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25 a 39 anos Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“A pandemia mostra a face da desigualdade social no país”

Moradores de favelas se organizam para suprir as suas próprias necessidades, mas o governo escolheu flexibilizar colocando em risco toda a população

O novo coronavírus (Covid-19), infelizmente, chegou e vem mostrando durante todo esse ano a face da desigualdade social e do racismo enfrentado historicamente pela população que habita nas favelas e periferias do país.

No Rio de Janeiro é cada vez maior o número de casos confirmados e veiculados pela Prefeitura do Rio, mas sabemos que não é o real, já que os números continuam subnotificados. Sabemos que os testes feitos na rede pública não atende a toda população e a maioria das pessoas que conseguem é porque pagam pelo teste na rede privada.

O fato é que quem vive nas favelas já sabia o quanto sofreríamos com a pandemia, já que é neste local que há ausência de qualquer tipo de direitos. A própria saúde pública ainda é um direito a ser conquistado por essa população empobrecida.

Desde o final de 2019, por exemplo, foram diversos os postos de saúde e clínicas da família fechados, profissionais da saúde foram demitidos ou tiveram cortes salariais, deixando inúmeros favelados e periféricos sem atendimento na atenção básica.

Tem gente passando fome

Com a recomendação do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que toda a população fique em casa e siga as orientações do isolamento social para a diminuição da transmissão do vírus, fez outra necessidade da favela gritar, a fome. Ou seja, esta população se viu num beco sem saída: ou continua tentando trabalhar diante de uma pandemia colocando a própria vida e de seus familiares em risco; ou fica em casa, mas sabendo que vai faltar a comida, o gás, a verba para o pagamento das contas, dentre diversos outros problemas.

Para suprir parte dessas necessidades, esta mesma população tem enfrentando filas dos bancos em busca do auxílio emergencial, nem todos conseguiram se cadastrar, nem todos receberam. E quem recebe, sofre agora com a ameaça de não ter mais esse apoio emergencial por causa dos cortes do governo. Diante de tantos problemas que esta população vem passando, é dever de toda a sociedade apoiar a favela na cobrança de direitos e cuidados por parte do poder público.

A favela vem em todo esse ano tentando se organizar com campanhas de comunicação para prevenção, além da busca de doações de alimentos e materiais de higiene para sobreviver. Mas com a flexibilização ordenada pelos governantes, as doações só caíram e, infelizmente, o nosso povo está sofrendo com estas e outras necessidades como trabalho, recursos, alimentos, remédios, água, habitação, saneamento, dentre diversos outros problemas nunca antes garantido pelas autoridades e que neste ano de pandemia, tudo só fez piorar e deixar velado a face da desigualdade social brasileira.

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40 a 59 anos Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Minas Gerais Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor

“Minha casa e meu espaço de trabalho se fundiram em um mesmo lugar”

Por ser professor do ensino superior, estou, neste momento, trabalhando em home office. Por isso, minha casa e meu espaço de trabalho se fundiram em um mesmo lugar. Tenho tido oportunidade de me dirigir aos meus alunos da minha casa. Sinto que é um privilégio, porque nem todas as pessoas têm condições de poder trabalhar da forma mais segura, sem correr o risco de contato social.

Com isso, percebo um pouco das desigualdades que a gente tem vivido em nosso país. Fatos que a gente registra, sobretudo, no campo das relações raciais. Por exemplo, como negro profissional que está tendo oportunidade de trabalhar em casa, eu me sinto um pouco privilegiado. Porque não são todas as pessoas negras que podem desfrutar dessas condições, mesmo que essas condições signifiquem um trabalho dimensionado de uma maneira muito diferente. 

Hoje o meu tempo de trabalho é absurdamente grande, desde quando eu levanto até a hora em que vou me deitar.

Todo o meu dia está envolvido com questões de trabalho, e é um pouco mais tenso, porque vivo no mesmo espaço. Por isso, a gente tem que criar estratégias para fazer com que este trabalho não signifique uma sobrecarga psicológica.

Contratempos durante aulas remotas

Neste momento, eu tenho uma preocupação muito grande com os meus alunos. Sobretudo com minhas alunas.

Leciono em um curso de pedagogia, e tenho percebido que elas têm enfrentado situações muito difíceis, a começar com as questões de acesso às redes para poder acompanhas as aulas.

Além disso, não são poucas as vezes em que, num momento da aula, algumas das alunas se encontram em trânsito, dentro de um ônibus ou na rua. Aí precisam ligar o celular para poder acompanhar um pouco das aulas. Isso me preocupa, porque sei que o processo de ensino e de aprendizagem precisa de uma mediação maior, em que a gente possa estar mais atento em relação ao desempenho de cada um dos alunos.

O que tenho feito é gravar minhas aulas para que todo mundo possa recuperar depois uma gravação. Assim, todos ficam atualizados em relação aos conteúdos.

Juventude em situação de vulnerabilidade

Além dessa atividade como professor, eu também desempenho a atividade de vice presidente de uma entidade. O trabalho voluntário acontece em uma entidade chamada Associação Profissionalizante do Menor (ASSPROM), que faz uma intermediação entre jovens entre 16 até 25 anos. Essa intermediação é feita ao mercado de trabalho com grandes empresas e nas três esferas do governo.

No entanto, criar oportunidade de vínculo de primeiro emprego para a juventude tem sido muito afetada durante a pandemia.

E essa associação atende exatamente as pessoas que mais precisam ter um acesso ao mercado de trabalho. Houve redução de postos de trabalho, e muitas famílias ficaram em situação de vulnerabilidade ainda maior. Além disso, muitos destes jovens que estão, hoje, sendo vinculados na própria associação, também são, em parte, arrimo de família.

Juventude negra é a mais afetada

Aqui em Belo Horizonte, essa juventude – sobretudo a juventude periférica e negra, homens e mulheres – tem sofrido um impacto muito grande dessa pandemia. Enquanto alguém que está à frente de um projeto social que cria condições que estes jovens tenham uma possibilidade maior ao mundo do trabalho, isso me preocupa.

Porque muitos desses jovens se encontram em estudo remoto, e nem sempre as condições que eles têm de acesso são as melhores. Isso pode significar, daqui para frente, um problema maior no que diz respeito à evasão escolar e à interrupção de projetos de vida.

Sou José Eustáquio de Brito, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, onde leciono na Faculdade de Educação e também na Faculdade de Políticas Públicas.

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40 a 59 anos Homem Cis Parda Pós-Graduação Completa Rio de Janeiro

“Como professor de uma escola pública, pude perceber como as aulas remotas serviram para aumentar ainda mais as distâncias sociais”

Inicialmente, a instauração da pandemia trouxe algumas mudanças em meu estado emocional. Fez também com que eu tivesse que me adaptar à nova ordem mundial, instituída pela Organização Mundial de Saúde

Além de lidar com as mudanças que surgiram e com as emoções provenientes desse momento, percebi alterações comportamentais em meus filhos, que perderam o convívio com colegas de escola e aspectos da rotina, como saídas de casa para passeios e viagens. 

Somado à perda de contato com as pessoas, as crianças tiveram que lidar com as aulas remotas. Isso foi complexo para mim também, devido à falta de interação nas salas de aula e outros ambientes.  Apesar das dificuldades, as crianças se adaptaram bem durante esse processo.

Como professor de uma escola pública, pude perceber como as aulas remotas serviram para aumentar ainda mais as distâncias sociais. Devido ao fato de não possuírem acesso à internet, ou até mesmo computador em casa, muitos alunos não conseguiam acessar a plataforma.

Insegurança financeira

Perdi muitas possibilidades de realizar trabalhos devido ao fechamento provisório e, mesmo, permanente de espaços culturais durante o a pandemia. Mas ser funcionário público me permitiu trabalhar em casa e manter o meu salário. Assim, me sinto privilegiado, especialmente diante de tantos profissionais autônomos que perderam completamente os seus ganhos.

Foto montagem com três pessoas olhando através de visores de máquinas fotográficas acompanha relato do professor Alexandre Freitas para a Memória Popular da Pandemia. Relato aborda as dificuldades enfrentadas por ele, seus filhos e estudantes com o fim das aulas presenciais.

Porém, a insegurança financeira permanecia, já que apenas o salário do estado não seria suficiente para manter o orçamento familiar equilibrado. De certo modo, esse cenário profissional instável foi compensado pela necessidade das empresas em se adaptar aos novos desafios impostos, que fez com que passassem a inserir projetos de produção de vídeoaulas e vídeos institucionais de veiculação remota. Isso permitiu que eu pudesse realizar alguns trabalhos extras nessa área.

Retomada das aulas presenciais

Agora é esperar para ver o que nos reserva o próximo ano. Me preocupo bastante com o que ocorrerá com as escolas, no sentido da possibilidade de retomada das aulas presenciais. Pois, apesar das dificuldades referentes a esse processo de adaptação, me sinto inseguro com a ideia de meus filhos voltarem a frequentar uma sala de aula.

Como professor, falo também por mim: sinto muita falta da aula presencial. No entanto, compreendo a necessidade de ainda nos mantermos distanciados, em quarentena, nos preservando o máximo possível. Especialmente, quando há milhões de pessoas em todo o mundo perdendo suas vidas por causa desse vírus. Entre elas, o diretor da escola onde leciono.

Sou solteiro, tenho 46 anos, sou carioca e pai de Artur (de 12 anos) e Olívia (de 6 anos), filhos provenientes de 2 casamentos. Sou professor de Arte da rede estadual do Rio de Janeiro e ministro cursos e palestras sobre cinema e fotografia em diversos espaços culturais, além de realizar trabalhos de fotografia e vídeos institucionais. Anteriormente à pandemia, minha rotina consistia em sair para lecionar na escola e nos espaços culturais e, eventualmente, realizar trabalhos como fotógrafo e videomaker.  Como nos últimos anos os serviços nas áreas de foto e vídeo estavam mais escassos, priorizei o meu ofício como professor, dividindo-me entre os trabalhos e os cuidados de meus filhos, já que possuo uma guarda compartilhada com as suas mães. 

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25 a 39 anos Mulher Cis Parda Pernambuco Pós-Graduação Completa

“Para nós, mulheres rurais, um dos desafios foi continuar nos articulando”

Antes de mais nada, moro em um município pequeno e para mim esse contexto da pandemia tem sido de grandes desafios:

Desafios quanto a ser mulher chefe de família, quanto a ser mãe de duas adolescentes, desafios enquanto militante em movimentos. Além de desafios frente aos encontros e desencontros da vida.

Acredito que vivemos aqui no Brasil um verdadeiro caos. A maioria das pessoas ignora o fato de estarmos passando por um momento muito sério, em que o vírus da Covid-19 já tirou a vida de milhares de seres humanos.

Durante essa pandemia, para nós, mulheres rurais, um dos desafios foi continuar nos articulando. Com o distanciamento social, nos vimos cada vez mais dependentes das mídias digitais como forma de continuarmos nos comunicando e nos articulando enquanto movimento social. 

Foi a partir daí, das dificuldades de muitas companheiras de não saber lidar com esse mundo digital, que percebi que nós, mulheres rurais, ainda somos totalmente analfabetas digitais e pessoas alheias a esse mundo digital. Mesmo frente a tudo isso, acredito que vamos sair desse período de pandemia mais fortalecidas(os).

Leia também:

“A adaptação não foi fácil. Tive momentos de estresse, nostalgia, e uma sensação de estar dentro de um círculo se fechando ao meu redor” – Andréia das Neves | Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais – Angelim (PE)

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40 a 59 anos Bahia Parda Pós-Graduação Completa

“O que fazer com a comunidade do terreiro, que confia em nós?”

Em março, eu soube que o Brasil estava em pandemia.  Foi um susto para todo mundo. As pessoas começaram a ter sintomas de depressão e nossas comunidades de terreiro começaram a se perguntar:

Como vamos fazer? Vamos esquentar Cavungo ou vamos acalmar Cavungo? Vamos esquentar Obaluaê ou vamos esfriar Obaluaê?

Existiam essas discussões nos grupos. E nada mais que nós pensávamos era simplesmente a gente ter equilíbrio em nossas mentes e voltar para as nossas tradições, para nossos conhecimentos. E isso tem nos provado, porque, até o presente momento, nós não temos remédio eficaz contra a Covid-19.

Então, eu vejo que o melhor remédio nesse momento tem sido recorrer às nossas zonas de mata, aos espaços que não tenham aglomerações de pessoas estranhas a nós, ou pessoas que estejam contaminadas.

Não existe esse pensamento de a gente criar um preconceito, uma discriminação contra quem está com o novo coronavírus. Mas é um momento para as pessoas que estão com Covid-19 terem um cuidado consigo e com as pessoas que estão por perto. Também tem que estar um sentimento de troca e de afetividade. É um cuidado com nossos corpos, para que a gente não tombe. Porque basta de a gente tombar!

A gente já tombou historicamente nos navios negreiros; pela colonização; pela colonialidade do poder, encabeçado por Portugal e as potências europeias, que a gente sabe: não só europeias como potências daqui. Portugal nos escravizou, Portugal nos matou.

A pandemia vem desde o período da colonização do continente africano

Desde o começo, quando vou falar alguma coisa, digo que a pandemia não começou de agora; que esta pandemia nasce desde o período da colonização do continente africano, da colonização da África. Ali, a gente entra em uma colonização histórica; a gente entra em uma necropolítica, a política da morte. É o que tem sido colocado aos nossos corpos.

A gente foi morta. E tem sido morta cotidianamente pelas forças policiais brasileiras. A gente também sabe que tem, dentro das forças policiais, pessoas engajadas no combate ao racismo institucional, ao racismo histórico que sofremos nas instituições públicas.

Quando a gente fala que a polícia foi feita para defender brancos, é isto, justamente. A exemplo da Bahia: a polícia, apesar de ter um corpo policial que é negro, é ensinada a defender um corpo branco. Então é preciso que a gente repense cada dia mais, enquanto comunidades, quais os nossos papéis em defesa dos nossos povos. E cabe a nós, enquanto cientistas sociais – da antropologia, da química, da física, da matemática -, dar educação. 

Redes sociais, povos de terreiro e comunidades tradicionais

É dos saberes e fazeres tradicionais que a gente pensa o que esses momentos de pré-pandemia, pandemia e pós-pandemia nos trarão de impactos no pós-pandemia. Inclusive, na disseminação das redes sociais. O contato continuará a ser muito pelas redes sociais. O que já era antes.

A gente precisa mais do que utilizar essas tecnologias: precisa ver até que ponto essas tecnologias estão favorecendo as nossas comunidades e povos de terreiro. Se essas tecnologias são um vigia do colonizador para nos capturar, ou se elas são um mecanismo de defesa nosso enquanto comunidades tradicionais.

Sempre que eu ouço companheiros, parentes e indígenas, nos é colocado, pelos mais velhos, que a gente não use as tecnologias de forma a esquecer a mente no jogo; acessar o WhatsApp de forma supérflua. É preciso que a gente use o aparelho celular, todo esse aparato tecnológico, para defesa das nossas comunidades, para denunciar os atos de racismo, de intolerância, de perseguição que nós estamos sofrendo.

É importante que a gente sempre esteja atento a essa discussão do racismo dentro, inclusive, deste momento de pandemia. Neste momento, nós, da comunidade Caxuté, por estarmos na zona rural, é importante usar a palavra sororidade, não sei se especificamente neste momento, mas para nós homens negros, índigenas. Não utilizamos de cartão de crédito para oferecer libertação e cura ao coronavírus, como muito pastores de televisão.

Foi muito estranho o começo da pandemia, aquela sensação de que todo mundo ia morrer, pois víamos a mídia, como por ela estávamos sendo alertados. Com a Globo divulgando em grande massa aqui no Brasil, sempre falando da Itália, da China.

Sentimento de insegurança – o que fazer com a comunidade do terreiro, que confia em nós?

De repente, foi o Brasil. E o governo não ajudou em nada. Na gente, aquele sentimento de insegurança. Foi um momento de terror dentro das casas, do terreiro, e dentro das comunidades tradicionais, porque também somos humanos. A gente tem sede, a gente tem fome. A gente é humana, a gente tem sentimentos. As pessoas ficaram nervosas, isso tudo abala o sistema nervoso, tanto do homem como da mulher, e a gente vê as crianças desesperadas. Foram muitos noticiários a respeito do coronavírus, especialistas falando que muita gente iria morrer, pois o vírus é letal.

A gente sabe dos assintomáticos, e cada corpo e cada organismo responde diferentemente. Utilizamos saberes tradicionais, xaropes tradicionais. E nós temos sempre tentado ficar em isolamento social. O que fazer com a comunidade do terreiro, que confia em nós? Sempre ficamos muito tranquilos, pois não agimos como as potências evangélicas do país, que prometem isso e aquilo para a salvação e para a cura. Não utilizamos de cartão de crédito para oferecer libertação e cura ao coronavírus, como muito pastores de televisão.

Quando os terreiros de candomblé começaram a tocar, nós também denunciamos nas redes sociais. Porque no terreiro de candomblé, infelizmente, também temos pessoas que acreditam no desgoverno do presidente Bolsonaro. Logo, o charlatanismo nos persegue; persegue também o Brasil.

A cura

Vemos as pessoas prometendo a cura. A cura nada mais é do que uma cura que vem do nossos corpos, que vem das nossas tradições, que vem pelo afeto; que precisa vir pela ciência. Não há oposição à ciência, mas defendemos sempre que a ela tem que andar com muito respeito com as comunidades tradicionais, pois é lá que buscamos nossos medicamentos, nossas vacinas. Se não fossem nossas folhas, nossas rochas, nossa terra; se não é o ar, o sol, a lua, a gente não tem medicamentos. Assim, precisamos que a ciência aprenda a respeitar as comunidades tradicionais e esses saberes que são repassados a nós.

No pós-pandemia será preciso que a gente se reinvente; é preciso que nossos dogmas sejam repensados.

A normalidade no pós-pandemia, de ensinamento, vem do começo da pandemia: fechamos a comunidade; há pessoas que estão morrendo, jovens estão morrendo. Não poderíamos negar isto ao nosso povo. Fechamos as portas e começamos a ver alternativas. Como o Caboclo sempre diz: “a gente precisa plantar para comer; a gente precisa plantar para sobreviver.” Assim começamos a viver com o que tínhamos na comunidade rural.

O que é normal?

Não acreditamos que voltará à normalidade, pois, o que é normal? Por não ter uma deficiência física, eu sou normal? Por eu não ter um problema psiquiátrico, eu não sou normal? O que não é normal para mim, não é normal para você. A homossexualidade é normal para a comunidade LGBT, mas pode não ser normal para a comunidade hetero. E essa normalidade heteronormativa pode não ser normal para nós que não compartilhamos do mesmo pensamento, já que não podemos permitir um sistema tão sexista, tão misógino, tão homofóbico. Não podemos deixar que essa forma de dominação dos nossos corpos, da nossa vida,  tome conta. A gente não pode deixar as ideologias fascistas tomarem conta da nossa nação. E essa é uma responsabilidade nossa enquanto povo preto; é uma realidade nossa enquanto povos indígenas.

Sempre dizemos na comunidade Caxuté: “Força e resistência. Levante o dedo, pois, se levantarem o dedo para nós, vamos dizer que Marielle existe; que Mãe Bárbara existe; que Mãe Stella existe…”. Queremos falar e temos o direito de falar.

Esse dedo também simboliza o Ogó de Exu; esse dedo sinaliza que é pontiagudo e precisamos, de diversas formas, fissurar esse poder que está aqui, a gente precisa quebrar os muros da colonialidade do poder. A gente não volta a ser normal, coisa nenhuma. Eu, enquanto sacerdote, tenho que me reinventar nesse momento. Então, no pós-pandemia, será preciso que a gente se reinvente; é preciso que nossos dogmas sejam repensados. Nós não podemos ser intocáveis, a gente é humano. Nós somos povos indígenas, somos povos pretos e negros aqui no Brasil.

Que a gente recorra a saberes tradicionais

É preciso que nesse momento de pandemia a gente recorra a nossos saberes tradicionais. Que  agente faça as nossas rezas. Quem não souber o que falar, clame à força que acreditar; pegue quarana, pegue arruda, pegue folhas que você já conhece, boas para rezar. Reze sua casa, sua família. Porque da mesma forma que cada um faz as suas orações, nós temos nossas liturgias.

É preciso que os filhos da casa, do terreiro, das comunidades tradicionais prestem cultos aos nossos ancestrais, às nossas divindades. Do contrário, começamos a potencializar um sentimento de depressão, potencializar o que o colonizador nos diz: que somos fracos.

E, neste momento, de quem é fraco e de quem é forte… Jesus, Oxalá, Lembá e Tupã estão com a responsabilidade de curar o seu povo; ou de matar. Não existe essa força do bem; não existe essa força do mal. Existem dualidades que o cristianismo não permite e que a gente reafirma. Não existe uma religião que seja melhor do que a outra, sem medir forças. É um vírus que atinge a todos, mas principalmente ao nosso povo preto, aos nossos povos indígenas. A gente paga impostos e precisa que os impostos voltem como distribuição de renda.  

“Leva a urucubaca para o lado de lá…”

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25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Pós-Graduação Completa Raça/Cor São Paulo

“A população precisava de informações sobre a Covid-19”

A Vila Brasilândia é um distrito localizado na região norte da cidade de São Paulo. De acordo com o último censo do IBGE, realizado em 2010, a região conta com mais de 264mil habitantes. É uma das regiões mais vulneráveis da cidade, onde não há acesso à água encanada para toda a população e à rede de tratamento de esgoto é precária, quase nula. 

O Coletivo ADESS é uma organização da sociedade civil, fundada em 2014, com objetivo de trabalhar a autonomia a partir da geração de renda e economia solidária. Desta forma, a cultura é utilizada como principal meio para alcançar os objetivos. 

A partir de meados de março de 2020, quando a pandemia do novo Coronavírus atingiu o Brasil, nós da Brasilândia passamos a perceber nossos colegas e familiares adoecerem e morrerem da nova doença. Além do risco da Covid-19, a pandemia escancarou a grande desigualdade existente no nosso país.

Já nos primeiros levantamentos, realizados pela Prefeitura de São Paulo, era possível ver a calamidade sobre os índices da mortalidade e de pessoas infectadas. Nossa região foi apresentada por semanas seguidas como a que mais tinha óbitos na cidade de São Paulo pela nova doença.

Quem mais sofreu com a pandemia foi a população que já tinha seus direitos negados, passamos a sentir fome e não pudemos nem enterrar os nossos.  

População carente

Naquele momento não contávamos com o apoio do governo, tampouco tínhamos auxílio emergencial. Apenas com a coragem, iniciamos nossa distribuição de cestas compostas por alimentos, produtos de limpeza e higiene pessoal. E também, claro, de máscaras de tecidos. Dessa forma, passamos a atender mais de 600 famílias por mês. Tudo isso apenas com apoio de amigos e de outras Organizações e Movimentos Sociais.  

Quando a gente recebia muitas unidades de alguma coisa, trocávamos por algum item que não tinha mais. Fizemos assim com máscaras e álcool em gel.  

Além de comida, as pessoas precisavam de informações sobre a Covid-19 e sobre o que o Governo estava fazendo em relação ao enfrentamento da pandemia. Para ajudar, nesse sentido, utilizamos da estratégia de colagem de lambe-lambe e de carros de som pelo bairro, com informações sobre a doença e ensinando a população a se prevenir.  

Além de informação sobre a pandemia, as pessoas clamavam por distração. Por isso também entregamos livros para as pessoas romperem as barreiras do isolamento, de certa forma. Apoiamos também os trabalhadores da saúde que estão atuando na linha de frente contra a Covid-19, levando uma carta escrita por alguém do Brasil especialmente aos profissionais da saúde.  

É assim que a favela, a comunidade, faz. Trocamos quando podemos, mas sempre dividimos. É assim que a favela sempre se sustentou e é assim que a favela vai seguir.

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40 a 59 anos Branca Mulher Cis Pós-Graduação Completa Rio Grande do Sul

“Me aproximei oferecendo o celular para fazer o pedido de auxílio emergencial do governo”

Moro num apartamento térreo de frente. Os papeleiros vinham pegar o lixo seco. Me aproximei oferecendo o celular pra fazer o pedido do auxilio emergencial do governo.

Muitos não tinham documentos, mas pediam água para beber e lavar as mãos. Então, passei a pegar máscaras com um amigo militante e aproveitava para oferecer.

Às vezes, alguns voltavam com os documentos e eu fazia o cadastro do auxílio emergencial. Assim, passei a ter sempre pão e frios para oferecer.

A rotina dos dias da coleta seletiva tem sido sempre de visita, porque faço o acompanhamento dos pedidos, que seguem “em análise”. Criamos uma rotina de apoio. Dou álcool e máscaras sempre que posso. Conversamos enquanto lavam mãos, ou aguardamos o registro dos dados para acompanhar os pedidos.

Eles me fizeram sentir menos sozinha nessa pandemia. Precisei viajar e fui de coração apertado: como iam fazer pra lavar mãos e acompanhar pedidos de auxílio emergencial?

Quando voltei, o Luís me saudou, dizendo que sentira a minha falta. Ri, e brinquei que ficar sem beber água e de mão suja é bem pior. Ele, meio sem jeito, falou que não era só isso; que era muito bom ter alguém pra conversar.

No pós-pandemia, inverter o sentido

Um dia, quando o isolamento terminar, queria fazer o trajeto de volta às suas casas ou à rua com eles. Saber onde moram e como vivem. Inverter o sentido dos passos que os traz até minha casa para conhecer um pouco mais da cidade que não vemos e não conhecemos.

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40 a 59 anos Branca Homem Cis Pós-Graduação Completa Rio de Janeiro

“A Covid-19 agravou violações de direitos sofridas pelas pessoas que vivem com HIV”

A Covid-19 agravou as situações de violação de direitos sofridos pelas pessoas que vivem com HIV, porque é profunda a desigualdade social e econômica dessas pessoas.

Por exemplo, a população trans é uma população que vive em grande parte da prostituição. Sem poder ir à rua, muitas ficaram numa situação dramática, sem comida, medicamento, sem condições de se prevenir de DSTs.

Campanhas de prevenção e setor privado

É terrível notar, com a Covid-19 a nível federal, que não temos campanha de prevenção. Aqui no Rio, quem faz a campanha de prevenção que tem mais alcance é O Globo e o Itaú. É o poder privado. O mundo dos negócios é que esta fazendo a prevenção. Isso é muito perigoso, a coordenação é deles próprios, se uma hora eles não quiserem financiar, podem falar:

“Meu negócio é banco, dinheiro, mundo financeiro, tô fazendo isso por um favor. Não quero mais colocar dinheiro nisso”, acabou a campanha de prevenção.

As pessoas ficam desbaratadas, não sabem o que fazer exatamente. Eu critico o pessoal do Leblon que vai para os bares, as pessoas de Campo Grande que não se protegem. Mas temos que nos perguntar o que o Estado tem dado para essas pessoas, onde elas estão se informando.

É na Globo pelo Drauzio Varella – não é esse o caminho. Isso mina a confiança, não trás realmente mudanças no comportamento. E usando somente o poder punitivo, se elas não sabem exatamente o que seria correto. Isso leva à violência e aos estranhamentos que estamos vendo.

Foi porque não se cuidou…

Fora a questão do ônibus cheio – acaba que se a pessoa contraiu foi porque não se cuidou. Isso é um passo para agredir direitos. Uma empresa pode demitir um funcionário que contraiu Covid-19 alegando que “pegou porque não se cuidou”. Mas fez prevenção no local de trabalho? A responsabilidade do transporte urbano com a prevenção deveria ter um posicionamento. O que a Fetranspor, Secretaria de Estado declara? Qual é a sua campanha? Não era apenas da prefeitura e sim em coletivo. 

Neste momento, precisávamos primeiro de uma política de prevenção clara, não essa confusão que está aí. Isso seria fundamental, até como uma maneira de demonstrar cuidado e atenção. Ter as secretarias de estado e município e também do nível federal trabalhando de forma coordenada. Inclusão da sociedade civil nos conselhos.

São Paulo tem um conselho, mas não participa a sociedade civil. Não tem pacientes, familiares. Só empresas participam desse conselho social. E um ou dois cientistas. Aqui no Rio, na prefeitura, a gente nem sabe quem compõe. Isso resulta em bagunça como vimos nos hospitais de campanha que foram prometidos e não foram entregues, roubos, prejuízos para a sociedade. Uma preocupação com os mais vulneráveis, inclusive as pessoas historicamente vulneráveis.

Pessoas que vivem com HIV, ONGs e pressão por políticas assistencialistas

Grande parte das ONGs no campo das pessoas que vivem com HIV está sendo demandada cada vez mais para um posicionamento assistencialista de ofertar cestas básicas. O que é compreensível. A gente entende que essa demanda aumenta muito.

Mas, por outro lado, as ONGs estão muito fragilizadas. E assumir nas costas grandes tarefas de assistencialismo em médio prazo pode ser um problema institucional grave. Por falta de pessoas, de fundos. Fora um abandono de uma agenda de força política e social para mudanças, de agente de mudanças, e não somente um mitigador de problemas.

Sobre a pressão pela questão humanitária, precisamos discutir com eles que isso não deveria substituir a força política e social, capaz de manter políticas democráticas de Estado, como, por exemplo, a distribuição universal de medicamentos. Não é possível trabalhar só com ajuda humanitária, mas sim com força política para manutenção da política de Estado, que é o acesso universal. As populações vão continuar vulneráveis devido a uma crise econômica que não se recupera tão fácil. E hábitos e estilos de vida que será difícil modificar.  

Pós-pandemia e filantropia

No pós-pandemia, precisaremos de uma mudança na filantropia de apoio: alianças, políticas de solidariedade entre as organizações, como projetos intersetoriais – seria muito importante.

Acho que, mais do que nunca, as políticas de solidariedade que o Betinho falou são um desafio de como vai ser a nossa habilidade – enquanto movimentos sociais e sociedade civil – de formar alianças e encontrar denominadores comuns. E ter quem apoie.

Filantropia apoia um tema como meio ambiente, gênero, educação popular. Mas talvez vá precisar de agências que financiem meio ambiente e saúde (como o Betinho deslumbrou uma hora, quando a ABIA 92 participou do Eco 92).

O que tem a AIDS a ver com Eco 92? Na época do Betinho, tinha tudo a ver. Porque as condições ambientais fomentam doenças e favorecem epidemias – elas não surgem porque um vírus simplesmente surgiu. A cultura filantrópica intersetorial ainda é pouca na questão de políticas de solidariedade; mas é essencial para mudar o que queremos mudar. 

“Betinho” é uma referência ao sociólogo e defensor de direitos humanos Herbert de Souza. Betinho foi um dos articuladores da Campanha Nacional pela Reforma Agrária e tornou-se um símbolo de cidadania no Brasil ao liderar a Ação da Cidadania contra a Fomes, a Miséria e pela Vida. Em 1986, depois de saber que convivia com o vírus HIV, ajudou a fundar a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).