com o grêmio estudantil. 

Perdi vários anos na escola – era reflexo de eu estar tentando me encontrar em casa e me encontrar em meio aos questionamentos que a sociedade fazia sobre mim. Minha mãe faleceu em 2014, vítima de um infarto. E eu presenciei a passagem dela. Tínhamos acabado de chegar da igreja, ela tinha pregado naquele dia. Ela pregou sobre um texto que dizia:

“Deus amou o mundo de tal maneira que deu Seu Filho unigênito para que todo aquele que Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.

E nesse dia ela pereceu. E eu questiono a morte da minha mãe até hoje, porque sempre fui um ser questionador. Meu maior exemplo de fé era a minha mãe e de conduta cristã, o meu pai. A rigidez do meu pai me tornou mais introspectivo. 

Eu trabalhava no Pelourinho antes da pandemia

Eu trabalhava no Pelourinho como cinegrafista de turismo. Um amigo, que foi recrutado no colégio, pelo Gapa, para um processo de formação, me falou sobre a capacitação. Eu quis participar, mas já não havia mais vagas – mesmo assim, insisti. Após o curso, me tornei arte educador, trabalhando com música, através do hip-hop, e foi no Gapa, através das oficinas temáticas, que eu comecei a me enxergar enquanto pessoa preta, e perceber as diferenças de raça, de gênero e tudo mais que existia e ainda existe. 

Passei a estar muito mais atento aos preconceitos. Cheguei a cursar o técnico em música na UFBA e saí de lá, justamente, porque sentia que as pessoas tinham um pensamento muito elitista. Quando ingressei na faculdade de jornalismo, passei por dificuldades. Ia de bicicleta, ou tentava entrar no ônibus sem pagar, negociava com o motorista. Eu ainda não entendia muito do que se passava, mas a maneira como as pessoas me liam era consequência do racismo, dessa ideia de que o homem preto não tem sensibilidade. 

Quando namorei com uma mulher negra de traços finos, lida pela sociedade como branca. Eu, mais retinto, de cabelo crespo, traços negroides, enfrentava um tipo de preconceito, que eu nem sabia que era preconceito, quando perguntavam se eu era o segurança dela. Hoje, em outro relacionamento há 7 anos, ainda sinto essa falta dessa aceitação social. 

Do carnaval à pandemia

Como, na comunicação, eu tenho bastante possibilidades – trabalho com audiovisual, fotografia, jornalismo “convencional” e mais uma série de coisas – busquei trabalho como freelancer. Cheguei a participar da cobertura do carnaval para a Secretaria de Turismo. No penúltimo dia de carnaval eu me tranquei em casa e não saí mais – somente para o que era essencial. 

Moro com meu o irmão, mas nós sequer nos vemos. Eu passo o tempo dentro do quarto, e ele tem uma rotina de trabalho de uma média de 9h – do trabalho ele vai para a academia e quando chega, eu continuo no meu quarto. Segui isolado. A única pessoa com quem convivi durante quarentena foi a minha namorada, que, em home office, foi ficar comigo, não na minha casa, mas no meu quarto. Isso foi muito doido, porque a gente se conhecia, mas não tão intensamente – não dividindo por tanto tempo o mesmo ambiente. 

Eu sou um cara muito ativo, mas me vi mais uma vez ficando introspectivo, porque estava sem saber como lidar com essa fase de autoconhecimento, na qual eu conheci partes de mim que não gostei. Na mesma proporção em que eu desgostava da minha própria personalidade, eu passei a só olhar para mim, não conseguia enxergar a minha companheira. Estávamos afastados de tudo. 

Tive que depender do auxílio emergencial

O desemprego, que me forçou a depender do auxílio emergencial, também foi um fator de incômodo. Eram conflitos internos e externos. Cheguei a viajar quando surgiu uma proposta de trabalho a mais de mil quilômetros de Salvador e era a minha única saída – ou eu ia, ou a situação financeira ficaria ainda pior. Passei pouco mais de um mês fora e voltei. 

O meu maior medo na pandemia foi perder – tanto para o vírus quanto para os desafios da convivência – a pessoa que eu mais gosto depois de mim – a minha companheira. Foi uma fase muito difícil, de muito desentendimento. Mesmo estando no mesmo lugar, ficamos muito distantes. Não conseguíamos mais ter compreensão, cumplicidade. 

Eu venho de um processo de depressão muito grande, então, eu me cuido para não voltar a ter um pico de depressão severa. E tudo isso que passamos, me machucou bastante, porque dói viver isso com quem a gente ama. Mesmo assim, as pessoas me procuravam em casa pedindo ajuda, porque, como falei, sou ativista social – sou coidealizador do Coletivo Social Fábrica de Rimas – e sempre tentei apoiar a comunidade. 

Conseguimos pensar em estratégias, criamos a Geladeira Solidária, uma iniciativa que repercutiu na imprensa e foi copiada por instituições, até mesmo em outras cidades. Quase 800 famílias foram ajudadas por esse projeto.

O desejo de um futuro próspero após a pandemia

Eu quero conseguir construir um futuro para mim no qual eu tenha o suficiente para prosperar as pessoas que eu amo e, se eu constituir uma família, não deixar que eles passem pelo que eu passei. Infelizmente, eu acho que as pessoas sairão dessa pandemia mais egoístas.

Em compensação, penso que as pessoas se olharão mais.

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