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40 a 59 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Homem Cis Prta

“Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer”

Meu nome é Lucimar, tenho 44 anos de idade e sou um homem cis negro. Hoje moro em uma casa na Ceilândia Norte-DF, cidade satélite e região periférica de Brasília. Antes, por 34 anos, morei nas ruas desta capital. 

Sai de casa aos nove anos de idade e consegui estudar somente até a 5° série do ensino fundamental: uma parte no Grande Circo Lar e outra na escola Meninos e Meninas do Parque (Brasília/Distrito Federal), onde já adulto aprendi a ler e a escrever. Por último, estudei no sistema prisional, mas ainda não consegui concluir. 

Não tive infância. Nas ruas tive que sobreviver em meio a violência e a crueldade: não havia tantos momentos para lembrar que eu era uma criança, eu precisava ser bruto, porque só assim poderia me manter vivo. 

Hoje sou um trabalhador, tenho sete filhos, sou um homem ainda sob cumprimento de pena, pois infelizmente minha vida no passado se dividiu entre o cárcere e a rua. Nesta última vez de privação da liberdade, fiquei quase sete anos em regime fechado por uma sentença de tráfico de drogas, mas eu não era traficante, nunca fui. Eu era mais um sobrevivente naquela realidade das ruas. 

Assim como todo o meu povo da rua, nos prendem como traficantes. Toda a minha trajetória nas ruas aprendi que a lei somente é aplicada a nós, principalmente em relação ao tráfico de drogas. Eu digo isso porque o povo da rua, os pobres, as pessoas pretas são a maioria nos cárceres.

Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer. Quando tinha TV, a gente acompanhava as notícias e era assustador demais. Foi muita tristeza, angústia e medo de nunca mais ver minha família, nunca mais respirar em liberdade

Pandemia na cadeia

Estes últimos anos, nesta cadeia, foram os anos mais difíceis da minha vida, principalmente os últimos cinco meses quando chegou a pandemia da COVID-19 no mundo. Eu nunca mais quero voltar para aquele lugar, nunca mais quero sofrer tanto por cometer um erro. Não existe justiça, só existe vingança ali.

Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer. Quando tinha TV, a gente acompanhava as notícias e era assustador demais. Foi muita tristeza, angústia e medo de nunca mais ver minha família, nunca mais respirar em liberdade. 

No cárcere, eu fiquei na área reservada para as pessoas com comorbidades por ser hipertenso, mas não havia cuidado. Estávamos isolados e muitas vezes quem tinha a COVID-19 não dizia que tinha por medo de ir para um lugar pior. 

Logo que a pandemia chegou, as visitas foram proibidas e nós fomos submetidos a todo tipo de violação. Todos nós temos direito à dignidade humana, mesmo quando estamos ali naquele lugar, que eu chamo de “depósito de rejeitados”, onde a sociedade não vê valor algum. 

Todo ser humano é maior do que seus erros e não temos o direito de decidir quem vive e quem morre. Em 6 de agosto de 2020 consegui obter uma progressão para o regime aberto (domiciliar) e voltei pela primeira vez para a minha casa, um lugar onde eu vi o amor por mim em cada cantinho, um lar. 

Em todas as vezes que eu vivia na prisão, eu saia sem nenhum pilar para me apoiar e seguia no ciclo rua e cadeia, mas dessa vez foi diferente. Eu encontrei o amor, tanto em minha casa como na rede de apoio que tenho hoje. 

Hoje eu não estou mais só, eu tenho minha família, meus filhos, esposa, sogra, enteado e minha netinha. Ela traz luz para minha vida, ela clareia, ela é a Clara. Eu aprendi o que é amor, eu hoje sei o que é ser amado e amar, respeitar e ser respeitado, agora me vejo realmente como um ser humano. 

Vida em família

Antes, eu não sabia o que era verdadeiramente uma vida em família. Já tive outros relacionamentos, mas eu era jovem, cabeça dura, vinha de uma realidade da brutalidade nas ruas. Eu era muito esquentado e também enfrentava muitas dificuldades para me sustentar. Minha forma de vida não era a correta, mas era a única forma que eu conhecia para sobreviver pois foi assim que eu cresci nas ruas. 

Ao vir para casa, me deparei com a minha esposa desempregada, com minhas duas filhas desempregadas, eu me perguntava o que eu faria já que eu não queria voltar para aquele lugar [cárcere]. Eu estava muito cansado de tanto sofrimento e as limitações que eu tinha, com a falta de estudos, diminuíam as possibilidades de eu arrumar um emprego e ter uma oportunidade de fazer diferente. 

Em meio a pandemia, minha esposa estava sobrevivendo com a ajuda das redes de apoio, coletivos, organizações não-governamentais e movimentos sociais. Foi nesse momento que conheci as Tulipas do Cerrado, uma organização que foi fundada por uma pessoa que hoje é uma das mais importantes em minha vida. Nunca imaginei reencontrar a Juma Santos, que foi uma menina de rua como eu, que eu conheci nas ruas. Eu não imaginava a importância que essa mulher teria em minha vida e da minha família, como suporte, acolhimento, voz forte, amiga, irmã e protetora.

Eles [trabalhadoras e trabalhadores das Tulipas e do Coletivo Aroeira] não sabem, mas me salvaram e me salvam a cada encontro. A cada semana era uma terapia nova: aprendi respeitar as minhas irmãs de caminhada, as trabalhadoras do sexo, que na rua, eu nunca tinha olhado com tanto amor. A palavra é essa (amor) e respeito!

Rede de apoio: trabalho feito por nós para nós

Hoje eu sou muito grato a Deus por ter a Juma ao meu lado. Foi através das Tulipas do Cerrado que eu fui apresentado e incluído no Coletivo Aroeira, que usa a metodologia agroflorestal e a redução de danos como ferramentas de autoconhecimento e cuidado. Ali conheci amigos(as) que eu nunca imaginei ter e mais uma vez eu pude ver o quanto o amor é capaz de salvar vidas. 

Eles [trabalhadoras e trabalhadores das Tulipas e do Coletivo Aroeira] não sabem, mas me salvaram e me salvam a cada encontro. A cada semana era uma terapia nova: aprendi respeitar as minhas irmãs de caminhada, as trabalhadoras do sexo, que na rua, eu nunca tinha olhado com tanto amor. A palavra é essa (amor) e respeito! São mães, são amigas, são guerreiras e eu não as via assim. 

Também entendi que o preconceito destrói a vida das pessoas que são usuárias de drogas e são seres capazes de fazer tudo. Mesmo sendo usuários de substâncias consideradas ilegais, não são zumbis, são meus irmãos e minhas irmãs. 

Eu não sabia a importância dessas redes, mas através desse espaço eu entendi que não é só sobre mim, o Lucimar, Mazinho, velho mar e hoje novo mar. É sobre nós! 

É necessário sempre lembrar e falar que se estou de pé é por causa das Tulipas do Cerrado e Coletivo Aroeira, pois estes lugares são meus portos seguro hoje e me ensinam ser uma pessoa melhor, além de me fazerem refletir sobre como a redução de danos é algo que precisa chegar ao nosso povo, pois só assim não seremos mais mortos e encarcerados por uma desigualdade social que nos aflige. Esse é um trabalho feito por nós e para nós.

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25 a 39 anos Branca Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Trans

“Nunca imaginei que a dona do imóvel onde moro iria pedir uma ordem de despejo”

Sou Beatrys Madelayne, mulher trans branca e trabalhadora sexual. Vou explicar minha situação durante a pandemia.

Com a chegada da pandemia, minha vida mudou. Eu fiquei sem conseguir trabalhar, já que meus clientes ficaram com muito medo de pegar Covid-19. Eu e outras trabalhadoras do sexo que conheço ficamos sem trabalhar. 

Passei por situações muito difíceis,  tendo que vender as coisas de casa para comprar alimentos, pagar meu aluguel e outras contas. Chegou um momento em que eu não tinha mais nada para vender. Hoje, depois de seis meses de aluguel atrasado, a proprietária do imóvel me deu uma ordem de despejo. 

Nessa condição, estou com medo de, a qualquer momento, a proprietária me tirar de onde moro e eu não ter para onde ir. Eu e mais duas amigas trans que acolhi porque, durante a pandemia, elas precisavam de moradia por terem saído da casa de seus familiares.

Tentei alguns benefícios com a ajuda do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) da Diversidade para conseguir me sustentar e tentar me estabilizar, mas o que recebo de benefícios hoje não dá para eu matar a fome de todas nós. 

Ainda assim, fico feliz porque, através do Creas, pude resolver um pouco dos meus problemas e até fiz minha retificação de nome e gênero. Isso para mim era uma das coisas mais importantes, algo que sempre sonhei em ter. É um direito garantido a mim!

Graças a essa ONG, hoje, não passamos fome, recebemos mensalmente uma cesta básica e cesta verde, dentre outras coisas necessárias, como produtos de higiene, cobertores, etc.

Rede de apoio

Devido a dificuldades que vieram com a pandemia, pedi ajuda a uma amiga da terceira idade. Ela me apresentou às Tulipas do Cerrado, uma organização não governamental (ONG) sem fins lucrativos que ajuda, cuida e realiza momentos de convivência com as pessoas da comunidade LGBTQIAP+, população em situação de rua e profissionais do sexo do Distrito Federal e do entorno. 

Graças a essa ONG, hoje não passamos fome, recebemos mensalmente uma cesta básica e cesta verde, dentre outras coisas necessárias, como produtos de higiene, cobertores, etc. Eu e minhas amigas adotamos as Tulipas do Cerrado como uma família, é neste espaço onde nos sentimos acolhidas e amadas, onde podemos sempre desabafar e compartilhar um pouco das nossas vidas, seja em relação aos aspectos positivos ou negativos. Esse é um coletivo que vibra com as conquistas que temos. 

Além da ONG Tulipas do Cerrado e do Creas da Diversidade, tive ajuda recebendo alimentos da Casa Rosa.

Graças a Deus não peguei Covid-19, mas, infelizmente, perdi várias amigas próximas. Tudo isso me marcou bastante. Nunca esperei passar por essas situações. 

Em meio à pandemia, uma ordem de despejo

Nunca imaginei que a dona do imóvel onde moro iria pedir uma ordem de despejo. Até a pandemia chegar eu sempre tinha sido uma boa inquilina e agora, que fiquei em uma condição financeira péssima, ela me trata como se eu fosse lixo. É muito desumano.

Posso concluir essa narrativa dizendo que a pandemia só não mudou quem sou. A minha essência não mudou: eu continuo sendo parceira, sincera, acolhedora. Porém, percebi que as pessoas à minha volta mudaram bastante, ficaram amargas, desunidas.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Prta

“Nesse período eu só sabia chorar”

Sou Elza, tenho 38 anos, sou mulher cis, preta, maranhense, mãe solo de seis filhos. Possuo o ensino fundamental incompleto, sou profissional do sexo e moro há 17 anos em uma cidade no entorno do Distrito Federal.

Com a chegada da pandemia, minha vida mudou muito: tive que encontrar outras fontes de renda e, com o fechamento das escolas, minha filha mais nova, de 11 anos, teve que ficar em casa sem estudar. Foi muito difícil para ela, pois ela tinha muita vontade de voltar a frequentar a escola. 

Tive minhas preocupações e angústias. Eu vi as coisas mudarem do dia para a noite. Quando fui para Brasília trabalhar no centro de uma região administrativa [“bairro”], vi que as lojas estavam fechadas, as ruas vazias, as poucas pessoas que estavam transitando estavam usando máscaras. 

Lembro até hoje da minha primeira máscara, era do Flamengo. Aí veio o medo: usando máscara, as coisas ficaram complicadas. Não havia ninguém na rua, sem clientes, nada. Eu pensei: “O mundo está acabando e eu não estou sabendo de nada”.

O início da pandemia foi bem difícil. Não tive ajuda em nada, nem do Governo. Pelo contrário, eu recebia R$50 de bolsa família e o benefício foi cortado. Fiquei sem água e luz em casa. O gás de cozinha acabou e tive que preparar a comida à lenha no meu quintal. Às vezes, meu pai, que é aposentado, me ajudava com o pouco que tinha.

Filhos em situação de rua

Atualmente, moro apenas com minha filha mais nova. Antes da pandemia, minha filha de 16 anos morava comigo, mas se amigou com um rapaz e foi morar com ele. Posteriormente, esse rapaz foi privado de liberdade e está até hoje em situação de cárcere. 

Essa minha filha ficou um período em situação de rua. Tentei tirá-la dessa condição, me aproximar, conversar, porém, ela tentou me agredir fisicamente diversas vezes e me xingava bastante. Uma situação muito complicada. Sempre tento contato via telefone com ela, mas não tenho resposta. Fico aqui com minha preocupação.

Meu outro filho teve uma crise de saúde mental no meio desse ano (2021) e saiu de casa sem dar notícias. Ele também acabou ficando em situação de rua. Fiquei mais de um mês sem dormir, com muita preocupação, sem saber onde ele estava, como ele estava, até mesmo se estava vivo. 

Nesse período eu só sabia chorar, sem saber o que fazer. Consegui achá-lo e trazê-lo com segurança para casa, mas a crise não passava. Ele ficou um tempo internado em uma Unidade de Pronto Atendimento 24h e, posteriormente, foi atendido em um Centro de Atenção Psicossocial. Meus demais filhos moram no Maranhão com meus pais.

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto

Redes de apoio

Mesmo diante desse turbilhão, tive um grande presente em minha vida: Juma Santos. Eu a considero como minha segunda mãe. Foi a partir dela que conheci coletivos maravilhosos, como a organização não governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que é um grupo maravilhoso que tem me ajudado muito nesse período difícil na minha vida, tem cuidado de mim e da minha família. 

Conheci também a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, outra parceria maravilhosa. Assim como o Coletivo Aroeira. Com eles eu aprendi muitas coisas boas sobre agroecologia como, por exemplo, plantar, colher, fazer sabonete, extrair óleo essencial. 

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto. Me sinto muito abençoada por Deus pela oportunidade de participar desses grupos e por ter conhecido cada pessoa. 

Não consigo encontrar palavras para expressar a minha gratidão a esses grupos pelas várias formas que tem me ajudado, seja com cesta básica e cesta verde, seja com uma escuta, acolhimento, momentos de convivência, trocas de saberes com ensinamentos e aprendizados. Agradeço a Deus e a essas pessoas que chegaram em minha vida para somar e trazer luz.

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18 a 24 anos Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis Prta

“A pandemia me trouxe muito medo, mas me trouxe a esperança”

Meu nome é Sendy. Tenho 22 anos, sou goiana, mulher preta e lésbica. Sou usuária de drogas, filha de moradores de rua, moro em casa alugada na Ceilândia, periferia do Distrito Federal.

Alguns meses antes de começar a pandemia, minha vida estava começando a se alinhar financeiramente, mas, com a chegada do vírus e o distanciamento social, eu acabei sendo dispensada do trabalho. 

Perdi minha mãe muito nova, infelizmente e, com isso, tive muitas responsabilidades desde cedo. Eu e meus irmãos ajudávamos minha avó nos serviços e responsabilidades em casa. Uma das nossas principais responsabilidades era cuidá-la. Minha avó tinha depressão devido ao imenso sofrimento que teve diante das tentativas de tirar minha mãe das drogas e da rua. Infelizmente, essa história acabou em desastre: minha mãe foi assassinada em 2014. 

Na época, eu não conhecia meu pai e com a morte da minha mãe, passei a ter medo de não poder conhecê-lo e esse medo só aumentava com o passar dos anos. Em 2016, minha madrasta encontrou minha irmã e eu pelas redes socias. Ela falou sobre a realidade em que vivia e que meu pai estava privado de liberdade. 

Em 2017, minha avó faleceu. Com isso, eu e minha irmã tivemos que morar com minha madrasta. Moramos juntas de 2017 a 2019, ano em que tentei morar sozinha. Porém, com a pandemia, tive dificuldade em me manter e voltei a morar com elas.

Quando a pandemia começou, em 2020, os riscos do vírus dentro do sistema prisional eram grandes. Por isso, após alguns meses, o meu pai estava em casa morando com a gente. Todos estávamos muito felizes, mas com o vírus circulando e o isolamento social, tivemos que passar a maioria do tempo dentro de casa e com o passar dos meses a convivência foi se tornando complicada. 

A saúde mental de todos estava abalada com tantas dificuldades: dificuldades de pagar as contas em dia; dificuldade de uma fonte de renda fixa…O pouco que conseguíamos receber era para pagar as contas de casa e essa situação ficou assim por um período.

A cada encontro eu aprendo algo com todos, todas e todes. Acredito que da mesma forma aprendem comigo também. É sempre uma troca de experiência e saberes.

Dias melhores virão

Nessa época, a minha madrasta conheceu uma organização não governamental (ONG) Tulipas do Cerrado. Eu sempre via uma alegria muito grande quando minha madrasta falava sobre as Tulipas do Cerrado. Ela sempre me falava que era uma rede de acolhimento entre mulheres, que eu deveria conhecer também. 

Com o passar do tempo, elas começaram a fazer seus encontros de convivência e de autocuidado, seguindo as recomendações de segurança dos Órgãos de Saúde para prevenir a infecção pelo vírus da Covid-19. 

Em um dado momento, decidi participar de um desses momentos. Essa escolha mudou muito a minha vida, positivamente. A cada dia que eu estava junto com as Tulipas, eu tive crescimento pessoal, comecei a ter mais empatia com o outro, olhar para tudo e para todos de uma forma diferente da que eu estava acostumada, estive aberta a entender um pouco da realidade de todas as pessoas assistidas pela ONG: trabalhadoras sexuais, mulheres trans, pessoa em situação de rua, usuários de Drogas, demais pessoas da comunidade LGBTQIAP+. 

A cada encontro eu aprendo algo com todos, todas e todes. Acredito que da mesma forma aprendem comigo também. É sempre uma troca de experiência e saberes. Há alguns meses, estive na minha primeira formação em redução de danos e dali em diante fiquei mais interessada em querer estar mais perto e em ajudar no cuidado de pessoas que conheceram e estiveram junto da minha mãe, na rua.

Hoje faço parte de projetos voltados para o cuidado na perspectiva da redução de danos junto à ONG Tulipas do Cerrado e ao Coletivo Aroeira. O Aroeira trabalha com redução de danos e Agroecologia Urbana. A cada dia me encontro mais nessa caminhada. 

São esses projetos que me ajudam financeiramente para eu conseguir pagar meu aluguel. Como eu tinha dito, a convivência na casa  com meu pai e minha madrasta não estava boa. Conversamos e foi decidido que era melhor eu e minha irmã morarmos juntas em outra casa, pois a situação não estava boa pra ninguém. 

São esses projetos dos quais eu faço parte que me ajudam financeiramente. Posso afirmar que meu ingresso nesses projetos mudou bastante a minha vida. Eles me trouxeram uma melhora pessoal. 

A pandemia me trouxe muito medo de tudo, mas ao mesmo tempo me trouxe a esperança de acreditar que dias melhores virão e que é nisso que temos que acreditar. 

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Superior Incompleto Indígena Mulher Trans

“O preço da comida subiu e eu não tinha condições financeiras para me sustentar”

Me chamo Yessica Andrés, tenho 25 anos, sou mulher trans e vivo com HIV desde meus 13 anos de idade. Sou natural de Buenos Aires,Argentina, e imigrante no Brasil há mais de 10 anos. 

Estou compartilhando o relato da minha história de vida no momento da pandemia pelo Covid-19. Gostaria de relatar como foi o impacto da notícia de estar vivendo em uma pandemia. O HIV está presente em minha vida há mais de uma década, porém jamais esperava viver essa fase de pandemia sem precedentes do Covid-19, um vírus letal. 

Eu tive medo, o pânico assolava minha rede de amizades e trabalho. Para mim, nunca foi fácil viver isolada, principalmente quando fui preparada para viver a vida e “dar a cara para bater”

Mulher trans, soropositiva: viver com HIV pra mim é estar em vulnerabilidade biológica

Por viver com HIV, eu fui expulsa de casa e cresci em abrigo no Brasil até ser maior de idade. Foram muitos “coquetéis” [remédios para conter o desenvolvimento do HIV no organismo] que consumi até chegar neste momento, em que tomo remédios em menos doses e que me ajudam a me manter viva e sem muitos efeitos colaterais. 

Viver com HIV pra mim é estar em vulnerabilidade biológica e me mantendo indetectável eu posso viver com qualidade, sempre com cuidado e atenção. Com HIV, eu já tive muitas doenças sexualmente transmissíveis e passei por tratamentos dolorosos.

Em fevereiro de 2020, eu estava trabalhando no carnaval e tive muito contato com o público geral. Na época, em Brasília/Distrito Federal, não se falava de Covid-19. A partir de março do mesmo ano, começou a efetivação de medidas enfrentamento ao novo vírus, especialmente com o isolamento social e fechamento de comércio e/ou mudanças na forma em que eram ofertados os serviços não essenciais, o que acarretou em desempregos, alterações no formato de ensino em escolas e faculdades, entre outras questões sociais.

No início da pandemia eu estava casada com um homem trans e havia muitos conflitos familiares e brigas, que se intensificaram por conta do isolamento social e da convivência mais próxima. Diante disso, eu me separei. No começo de 2021, eu me casei com um homem cisgênero soro discordante. Fizemos uma linda cerimônia de casamento civil

Pandemia: mudança de ciclos e efeitos colaterais da vacina

Nesse contexto, a pandemia afetou meus estudos. Eu sou estudante de enfermagem de nível superior e fui afastada do estágio por fazer parte do grupo de risco. O estágio na faculdade é feito em Prontos Socorros dos Hospitais Regionais de Brasília e, por isso, eu deveria atuar na linha de frente do Covid-19. Com isso, me mantive em casa, estudando de maneira remota.

Durante a pandemia, minha vida passou por vários ciclos. Alguns foram encerrados para dar lugar a outros. No início da pandemia eu estava casada com um homem trans e havia muitos conflitos familiares e brigas, que se intensificaram por conta do isolamento social e da convivência mais próxima. Diante disso, eu me separei. No começo de 2021, eu me casei com um homem cisgênero soro discordante. Fizemos uma linda cerimônia de casamento civil, em um ponto turístico de Brasília, o Museu Nacional de Brasília. 

No início de 2021, eu não tinha expectativa que tudo fosse voltar ao antigo normal, pré-pandemia. Mas veio a liberação das vacinas imunizantes para Covid-19. Tomei minha primeira dose da vacina em maio e tive vários efeitos colaterais como: febre, dor e muita tontura. Só me estabilizei depois de 21 dias. Depois disso, fiquei em casa, não saí e parei de trabalhar, pois tive medo de adoecer. 

Na época em que tomei a segunda dose da vacina, os problemas aumentaram: o preço da comida subiu e eu não tinha condições financeiras para me sustentar. 

Entrei neste coletivo para ajudar mulheres trans e demais público da comunidade LGBTQIAP+, especialmente em situação de vulnerabilidade

Tulipas do Cerrado: um movimento social de resistência contra opressões em relação às nossas vivências

Com essa situação muito difícil e diante da intensificação das vulnerabilidades, a organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado começou a entregar cestas básicas mensalmente e produtos de higiene pessoal, como forma de tentar reduzir a falta de alimento nas casas das pessoas acompanhadas pela instituição. 

Eu conheci a ONG antes da pandemia. Entrei neste coletivo para ajudar mulheres trans e demais público da comunidade LGBTQIAP+, especialmente em situação de vulnerabilidade. 

A ONG Tulipas do Cerrado forma um movimento social de resistência contra opressões em relação às nossas vivências. Ela é liderada por uma mulher muito emponderada e não deixou em nenhum momento de atender o público alvo (mulheres cis e trans, profissionais do sexo, população em situação de rua e pessoas usuárias de drogas). 

A ONG elaborou um projeto que oferece ajuda de custo e muitos cuidados, principalmente psicossocial às pessoas que estão nas ruas. É neste projeto que trabalho, atuando na área de redução de danos nas ruas.

Espero que a minha história possa levar até o coração das pessoas um pouco de luta feminina e resistência LGBTQIAP+  para que todes possam tomar os devidos cuidados e prevenções possíveis para que não passem por problemas sérios de saúde

Futuro: emprego, dinheiro e comida nas mesas a todes

Como expectativas para o futuro, desejo conquistar um bom emprego  por meio da minha qualificação profissional. Quero amizades que pratiquem o autocuidado e o cuidado com o próximo. Desejo dinheiro e comida nas mesas.  

Espero que a minha história possa levar até o coração das pessoas um pouco de luta feminina e resistência LGBTQIAP+  para que todes possam tomar os devidos cuidados e prevenções possíveis para que não passem por problemas sérios de saúde e na sociedade. 

Encerro aqui este relato agradecendo a oportunidade que tenho de ter aliados por perto e muito amor no coração. Com carinho, Yessica Andrés.

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25 a 39 anos Branca Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Trans

“Ter pego Covid-19 me ensinou a colocar minha saúde em primeiro lugar”

Eu me chamo Renata, tenho 37 anos e sou mulher trans. Sou natural do Tocantins, trabalho como cabeleireira, faxineira e realizo outras atividades para complementar a renda. Também sou estudante de enfermagem, nível médio. 

Antes da pandemia, eu trabalhava como profissional do sexo. Porém, durante a pandemia, encontrei dificuldades, já que vários clientes “desapareceram”, o que me prejudicou bastante.

Esse cenário me fez começar a estudar o curso técnico em enfermagem para futuramente ter um complemento na minha profissão. Tenho vontade de fazer faculdade de estética, mas atualmente sobrevivo de ajuda com doações de alimentos e realizando trabalhos como diarista, cabeleireira ou levando pets para passear. Essa é a forma que encontrei para conseguir melhorar essa fase ruim e poder me sustentar, pagar aluguel e outras contas, bem como cuidar dos meus cachorros.

Com Covid-19 e sem contar com ajuda de ninguém

Por morar sozinha, tive a pior experiência quando peguei Covid-19, em setembro de 2021. Eu tive que “me virar”,  já que pude contar com a ajuda de ninguém próximo, nem mesmo para de vizinho. Tive vários sintomas como febre, dor de cabeça, dores no corpo inteiro, diarreia, vômitos, tontura e calafrios. Esses sintomas duraram três dias. 

Nesse período, fui a uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Lá fui bem recebida pela equipe de saúde, especialmente pela médica que me acolheu e me acalmou dizendo que ficaria tudo bem. Ela receitou os remédios e eu retornei para casa. 

Após alguns dias, eu voltei à UBS consulta, pois estava com alguns desconfortos respiratórios. Com isso, a médica pediu um exame de raio-x do meu pulmão e constatou que não havia alterações, que “meus pulmões estavam limpos”. 

Eu tive muito medo, mesmo com as duas doses da vacina. Nesse período, fiquei duas semanas sem trabalhar, mas já estou na ativa novamente. Fico feliz por estar viva e também por não ter perdido ninguém da minha família por Covid-19. Ter pego o vírus me ensinou que tenho que me cuidar mais e colocar minha saúde em primeiro lugar.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis

“Minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19”

Me chamo Maria Aparecida, porém sou mais conhecida pelo meu apelido, Iza. Sou baiana, tenho 38 anos e ensino médio completo. Trabalho como profissional do sexo há 19 anos.

Quando a pandemia começou eu estava em Goiânia/Goiás e fiquei sabendo que não poderia sair do Estado de Goiás, as rodovias estavam sendo fechadas. Contudo, eu consegui retornar para Brasília, comprei alimentos e fiquei duas semanas em quarentena. 

O tempo foi passando e as contas continuaram a chegar – água, luz e outras despesas – e o dinheiro foi acabando. Foi quando eu tive a necessidade de voltar trabalhar. As ruas, porém, estavam vazias, sem movimento, sem clientes. 

Muitos dos meus clientes fixos eram idosos, então eles sumiram com medo do Covid-19. Diante disso, tive que conquistar uma nova clientela. Com a diminuição da circulação de pedestres e queda no movimento dos comércios, meu companheiro na época deixou de vender pipoca nos semáforos. 

Infelizmente, o período de pandemia me trouxe outras perdas: minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19. Eu considerava muito a minha mãe, foi ela quem me criou, eu a amava, admirava e respeitava. Daria tudo por ela.

Eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro”

Empoderamento

Quando as pessoas voltaram a andar pelas ruas, meu companheiro começou a vender bebida alcoólica na praça e a convivência com ele ficou muito ruim, pois ele passou a beber mais bebida alcoólica e a fazer uso de outras drogas. Com isso, tivemos muitas brigas e o relacionamento foi de mal e pior.

Foi nesse período conturbado da minha vida que eu conheci a Juma Santos e a organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado. Com ela eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro e, após algumas conversas, identifiquei situações de violência em meu relacionamento que eu não podia mais tolerar. 

Antes eu pensava que a opressão era apenas em ocasiões que havia violência física, mas ao ouvir a história de vida da Juma, eu percebi que não. Então, ao ouvi-la, me senti forte, empoderada, para registrar o primeiro boletim de ocorrência contra aquele homem, que me oprimia, me xingava e quebrava as coisas dentro de casa. 

Ainda assim, continuei me relacionando com ele. Depois de alguns meses, em um momento de muita ira e surto, ele tentou queimar o apartamento onde eu morava, jogou minhas coisas no chão do apartamento, tentou explodir o botijão de gás de cozinha, correu atrás de mim. 

Ele nunca tinha chegado a esse ponto durante esses 11 anos de relacionamento. Eu tive muito medo de ele me matar. Fui até a polícia, fui acolhida e fizeram a busca por ele nos locais onde ele costumava ficar, porém não o encontraram. 

Hoje eu tenho medida protetiva contra ele e estou tentando sair desse relacionamento. Na verdade, eu saí há pouco tempo.

Acolhimento

Por fim, gostaria de acrescentar que, além de ser um coletivo que me empodera com mulher, como mãe, como trabalhadora sexual, as Tulipas do Cerrado, especialmente a Juma, tem sido meu refúgio e minha fonte de apoio. 

Nessa ONG eu sou acolhida, me tornei redutora de danos, recebo cesta básica e cesta verde mensalmente e, às vezes, é possível receber ticket alimentação e vale gás. Todo esse apoio tem me ajudado bastante.

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25 a 39 anos Distrito Federal Mulher Cis Parda Prefiro não informar

“Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada”

Eu me chamo Jackeline, mas também sou conhecida como Fernanda. Tenho 33 anos, sou gaúcha, mãe solo de quatro filhos, trabalhadora sexual e resido na periferia do Distrito Federal, em Ceilândia. 

Quando a pandemia começou, eu morava em Anápolis/GO, onde tenho casa própria e trabalhava com carteira assinada em um restaurante. Por ter sido uma das últimas funcionárias a ser admitida, com a chegada da pandemia eu fui dispensada do serviço, pois o restaurante fechou as portas e passou a funcionar na modalidade de delivery.

Menos vendas, mais contas

Retornei para Brasília, onde eu já tinha morado em outro momento, para trabalhar com vendas nas ruas como ambulante com meu companheiro. O lucro não era tão ruim, dava para sobreviver. 

Em Brasília, vivia com minha família em uma casa de aluguel. Escolhi sair de Anápolis porque lá possui um órgão do governo que retira os vendedores das ruas da cidade e, por isso, quase não dá para viver dessa atividade no município. Em Brasília existe a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (AGEFIS), órgão similar ao que tem em Anápolis, porém os vendedores ambulantes se ajudam e evitam o recolhimento das mercadorias. “Todos correm juntos!” quando a AGEFIS chega.

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos.

Contas a pagar

Com o passar dos meses as coisas ficaram mais complicadas. As contas eram muitas: aluguel, água, energia, prestação do apartamento, alimentação, transporte e outras despesas. Com isso, voltei a realizar o trabalho sexual e meu companheiro, devido a baixa nas vendas nas ruas, começou a mexer com coisas ilícitas. 

Na época eu estava com dois meses de gravidez de gêmeos, porém, algumas semanas depois eu tive aborto espontâneo.Com a vinda para Brasília, meus filhos ficaram sem vaga nas escolas. Todos ficaram em casa, estressados, entediados e com os estudos prejudicados. Nesse período, eles começaram acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial Infantil e passaram a tomar remédios controlados.

Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada da casa onde morávamos. Apenas meu companheiro estava trabalhando e eu estava de resguardo por conta do abortamento.

Naquele período tão difícil, me aproximei da organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que nos ajudou, a mim e à minha família, com doação de cestas básicas, ajuda de custo quando participava de projetos, remédios, roupas e tantas outras coisas. 

Ainda assim, ainda tínhamos gastos, dívidas, frete de mudança para pagar, quatro filhos para sustentar e só recebíamos um auxílio. Com isso, meu companheiro continuou a atuar com coisas ilícitas e, um tempo depois, ele foi preso e me deixou sozinha. 

Redes de apoio

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos. Nessa época minha mãe passou a morar comigo. Ela usa marcapasso e não possui renda, mas tem me ajudado a cuidar das crianças.

As ruas estavam e continuam muito vazias, sem clientes. Quase não estou dando conta de pagar as contas. Alguns coletivos dos quais eu faço parte tem me ajudado bastante, como as Tulipas do Cerrado, Coletivo Aroeira e a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas. Com esses grupos eu tenho tido suporte, cuidados com a saúde mental e física, alimentação, ajuda jurídica com meu parceiro que ainda está privado de liberdade e me auxiliam a conquistar meus sonhos e atingir meus objetivos. 

Essas redes ajudam a reduzir os danos na vida das pessoas que estão em situações complicadas, como eu. Hoje eu consigo sobreviver, trabalhar, aprender, ensinar, etc. graças às pessoas que compõem essas redes. Posso afirmar que atualmente tenho uma família imensa no Distrito Federal, com quem posso contar a qualquer momento.

“Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito”

Pandemia: Como iremos sobreviver?

A pandemia ainda me traz medo e tristeza. Mesmo com tantas batalhas, o que mais me preocupa é viver sem ter a certeza do amanhã, sem saber se estarei aqui com meus filhos, medo de pegar Covid-19. 

Peço misericórdia a Deus! Perdi muitos amigos e clientes para o Covid-19 e não quero que isso aconteça comigo ou algum membro de minha família. Por fim, trago um apelo. O auxílio que recebo do governo e os ganhos financeiros com meu trabalho não dá para pagar com tranquilidade as despesas do mês, porque está tudo muito caro, os preços estão abusivos. 

Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito. Emprego? Ninguém nos dá oportunidade. Ai de nós se não tivermos uma Juma Santos em nossas vidas. Ela é a minha segunda mãe, que cuida, acolhe e ajuda.

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18 a 24 anos Distrito Federal Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Parda

“Na pandemia fiquei desempregada e agora sobrevivo de bicos”

Meu nome é Letícia e tenho 21 anos. Sou mulher cis, parda, lésbica e residente da Ceilândia/Distrito Federal. 

Antes do início da pandemia, trabalhava formalmente e estava me licenciando em geografia. Durante a pandemia, fiquei desempregada e, por motivos principalmente financeiros, precisei trancar a faculdade. 

Durante a pandemia,  tive que me inserir no trabalho informal, no qual fiquei trabalhando por um ano, tendo muitas dificuldades.

A pandemia e o isolamento social para mim foram processos difíceis, que dificultaram as relações, especialmente a convivência dentro de casa. 

Atualmente estou desempregada e sobrevivo de “bicos”, sem contar com o apoio financeiro de ninguém. Estou em busca de me reinserir no mercado de trabalho e na tentativa de voltar a estudar. 

Busco minha independência financeira e em breve ser professora de geografia. Espero que tudo isso acabe, que as pessoas voltem a ter suas vidas como eram antes da pandemia, liberdade e seu sustento. 

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25 a 39 anos Branca Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis

“Como vou manter funcionários sem ter nenhum capital na empresa?”

Meu nome é Keilla Rocha, tenho 28 anos e sou mãe de um rapaz pré-adolescente. Quando a pandemia começou, em 2020, eu estava casada, fazendo o curso técnico de enfermagem e trabalhava como comerciante varejista em Shopping Centers.

Com a pandemia, eu passei a não deixar mais meu filho sair pelo condomínio ou brincar na rua e ele não conseguia entender o motivo. Ele, triste, olhava pela janela e dizia: – Olha lá mãe… Todo mundo brincando na rua! Todos meus amigos nas quadras, e eu aqui em casa, já não aguento mais”.

Ele estava exausto, as brincadeiras dentro de casa já não tinham graça, a escola havia fechado e eu estava super amedrontada e não deixava ele nem “piscar” fora de casa. Parecia um filme de terror sem fim. Sabe aquele apocalipse que tanto nos alertavam desde a infância? Sentia que ele realmente havia chegado. 

Ao acordar, o meu marido já estava com a televisão ligada assistindo incansavelmente a mais um noticiário que nos alertava sobre o maior número de mortes a cada minuto. Às vezes eu parava e pensava: “Será que só eu estou realmente levando isso tão a sério? Onde estão os pais dessas crianças que deixam elas ficarem na rua?” E, por fim, eu fico vista como a errada ou a mãe super protetora.

Senti um desespero quando recebi um e-mail da secretária do suposto médico incrível informando que ele havia ido embora de Brasília para ficar com a família, pelo motivo da pandemia

Filho com epilepsia

Quando meu filho fez nove anos, ele foi diagnosticado com epilepsia. A partir de então, ele tem tomado medicamentos controlados e procuramos o melhor neuropediatra que atendia em Brasília. Comecei a pagar um plano de saúde super caro, pois era o que o suposto médico escolhido aceitava na época. As consultas passaram a acontecer por chamada de vídeo. Nós realizávamos a consulta segurando o celular, sentados em nosso próprio sofá, no conforto do nosso lar, conforto este que meu filho já não suportava mais. 

Realmente, senti um desespero quando recebi um e-mail da secretária do suposto médico incrível informando que ele havia ido embora de Brasília para ficar com a família, pelo motivo da pandemia.

Como eu, sendo uma microempresária, vou manter funcionários sem ter nenhum capital na empresa? Como iria alimentar minha família, pagar boletos que estavam para vencer? Foi um desespero sem fim

Fechamento de shoppings centers, fim do trabalho

O tempo passou e o terror continuou. Eu sempre tentei proteger minha família passando álcool em tudo e em todos. Quando eu e meu ex-marido íamos ao mercado, parecia o fim dos tempos: muitas prateleiras vazias, as máscaras em nossos rostos tampando todos os vestígios de sorriso que poderia surgir, olhares assustados, um silêncio que parece que nos havia matado por dentro e a cada instante. 

No momento em que o nosso empreendimento nos Shoppings Centers faria com que conseguíssemos sair do mar de dívidas, recebemos a notícia de que os shoppings deveriam fechar. Como eu, sendo uma microempresária, vou manter funcionários sem ter nenhum capital na empresa? Como iria alimentar minha família, pagar boletos que estavam para vencer? Foi um desespero sem fim. Não havia nenhuma notícia boa e nenhuma esperança desse pesadelo acabar. Sem a cura, sem a esperança de vacinação, com o caos no governo em nosso País, parecia que não iríamos sobreviver.

No curso de enfermagem, os estágios foram suspensos. E, dessa forma, nós, estudantes inexperientes e despreparados, tivemos que ir à guerra.  Adiantaram o diploma, pois a cada dia que passava eram necessários mais “soldados” da saúde para ir à guerra.

Devemos observar e entender o contexto e não perder a fé. Temos que saber que temos que lutar pelos nossos sonhos e objetivos, mas jamais deixar de ser grato pela vida e pela saúde

Fim do casamento: “Seu egoísmo não o deixava enxergar que diante de tudo aquilo que o mundo passava, o bem maior era a própria vida e a família”

Em meio a essa “tempestade” mundial, o meu casamento não resistiu e sucumbiu em meio a tantos conflitos. As pessoas à nossa volta nos julgavam como o casal perfeito. Porém, todo espetáculo é lindo para quem assiste e só quem vive atrás, nos bastidores, sabe a realidade. 

Ao acordar, sempre via o meu marido mal e desesperado e eu dava apoio e alicerce, sejam eles quais fossem necessários. Eu tentava mostrar que mediante a todo ócio mundial, a nossa família estava bem, tínhamos saúde, alimento na mesa. Mas ele se sentia como se estivesse levando um golpe do destino. Seu egoísmo não o deixava enxergar que diante de tudo aquilo que o mundo passava, o bem maior é a própria vida e a família.

Devemos observar e entender o contexto e não perder a fé. Temos que saber que temos que lutar pelos nossos sonhos e objetivos, mas jamais deixar de ser grato pela vida e pela saúde. Do que adianta chegarmos no topo da montanha sem ter com quem compartilhar? O mais importante é saber como lidamos com o próximo ao longo da caminhada, com quem está contigo nos momentos de dificuldade. 

É fácil ser feliz ao valorizar o próximo nos momentos de bonança e alegria. O sábio é aquele que valoriza e entende que nem tudo são flores. Hoje sei que existe arrependimento em seu coração, mas tudo isso me ensinou a ser uma mulher forte, guerreira e independente. Sou grata a Deus por não me desamparar, por me mostrar o caminho e por me guiar em meio ao caos.