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“Apenas uma parte da sociedade ficou protegida dentro de casa”

Relato de Valdemar Vasconcelos, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Para mim, o momento indiscutivelmente tocante não foi quando a pandemia foi formalizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mas foi quando eu vi a sociedade em geral sendo dividida em duas: uma que ficava reclusa e protegida dentro de casa, e a outra que precisava por inúmeros motivos se expor. Eu achei que aquilo era uma coisa muito mal analisada, muito mal cuidada. Foi um impacto que, ainda hoje, eu guardo. Acho que manifestamos, naquela situação, a forma como a gente lida em sociedade até hoje.

Ficou muito evidente que uma boa parte das pessoas tinha que estar na frente, e a outra parte em estado de “proteção”. Se é que isso existiu. Aliás, acabou que isso não existiu, porque é impossível fragmentar a sociedade e colocar um muro na frente dela, e ela não interagir. Mas, sem um julgamento de valores, mas foi impactante ver os ônibus lotados, com uma divisão física, que nem pode-se dizer que é uma divisão de classes, pois muitos, de várias classes precisaram estar nos hospitais, nos caixas, nos Ubers, precisavam fazer entregas por aplicativo. Enfim, sei que outros precisavam estar em casa também. E este muro foi muito chocante para mim. E ainda é.  

“Desafios também podem gerar traumas”

Meu coração diz sempre que todo desafio pode gerar aprendizados, se optarmos pelo aprendizado. No entanto, desafios também podem gerar traumas. Os traumas também, em determinados momentos, podem ser bem-vindos, no sentido de nos frear. É estranho dizer que um trauma é bem vindo, não é bem isso. Enfim, é uma experiência que pode deixar um alerta. 

Minha expectativa, que é meio que um sonho, é que todo esse processo, tudo isso, faça com que a gente olhe para nossa vulnerabilidade. Não com o objetivo de nos sentirmos fracos, mas pra saber que possamos caminhar mais unidos, porque a pandemia veio na experiência deste século, em que a comunicação já estava evoluída a ponto das pessoas se verem e se falarem instantaneamente, por qualquer parte do planeta, por meio de uma videochamada. Porque houve outras pandemias, mas até a noticia chegar… Hoje não, foram fatos horríveis,  aterrorizantes, a começar na Itália,  principalmente, e isso aterrorizou muita gente, gerou muitos traumas. Mas, percebeu-se que não se tratava de se fechar a Itália,  não se tratava de fechar a China, porque era uma questão do mundo lutar junto. 

Então, a minha expectativa é que essa pandemia deixe esse legado, ainda que a humanidade ainda não tenha conseguido, até esse momento da pandemia, olhar numa única direção para todo o planeta, com mesmo cuidado, com mesmo carinho, para que todos possam se proteger. O convite foi esse. A pandemia concedeu um convite muito claro nessa direção. Até o momento isso não aconteceu, inacreditavelmente.  

“Uma oportunidade mal aproveitada de nos tornarmos uma sociedade melhor”

Mas eu acho que o chamado ficou e ele vai estar nos livros de história do ensino médio, como sendo uma oportunidade mal aproveitada de nos tornarmos uma sociedade melhor. Vejo também como um alerta concreto de que para a sociedade ser melhor, é preciso que a humanidade pense como um todo. Que as apartações, de quaisquer níveis, econômicos, sociais, geográficos, tudo isso, sejam vistas de uma outra forma, de um outro lugar, porque não há mais isso. A tecnologia e a dinâmica atropelam os muros que a gente constrói. A pandemia atropelou todos os muros, ela passou como uma grande tsunami sobre esses muros. 

Qual será o mundo que existirá quando a próxima onda voltar, que será edificado sobre os destroços do Tsunami.

Sou de Minas, mas moro em Brasília desde 9 anos, em 1971. Faço parte de uma família de migrantes, dessas clássicas. Viemos à Brasília buscar uma vida melhor e nos encaixamos aqui e construímos uma vida por aqui. Eu sou ex-funcionário público, pedi demissão, então não me aposentei, e hoje faço parte de uma organização não-governamental. Essa é a minha ocupação atual. Ocupação não remunerada, voluntária. Eu tenho três irmãs, duas sobrinhas netas, três sobrinhos netos. Tenho um filho adotivo e um filho de sangue. Tenho dois netos. Alguns não moram mais em Brasília, moram no estado do Rio. Minha mãe e meu pai já faleceram. Era uma família extensa.

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