Meu nome é Eveline, mas desde sempre me chamam de Vivi. Nunca entendi, pois não é um apelido derivado do meu nome, mas hoje sei que a Vivi viveu tantas coisas, vivi e estou VIVA, superando as estatísticas.
Tenho nível superior incompleto, cursando Direito. Vim de um lugar de privilégios, mas hoje ocupo o lugar da não existência, onde os nossos direitos são chamados de benefícios, onde o que foi reservado como resolução para nossos problemas foi o direito penal.
Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre
Vida na rua: uma prisão ao ar livre
Eu moro em Brasília, mas sou nordestina de corpo e alma. Nasci em Teresina (PI), a capital verde do Brasil. Fui atravessada ainda menina nesta mudança de lá para o Distrito Federal. Minha mãe não tinha mais condições de ficar em Teresina, por causa de um processo muito doloroso de separação com meu pai e eu, que era a filha mais nova, tive que vir com ela.
Hoje, depois de muitos anos, entendo a frase de Clarice Lispector que diz: “Brasília, uma prisão ao ar livre!” pois quando caminho no centro da capital, percebo que ressoa a dor. Sou mulher usuária de crack em processo de resistência e enfrentamento há oito anos.
Não utilizo a palavra limpa porque ela é higienista e nos coloca num lugar de seres imundos, sem humanidade e que é de extrema crueldade. Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre.Sou uma mulher preta. Eu não sabia que era preta, mas descobri num processo também de muita dor. Sou preta! Sou uma mulher periférica e hoje moro em Ceilândia Norte, onde – segundo o rap Cirurgia Moral, grupo que narra a realidade do nosso cotidiano aqui de baixo, “os versos do reino da morte ditam a sorte, nossa vida já é escassa em Ceilândia Norte”, onde o corre da sobrevivência é duro, onde é comum acordar e dormir pensando no que fazer para não deixar filho, neto, enteado e todos os que estão em torno de nossa vida à mercê da sorte, onde as mulheres resistem.
O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana
Vida na rua e no cárcere: cultura punitivista e proibicionista
Eu saí da rua em 2015, meu companheiro de vida e caminhada havia sido privado de liberdade e eu precisa dar suporte a ele, que é um homem negro, pobre e saiu de casa aos nove anos de idade. Foram 34 anos de rua, rua e grades e vice e versa.
Viver o cárcere foi outra dor extrema. Crescemos dentro de uma cultura punitivista e proibicionista, que faz controle de corpos por meio de uma política de miséria, da qual a guerra e as drogas fazem parte. Todo o tempo que meu esposo ficou naquele lugar, eu fui a chefe de família, a mãe, a avó, a madrasta.
Passei por um câncer no colo do útero e a cada dia surgia uma nova dificuldade. O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana. O que chega para sociedade não é a realidade, nem do processo penal e muito menos da execução da pena. Mas eu somente compreendi isso quando vivi.
Foram tempos difíceis. Ali meu melhor amigo e parceiro de vida estava submetido a todo tipo de violação. Não só ele como todas as pessoas privadas de liberdade neste país, principalmente as mulheres, que são abandonadas pela sociedade machista e patriarcal. Antes de tudo a sociedade nos pune por sermos mulheres.
No sistema prisional, nós, familiares, somos também aprisionados e eu estava mesmo adoentada, me virando para poder suprir as necessidades da minha família, me alimentar, ter onde morar, não perecer. Eu fazia faxina, cozinhava para eventos, fazia trabalhos freelancer, de domingo a domingo incessantemente.
São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito
Luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista
Em 2019 eu cheguei no limite de minha sanidade mental e fui acolhida pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento. Foi nesse espaço que eu senti a potência dos movimentos sociais. Eu não sabia como funcionava e somente acreditei que existia um lugar para familias de pessoas privadas de liberdade e sobreviventes do sistema prisional quando vi com os meus próprios olhos aquelas pessoas que faziam resistência e enfrentamento de forma coletiva.
Quando cheguei no encontro, realizado no final daquele ano, em Fortaleza -CE , conheci muitos movimentos: o Coletivo Vozes do Cárcere, Elas Existem, EuSouEu, AMPARAR, RENFA e também as Tulipas do Cerrado.
Nunca imaginei que ali eu encontraria o abraço, o acolhimento, inclusive a subsistência através do apoio coletivo dos movimentos e organizações que compõem essa luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista. São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito.
Naquele dia minha vida mudou, principalmente em relação à solidão que eu vivia na caminhada do cárcere. Conheci tanta gente incrível e que vem me ensinando tantas coisas. Uma delas foi Juma Santos. Nunca deixarei de citá-la porque as Tulipas do Cerrado é um dos lugares que hoje para mim é vida.
“O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada”
Pandemia: sem emprego, sem perspectivas
Quando a pandemia do Covid-19 chegou, fiquei sem fazer as faxinas, sem os freelancers e, se não fosse por essa rede de apoio, eu e minha família teríamos ficado sem amparo. Através destes movimentos, foi garantido a sobrevivência, a minha e tantas outras mulheres, sobreviventes da rua, do cárcere, o povo LGBTQIAP+ que sofrem e vivenciam grandes violações, abandono e são excluídos de forma muito cruel.
No início da pandemia, meu esposo voltou para casa, em regime domiciliar. O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada.
“Não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19”
Rede de apoio: seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo
As Tulipas do Cerrado fizeram uma intervenção que foi crucial na mudança de visão de vida e de amparo na vida de meu esposo. Aliás, acolheu nossa família e estamos seguindo de pé por termos esses lugares de resistência, bem como a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, que vem trazendo também formas de fortalecimento para nós familiares.
Nada sobre nós sem nós, seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo, se cuidando juntas (os) e juntes. E hoje sei a importância da redução de danos nas nossas vidas. Sim, eles “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de ficar vivas (os) e vives! ”.
A pandemia trouxe dificuldades muito piores para nós, mas eu posso falar que não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19.