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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Pós-Graduação Completa São Paulo

“Eu também me questionei”

Durante esse período e até agora, pergunto-me se tem alguém que não tenha questionado a vida, a morte, a passagem do tempo, o valor das coisas; pergunto-me se tem alguém que não questionou seu próprio ofício, suas escolhas, sua estabilidade financeira ou emocional.

Em março de 2020, eu morava fora do Brasil, mas estava constantemente ligada ao meu país através das memórias, do amor e de meu trabalho com a ONG Nariz Solidário.

“Como prosseguir sem me questionar?”

Questionei-me também ‘como prosseguir’ e, principalmente, como eu poderia ser útil para além de minhas próprias buscas pessoais.

Nesse momento, meu amigo Eduardo Roosevelt, do Nariz Solidário, fez-me uma proposta: E se colocássemos em movimento ideias antigas nossas, como o Curso Online “O humor e a Saúde”?

Este curso seria voltado apenas para palhaços de hospital, mas, naquele momento, poderia ser para qualquer um que quisesse aprender!

Pensávamos que, além de ajudar a transformar a vida de outras pessoas, estas atividades poderiam, de certa forma, desacelerar nossa vulnerabilidade e ainda ajudar a ONG Nariz Solidário.

Quais os próximos passos?

Resolvemos fazer esse teste e nos vimos mexidos e modificados com essa experiência.

Pensei que eu iria ajudar, mas fui a maior beneficiada. Pudemos nos conectar com pessoas de todas as idades, em todo o Brasil e, algumas vezes, até pessoas que moravam fora compartilhando experiências íntimas, medos e brincando juntos.

Lembro-me de situações delicadas e especialmente impactantes, como uma das alunas que assistiu alguns dos nossos encontros ao vivo, juntinho com sua mãe, da cama do hospital.

Mandava-nos fotos ou vídeos e nos tornamos tão íntimos nesses momentos, conseguindo nos fortalecer nesse período tão delicado.

Nadja Moraes no curso online "Humor e Saúde", ministrado pela ONG Nariz Solidário.

Foi quando vimos que era possível

É possível, independente das circunstâncias, encontrar um farol de luz, caminhos que nos deem suporte, leveza e alegria, mesmo em momentos de grandes desafios. Mesmo em contato com a morte.

Tivemos uma mãe solo que passava por uma depressão, com uma filha especial, e pudemos ver em primeira mão o seu progresso, sua abertura, sua vontade de viver e de brincar, despertando através de nossas trocas.

Tivemos um palhaço de circo tradicional na ONG Nariz Solidário, com tanto a ensinar, com tanta estrada e picadeiro em suas memórias, aberto para aprender e compartilhar conosco suas histórias.

Ele, que faleceu recentemente, deixou-nos um legado incrível de humanidade. Cada troca enriquece a todos. Eleva-nos e nos mostra que existem caminhos mesmo em meio à dor.

O potencial dessa semente iniciada durante a pandemia só nos mostra que mesmo à distância, é possível construir pontes.

Mesmo na dor, é possível se ver sorrindo e encontrar fagulhas de alento e alegria e contribuir cada vez mais para uma sociedade onde possamos nos ajudar sempre, contar uns com os outros e cuidar de nossas feridas juntos.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Indígena Mulher Cis Prefiro não informar Roraima

“Minha sogra sempre me apoiava e morreu no mesmo dia em que eu consegui um emprego”

Eu sou a Ana Pereira e tenho 26 anos. Eu sou da etnia Wapichana e nasci na Guiana Inglesa. Vim ao Brasil quando tinha cinco anos com minha mãe, depois que meu pai morreu, em busca de uma vida melhor. 

Eu estudei na Tabalascada, onde aprendi a falar português, já que eu falava inglês. Hoje em dia eu falo português, mas esqueci o ingles, é engraçado. 

Quando a pandemia chegou, eu já estava desempregada há três ano e ficou muito mais difícil encontrar trabalho. Com a pandemia, eu não conseguia arranjar emprego por não poder sair. Isso prejudicou a minha vida e a dos meus filhos.Tudo parou: trabalho, estudos.

Fiz faxina, fiz outros trabalhos pontuais para sobreviver. Meu marido pegou Covid e ficou desempregado. Ninguém queria contratá-lo por medo de se contagiar e então a situação ficou ainda mais difícil. 

O que nos ajudou foi a alimentação que a Escola distribuiu. Não tinha tudo o que queríamos, mas não faltou o pão de cada dia na mesa. 

Momento crítico

O pior dia da pandemia foi quando minha sogra morreu. Ela era uma segunda mãe para mim. Era ela que me ajudava com tudo. Ela ajudava todas as pessoas que chegavam pedindo ajuda em sua casa. Ela era muito guerreira. 

Nunca pensei que um dia pudesse passar por isso. Minha sogra era uma ótima pessoa. Ela sempre falava para eu não desistir de procurar emprego e morreu no mesmo dia em que eu consegui um trabalho. Foi muito difícil. Ela não estava com a gente para comemorar. 

Eu e o meu marido estamos tentando levar a vida, já que minha sogra sempre dizia que a vida continua, que não podemos parar. E é por isso que eu vou tomar a segunda dose da vacina e falo para todo mundo se vacinar. Afinal, temos que nos prevenir!

Relato de Ana Pereira, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Prta

“Nesse período eu só sabia chorar”

Sou Elza, tenho 38 anos, sou mulher cis, preta, maranhense, mãe solo de seis filhos. Possuo o ensino fundamental incompleto, sou profissional do sexo e moro há 17 anos em uma cidade no entorno do Distrito Federal.

Com a chegada da pandemia, minha vida mudou muito: tive que encontrar outras fontes de renda e, com o fechamento das escolas, minha filha mais nova, de 11 anos, teve que ficar em casa sem estudar. Foi muito difícil para ela, pois ela tinha muita vontade de voltar a frequentar a escola. 

Tive minhas preocupações e angústias. Eu vi as coisas mudarem do dia para a noite. Quando fui para Brasília trabalhar no centro de uma região administrativa [“bairro”], vi que as lojas estavam fechadas, as ruas vazias, as poucas pessoas que estavam transitando estavam usando máscaras. 

Lembro até hoje da minha primeira máscara, era do Flamengo. Aí veio o medo: usando máscara, as coisas ficaram complicadas. Não havia ninguém na rua, sem clientes, nada. Eu pensei: “O mundo está acabando e eu não estou sabendo de nada”.

O início da pandemia foi bem difícil. Não tive ajuda em nada, nem do Governo. Pelo contrário, eu recebia R$50 de bolsa família e o benefício foi cortado. Fiquei sem água e luz em casa. O gás de cozinha acabou e tive que preparar a comida à lenha no meu quintal. Às vezes, meu pai, que é aposentado, me ajudava com o pouco que tinha.

Filhos em situação de rua

Atualmente, moro apenas com minha filha mais nova. Antes da pandemia, minha filha de 16 anos morava comigo, mas se amigou com um rapaz e foi morar com ele. Posteriormente, esse rapaz foi privado de liberdade e está até hoje em situação de cárcere. 

Essa minha filha ficou um período em situação de rua. Tentei tirá-la dessa condição, me aproximar, conversar, porém, ela tentou me agredir fisicamente diversas vezes e me xingava bastante. Uma situação muito complicada. Sempre tento contato via telefone com ela, mas não tenho resposta. Fico aqui com minha preocupação.

Meu outro filho teve uma crise de saúde mental no meio desse ano (2021) e saiu de casa sem dar notícias. Ele também acabou ficando em situação de rua. Fiquei mais de um mês sem dormir, com muita preocupação, sem saber onde ele estava, como ele estava, até mesmo se estava vivo. 

Nesse período eu só sabia chorar, sem saber o que fazer. Consegui achá-lo e trazê-lo com segurança para casa, mas a crise não passava. Ele ficou um tempo internado em uma Unidade de Pronto Atendimento 24h e, posteriormente, foi atendido em um Centro de Atenção Psicossocial. Meus demais filhos moram no Maranhão com meus pais.

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto

Redes de apoio

Mesmo diante desse turbilhão, tive um grande presente em minha vida: Juma Santos. Eu a considero como minha segunda mãe. Foi a partir dela que conheci coletivos maravilhosos, como a organização não governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que é um grupo maravilhoso que tem me ajudado muito nesse período difícil na minha vida, tem cuidado de mim e da minha família. 

Conheci também a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, outra parceria maravilhosa. Assim como o Coletivo Aroeira. Com eles eu aprendi muitas coisas boas sobre agroecologia como, por exemplo, plantar, colher, fazer sabonete, extrair óleo essencial. 

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto. Me sinto muito abençoada por Deus pela oportunidade de participar desses grupos e por ter conhecido cada pessoa. 

Não consigo encontrar palavras para expressar a minha gratidão a esses grupos pelas várias formas que tem me ajudado, seja com cesta básica e cesta verde, seja com uma escuta, acolhimento, momentos de convivência, trocas de saberes com ensinamentos e aprendizados. Agradeço a Deus e a essas pessoas que chegaram em minha vida para somar e trazer luz.

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18 a 24 anos Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis Prta

“A pandemia me trouxe muito medo, mas me trouxe a esperança”

Meu nome é Sendy. Tenho 22 anos, sou goiana, mulher preta e lésbica. Sou usuária de drogas, filha de moradores de rua, moro em casa alugada na Ceilândia, periferia do Distrito Federal.

Alguns meses antes de começar a pandemia, minha vida estava começando a se alinhar financeiramente, mas, com a chegada do vírus e o distanciamento social, eu acabei sendo dispensada do trabalho. 

Perdi minha mãe muito nova, infelizmente e, com isso, tive muitas responsabilidades desde cedo. Eu e meus irmãos ajudávamos minha avó nos serviços e responsabilidades em casa. Uma das nossas principais responsabilidades era cuidá-la. Minha avó tinha depressão devido ao imenso sofrimento que teve diante das tentativas de tirar minha mãe das drogas e da rua. Infelizmente, essa história acabou em desastre: minha mãe foi assassinada em 2014. 

Na época, eu não conhecia meu pai e com a morte da minha mãe, passei a ter medo de não poder conhecê-lo e esse medo só aumentava com o passar dos anos. Em 2016, minha madrasta encontrou minha irmã e eu pelas redes socias. Ela falou sobre a realidade em que vivia e que meu pai estava privado de liberdade. 

Em 2017, minha avó faleceu. Com isso, eu e minha irmã tivemos que morar com minha madrasta. Moramos juntas de 2017 a 2019, ano em que tentei morar sozinha. Porém, com a pandemia, tive dificuldade em me manter e voltei a morar com elas.

Quando a pandemia começou, em 2020, os riscos do vírus dentro do sistema prisional eram grandes. Por isso, após alguns meses, o meu pai estava em casa morando com a gente. Todos estávamos muito felizes, mas com o vírus circulando e o isolamento social, tivemos que passar a maioria do tempo dentro de casa e com o passar dos meses a convivência foi se tornando complicada. 

A saúde mental de todos estava abalada com tantas dificuldades: dificuldades de pagar as contas em dia; dificuldade de uma fonte de renda fixa…O pouco que conseguíamos receber era para pagar as contas de casa e essa situação ficou assim por um período.

A cada encontro eu aprendo algo com todos, todas e todes. Acredito que da mesma forma aprendem comigo também. É sempre uma troca de experiência e saberes.

Dias melhores virão

Nessa época, a minha madrasta conheceu uma organização não governamental (ONG) Tulipas do Cerrado. Eu sempre via uma alegria muito grande quando minha madrasta falava sobre as Tulipas do Cerrado. Ela sempre me falava que era uma rede de acolhimento entre mulheres, que eu deveria conhecer também. 

Com o passar do tempo, elas começaram a fazer seus encontros de convivência e de autocuidado, seguindo as recomendações de segurança dos Órgãos de Saúde para prevenir a infecção pelo vírus da Covid-19. 

Em um dado momento, decidi participar de um desses momentos. Essa escolha mudou muito a minha vida, positivamente. A cada dia que eu estava junto com as Tulipas, eu tive crescimento pessoal, comecei a ter mais empatia com o outro, olhar para tudo e para todos de uma forma diferente da que eu estava acostumada, estive aberta a entender um pouco da realidade de todas as pessoas assistidas pela ONG: trabalhadoras sexuais, mulheres trans, pessoa em situação de rua, usuários de Drogas, demais pessoas da comunidade LGBTQIAP+. 

A cada encontro eu aprendo algo com todos, todas e todes. Acredito que da mesma forma aprendem comigo também. É sempre uma troca de experiência e saberes. Há alguns meses, estive na minha primeira formação em redução de danos e dali em diante fiquei mais interessada em querer estar mais perto e em ajudar no cuidado de pessoas que conheceram e estiveram junto da minha mãe, na rua.

Hoje faço parte de projetos voltados para o cuidado na perspectiva da redução de danos junto à ONG Tulipas do Cerrado e ao Coletivo Aroeira. O Aroeira trabalha com redução de danos e Agroecologia Urbana. A cada dia me encontro mais nessa caminhada. 

São esses projetos que me ajudam financeiramente para eu conseguir pagar meu aluguel. Como eu tinha dito, a convivência na casa  com meu pai e minha madrasta não estava boa. Conversamos e foi decidido que era melhor eu e minha irmã morarmos juntas em outra casa, pois a situação não estava boa pra ninguém. 

São esses projetos dos quais eu faço parte que me ajudam financeiramente. Posso afirmar que meu ingresso nesses projetos mudou bastante a minha vida. Eles me trouxeram uma melhora pessoal. 

A pandemia me trouxe muito medo de tudo, mas ao mesmo tempo me trouxe a esperança de acreditar que dias melhores virão e que é nisso que temos que acreditar. 

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis

“Minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19”

Me chamo Maria Aparecida, porém sou mais conhecida pelo meu apelido, Iza. Sou baiana, tenho 38 anos e ensino médio completo. Trabalho como profissional do sexo há 19 anos.

Quando a pandemia começou eu estava em Goiânia/Goiás e fiquei sabendo que não poderia sair do Estado de Goiás, as rodovias estavam sendo fechadas. Contudo, eu consegui retornar para Brasília, comprei alimentos e fiquei duas semanas em quarentena. 

O tempo foi passando e as contas continuaram a chegar – água, luz e outras despesas – e o dinheiro foi acabando. Foi quando eu tive a necessidade de voltar trabalhar. As ruas, porém, estavam vazias, sem movimento, sem clientes. 

Muitos dos meus clientes fixos eram idosos, então eles sumiram com medo do Covid-19. Diante disso, tive que conquistar uma nova clientela. Com a diminuição da circulação de pedestres e queda no movimento dos comércios, meu companheiro na época deixou de vender pipoca nos semáforos. 

Infelizmente, o período de pandemia me trouxe outras perdas: minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19. Eu considerava muito a minha mãe, foi ela quem me criou, eu a amava, admirava e respeitava. Daria tudo por ela.

Eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro”

Empoderamento

Quando as pessoas voltaram a andar pelas ruas, meu companheiro começou a vender bebida alcoólica na praça e a convivência com ele ficou muito ruim, pois ele passou a beber mais bebida alcoólica e a fazer uso de outras drogas. Com isso, tivemos muitas brigas e o relacionamento foi de mal e pior.

Foi nesse período conturbado da minha vida que eu conheci a Juma Santos e a organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado. Com ela eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro e, após algumas conversas, identifiquei situações de violência em meu relacionamento que eu não podia mais tolerar. 

Antes eu pensava que a opressão era apenas em ocasiões que havia violência física, mas ao ouvir a história de vida da Juma, eu percebi que não. Então, ao ouvi-la, me senti forte, empoderada, para registrar o primeiro boletim de ocorrência contra aquele homem, que me oprimia, me xingava e quebrava as coisas dentro de casa. 

Ainda assim, continuei me relacionando com ele. Depois de alguns meses, em um momento de muita ira e surto, ele tentou queimar o apartamento onde eu morava, jogou minhas coisas no chão do apartamento, tentou explodir o botijão de gás de cozinha, correu atrás de mim. 

Ele nunca tinha chegado a esse ponto durante esses 11 anos de relacionamento. Eu tive muito medo de ele me matar. Fui até a polícia, fui acolhida e fizeram a busca por ele nos locais onde ele costumava ficar, porém não o encontraram. 

Hoje eu tenho medida protetiva contra ele e estou tentando sair desse relacionamento. Na verdade, eu saí há pouco tempo.

Acolhimento

Por fim, gostaria de acrescentar que, além de ser um coletivo que me empodera com mulher, como mãe, como trabalhadora sexual, as Tulipas do Cerrado, especialmente a Juma, tem sido meu refúgio e minha fonte de apoio. 

Nessa ONG eu sou acolhida, me tornei redutora de danos, recebo cesta básica e cesta verde mensalmente e, às vezes, é possível receber ticket alimentação e vale gás. Todo esse apoio tem me ajudado bastante.

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25 a 39 anos Distrito Federal Mulher Cis Parda Prefiro não informar

“Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada”

Eu me chamo Jackeline, mas também sou conhecida como Fernanda. Tenho 33 anos, sou gaúcha, mãe solo de quatro filhos, trabalhadora sexual e resido na periferia do Distrito Federal, em Ceilândia. 

Quando a pandemia começou, eu morava em Anápolis/GO, onde tenho casa própria e trabalhava com carteira assinada em um restaurante. Por ter sido uma das últimas funcionárias a ser admitida, com a chegada da pandemia eu fui dispensada do serviço, pois o restaurante fechou as portas e passou a funcionar na modalidade de delivery.

Menos vendas, mais contas

Retornei para Brasília, onde eu já tinha morado em outro momento, para trabalhar com vendas nas ruas como ambulante com meu companheiro. O lucro não era tão ruim, dava para sobreviver. 

Em Brasília, vivia com minha família em uma casa de aluguel. Escolhi sair de Anápolis porque lá possui um órgão do governo que retira os vendedores das ruas da cidade e, por isso, quase não dá para viver dessa atividade no município. Em Brasília existe a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (AGEFIS), órgão similar ao que tem em Anápolis, porém os vendedores ambulantes se ajudam e evitam o recolhimento das mercadorias. “Todos correm juntos!” quando a AGEFIS chega.

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos.

Contas a pagar

Com o passar dos meses as coisas ficaram mais complicadas. As contas eram muitas: aluguel, água, energia, prestação do apartamento, alimentação, transporte e outras despesas. Com isso, voltei a realizar o trabalho sexual e meu companheiro, devido a baixa nas vendas nas ruas, começou a mexer com coisas ilícitas. 

Na época eu estava com dois meses de gravidez de gêmeos, porém, algumas semanas depois eu tive aborto espontâneo.Com a vinda para Brasília, meus filhos ficaram sem vaga nas escolas. Todos ficaram em casa, estressados, entediados e com os estudos prejudicados. Nesse período, eles começaram acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial Infantil e passaram a tomar remédios controlados.

Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada da casa onde morávamos. Apenas meu companheiro estava trabalhando e eu estava de resguardo por conta do abortamento.

Naquele período tão difícil, me aproximei da organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que nos ajudou, a mim e à minha família, com doação de cestas básicas, ajuda de custo quando participava de projetos, remédios, roupas e tantas outras coisas. 

Ainda assim, ainda tínhamos gastos, dívidas, frete de mudança para pagar, quatro filhos para sustentar e só recebíamos um auxílio. Com isso, meu companheiro continuou a atuar com coisas ilícitas e, um tempo depois, ele foi preso e me deixou sozinha. 

Redes de apoio

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos. Nessa época minha mãe passou a morar comigo. Ela usa marcapasso e não possui renda, mas tem me ajudado a cuidar das crianças.

As ruas estavam e continuam muito vazias, sem clientes. Quase não estou dando conta de pagar as contas. Alguns coletivos dos quais eu faço parte tem me ajudado bastante, como as Tulipas do Cerrado, Coletivo Aroeira e a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas. Com esses grupos eu tenho tido suporte, cuidados com a saúde mental e física, alimentação, ajuda jurídica com meu parceiro que ainda está privado de liberdade e me auxiliam a conquistar meus sonhos e atingir meus objetivos. 

Essas redes ajudam a reduzir os danos na vida das pessoas que estão em situações complicadas, como eu. Hoje eu consigo sobreviver, trabalhar, aprender, ensinar, etc. graças às pessoas que compõem essas redes. Posso afirmar que atualmente tenho uma família imensa no Distrito Federal, com quem posso contar a qualquer momento.

“Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito”

Pandemia: Como iremos sobreviver?

A pandemia ainda me traz medo e tristeza. Mesmo com tantas batalhas, o que mais me preocupa é viver sem ter a certeza do amanhã, sem saber se estarei aqui com meus filhos, medo de pegar Covid-19. 

Peço misericórdia a Deus! Perdi muitos amigos e clientes para o Covid-19 e não quero que isso aconteça comigo ou algum membro de minha família. Por fim, trago um apelo. O auxílio que recebo do governo e os ganhos financeiros com meu trabalho não dá para pagar com tranquilidade as despesas do mês, porque está tudo muito caro, os preços estão abusivos. 

Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito. Emprego? Ninguém nos dá oportunidade. Ai de nós se não tivermos uma Juma Santos em nossas vidas. Ela é a minha segunda mãe, que cuida, acolhe e ajuda.

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18 a 24 anos Distrito Federal Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Parda

“Na pandemia fiquei desempregada e agora sobrevivo de bicos”

Meu nome é Letícia e tenho 21 anos. Sou mulher cis, parda, lésbica e residente da Ceilândia/Distrito Federal. 

Antes do início da pandemia, trabalhava formalmente e estava me licenciando em geografia. Durante a pandemia, fiquei desempregada e, por motivos principalmente financeiros, precisei trancar a faculdade. 

Durante a pandemia,  tive que me inserir no trabalho informal, no qual fiquei trabalhando por um ano, tendo muitas dificuldades.

A pandemia e o isolamento social para mim foram processos difíceis, que dificultaram as relações, especialmente a convivência dentro de casa. 

Atualmente estou desempregada e sobrevivo de “bicos”, sem contar com o apoio financeiro de ninguém. Estou em busca de me reinserir no mercado de trabalho e na tentativa de voltar a estudar. 

Busco minha independência financeira e em breve ser professora de geografia. Espero que tudo isso acabe, que as pessoas voltem a ter suas vidas como eram antes da pandemia, liberdade e seu sustento. 

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25 a 39 anos Branca Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis

“Como vou manter funcionários sem ter nenhum capital na empresa?”

Meu nome é Keilla Rocha, tenho 28 anos e sou mãe de um rapaz pré-adolescente. Quando a pandemia começou, em 2020, eu estava casada, fazendo o curso técnico de enfermagem e trabalhava como comerciante varejista em Shopping Centers.

Com a pandemia, eu passei a não deixar mais meu filho sair pelo condomínio ou brincar na rua e ele não conseguia entender o motivo. Ele, triste, olhava pela janela e dizia: – Olha lá mãe… Todo mundo brincando na rua! Todos meus amigos nas quadras, e eu aqui em casa, já não aguento mais”.

Ele estava exausto, as brincadeiras dentro de casa já não tinham graça, a escola havia fechado e eu estava super amedrontada e não deixava ele nem “piscar” fora de casa. Parecia um filme de terror sem fim. Sabe aquele apocalipse que tanto nos alertavam desde a infância? Sentia que ele realmente havia chegado. 

Ao acordar, o meu marido já estava com a televisão ligada assistindo incansavelmente a mais um noticiário que nos alertava sobre o maior número de mortes a cada minuto. Às vezes eu parava e pensava: “Será que só eu estou realmente levando isso tão a sério? Onde estão os pais dessas crianças que deixam elas ficarem na rua?” E, por fim, eu fico vista como a errada ou a mãe super protetora.

Senti um desespero quando recebi um e-mail da secretária do suposto médico incrível informando que ele havia ido embora de Brasília para ficar com a família, pelo motivo da pandemia

Filho com epilepsia

Quando meu filho fez nove anos, ele foi diagnosticado com epilepsia. A partir de então, ele tem tomado medicamentos controlados e procuramos o melhor neuropediatra que atendia em Brasília. Comecei a pagar um plano de saúde super caro, pois era o que o suposto médico escolhido aceitava na época. As consultas passaram a acontecer por chamada de vídeo. Nós realizávamos a consulta segurando o celular, sentados em nosso próprio sofá, no conforto do nosso lar, conforto este que meu filho já não suportava mais. 

Realmente, senti um desespero quando recebi um e-mail da secretária do suposto médico incrível informando que ele havia ido embora de Brasília para ficar com a família, pelo motivo da pandemia.

Como eu, sendo uma microempresária, vou manter funcionários sem ter nenhum capital na empresa? Como iria alimentar minha família, pagar boletos que estavam para vencer? Foi um desespero sem fim

Fechamento de shoppings centers, fim do trabalho

O tempo passou e o terror continuou. Eu sempre tentei proteger minha família passando álcool em tudo e em todos. Quando eu e meu ex-marido íamos ao mercado, parecia o fim dos tempos: muitas prateleiras vazias, as máscaras em nossos rostos tampando todos os vestígios de sorriso que poderia surgir, olhares assustados, um silêncio que parece que nos havia matado por dentro e a cada instante. 

No momento em que o nosso empreendimento nos Shoppings Centers faria com que conseguíssemos sair do mar de dívidas, recebemos a notícia de que os shoppings deveriam fechar. Como eu, sendo uma microempresária, vou manter funcionários sem ter nenhum capital na empresa? Como iria alimentar minha família, pagar boletos que estavam para vencer? Foi um desespero sem fim. Não havia nenhuma notícia boa e nenhuma esperança desse pesadelo acabar. Sem a cura, sem a esperança de vacinação, com o caos no governo em nosso País, parecia que não iríamos sobreviver.

No curso de enfermagem, os estágios foram suspensos. E, dessa forma, nós, estudantes inexperientes e despreparados, tivemos que ir à guerra.  Adiantaram o diploma, pois a cada dia que passava eram necessários mais “soldados” da saúde para ir à guerra.

Devemos observar e entender o contexto e não perder a fé. Temos que saber que temos que lutar pelos nossos sonhos e objetivos, mas jamais deixar de ser grato pela vida e pela saúde

Fim do casamento: “Seu egoísmo não o deixava enxergar que diante de tudo aquilo que o mundo passava, o bem maior era a própria vida e a família”

Em meio a essa “tempestade” mundial, o meu casamento não resistiu e sucumbiu em meio a tantos conflitos. As pessoas à nossa volta nos julgavam como o casal perfeito. Porém, todo espetáculo é lindo para quem assiste e só quem vive atrás, nos bastidores, sabe a realidade. 

Ao acordar, sempre via o meu marido mal e desesperado e eu dava apoio e alicerce, sejam eles quais fossem necessários. Eu tentava mostrar que mediante a todo ócio mundial, a nossa família estava bem, tínhamos saúde, alimento na mesa. Mas ele se sentia como se estivesse levando um golpe do destino. Seu egoísmo não o deixava enxergar que diante de tudo aquilo que o mundo passava, o bem maior é a própria vida e a família.

Devemos observar e entender o contexto e não perder a fé. Temos que saber que temos que lutar pelos nossos sonhos e objetivos, mas jamais deixar de ser grato pela vida e pela saúde. Do que adianta chegarmos no topo da montanha sem ter com quem compartilhar? O mais importante é saber como lidamos com o próximo ao longo da caminhada, com quem está contigo nos momentos de dificuldade. 

É fácil ser feliz ao valorizar o próximo nos momentos de bonança e alegria. O sábio é aquele que valoriza e entende que nem tudo são flores. Hoje sei que existe arrependimento em seu coração, mas tudo isso me ensinou a ser uma mulher forte, guerreira e independente. Sou grata a Deus por não me desamparar, por me mostrar o caminho e por me guiar em meio ao caos.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis Prta

“Eu só pensava em não morrer”

Meu nome é Sindy, tenho 22 anos, sou goiana, empreendedora e moro na Ceilândia Norte, periferia de Brasília-DF. 

Quando começou a pandemia do Covid-19, achei que a quarentena fosse durar apenas 15 dias, porém já estamos há dois anos com ela. Como esses dias têm sido longos! 

No começo, todos os dias pareciam iguais. Eram momentos de muita reflexão. Eu pude perceber durante a quarentena que psicologicamente eu não estava bem. Eu entendi também que não era só eu que não estava bem, mas todo o mundo ao meu redor tampouco estava bem. Por isso, eu tentei encontrar meios para melhorar o meu psicológico, com a prática de exercícios físicos e tentando me auto conhecer.

Antes da pandemia, comecei um relacionamento e foi muito complicado pra mim, principalmente no começo do relacionamento, ter que ficar longe de uma pessoa que eu gosto e ter que conviver de maneira mais próxima aos meus familiares. Por mais que eu estivesse acostumada e que amasse minha família, estar em isolamento por causa da pandemia tornou a convivência muito mais difícil.

“Foram tantas vítimas que não quero ser mais uma estatística!”

Desemprego, auxílio emergencial e redes de apoio

Na pandemia, eu me vi  desempregada, tentando me esforçar pra fazer cursos, para ler livros, mas eu só pensava em não morrer ao mesmo tempo que as contas chegavam. Eu mal tinha dinheiro pra me alimentar. Depois de alguns meses de pandemia, o governo resolveu dar auxílio emergencial. Para conseguir o benefício, tínhamos que fazer um cadastro no aplicativo “Caixa TEM”. Todos os de casa fizemos, porém eu não consegui receber esse auxílio. 

A minha irmã e a minha madrasta receberam o auxílio e a gente conseguiu melhorar a questão da alimentação. As despesas fixas (contas de água, luz, aluguel, internet…) obviamente não eram imensas, então “dava pra se virar”. Além disso, minha família recebeu cestas básicas e auxílio gás de organizações não-governamentais (ONG) que antes da pandemia já ajudavam com a questão do combate à fome, especialmente voltada para as pessoas em situação de rua em Brasília. Tais organizações foram a Rede Solidária Barba na Rua, Tulipas do Cerrado, Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas e Frente de Mulheres Negras do Distrito Federal e Entorno/Coalizão Negra por Direito.

Depois desses meses de pandemia, consigo me entender melhor, mas ainda restam sequelas desse Covid-19. Foram tantas vítimas que não quero ser mais uma estatística!

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Prta

“Entendo a frase de Clarice Lispector que diz: ‘Brasília, uma prisão ao ar livre’ pois quando caminho no centro percebo que ressoa a dor”

Meu nome é Eveline, mas desde sempre me chamam de Vivi. Nunca entendi, pois não é um apelido derivado do meu nome, mas hoje sei que a Vivi viveu tantas coisas, vivi e estou VIVA, superando as estatísticas.

Tenho nível superior incompleto, cursando Direito. Vim de um lugar de privilégios, mas hoje ocupo o lugar da não existência, onde os nossos direitos são chamados de benefícios, onde o que foi reservado como resolução para nossos problemas foi o direito penal.

Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre

Vida na rua: uma prisão ao ar livre

Eu moro em Brasília, mas sou nordestina de corpo e alma. Nasci em Teresina (PI), a capital verde do Brasil. Fui atravessada ainda menina nesta mudança de lá para o Distrito Federal. Minha mãe não tinha mais condições de ficar em Teresina, por causa de um processo muito doloroso de separação com meu pai e eu, que era a filha mais nova, tive que vir com ela.

Hoje, depois de muitos anos, entendo a frase de Clarice Lispector que diz: “Brasília, uma prisão ao ar livre!” pois quando caminho no centro da capital, percebo que ressoa a dor. Sou mulher usuária de crack em processo de resistência e enfrentamento há oito anos. 

Não utilizo a palavra limpa porque ela é higienista e nos coloca num lugar de seres imundos, sem humanidade e que é de extrema crueldade. Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre.Sou uma mulher preta. Eu não sabia que era preta, mas descobri num processo também de muita dor. Sou preta! Sou uma mulher periférica e hoje moro em Ceilândia Norte, onde – segundo o rap Cirurgia Moral, grupo que narra a realidade do nosso cotidiano aqui de baixo, “os versos do reino da morte ditam a sorte, nossa vida já é escassa em Ceilândia Norte”, onde o corre da sobrevivência é duro, onde é comum acordar e dormir pensando no que fazer para não deixar filho, neto, enteado e todos os que estão em torno de nossa vida à mercê da sorte, onde as mulheres resistem.

O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana

Vida na rua e no cárcere: cultura punitivista e proibicionista

Eu saí da rua em 2015, meu companheiro de vida e caminhada havia sido privado de liberdade e eu precisa dar suporte a ele, que é um homem negro, pobre e saiu de casa aos nove anos de idade. Foram 34 anos de rua, rua e grades e vice e versa. 

Viver o cárcere foi outra dor extrema. Crescemos dentro de uma cultura punitivista e proibicionista, que faz controle de corpos por meio de uma política de miséria, da qual a guerra e as drogas fazem parte. Todo o tempo que meu esposo ficou naquele lugar, eu fui a chefe de família, a mãe, a avó, a madrasta. 

Passei por um câncer no colo do útero e a cada dia surgia uma nova dificuldade. O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana. O que chega para sociedade não é a realidade, nem do processo penal e muito menos da execução da pena. Mas eu somente compreendi isso quando vivi. 

Foram tempos difíceis. Ali meu melhor amigo e parceiro de vida estava submetido a todo tipo de violação. Não só ele como todas as pessoas privadas de liberdade neste país, principalmente as mulheres, que são abandonadas pela sociedade machista e patriarcal. Antes de tudo a sociedade nos pune por sermos mulheres. 

No sistema prisional, nós, familiares, somos também aprisionados e eu estava mesmo adoentada, me virando para poder suprir as necessidades da minha família, me alimentar, ter onde morar, não perecer. Eu fazia faxina, cozinhava para eventos, fazia trabalhos freelancer, de domingo a domingo incessantemente.

São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito

Luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista

Em 2019 eu cheguei no limite de minha sanidade mental e fui acolhida pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento. Foi nesse espaço que eu senti a potência dos movimentos sociais. Eu não sabia como funcionava e somente acreditei que existia um lugar para familias de pessoas privadas de liberdade e sobreviventes do sistema prisional quando vi com os meus próprios olhos aquelas pessoas que faziam resistência e enfrentamento de forma coletiva. 

Quando cheguei no encontro, realizado no final daquele ano, em Fortaleza -CE , conheci muitos movimentos: o Coletivo Vozes do Cárcere, Elas Existem, EuSouEu, AMPARAR, RENFA e também as Tulipas do Cerrado

Nunca imaginei que ali eu encontraria o abraço, o acolhimento, inclusive a subsistência através do apoio coletivo dos movimentos e organizações que compõem essa luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista. São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito. 

Naquele dia minha vida mudou, principalmente em relação à solidão que eu vivia na caminhada do cárcere. Conheci tanta gente incrível e que vem me ensinando tantas coisas. Uma delas foi Juma Santos. Nunca deixarei de citá-la porque as Tulipas do Cerrado é um dos lugares que hoje para mim é vida.

“O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada”

Pandemia: sem emprego, sem perspectivas

Quando a pandemia do Covid-19 chegou, fiquei sem fazer as faxinas, sem os freelancers e, se não fosse por essa rede de apoio, eu e minha família teríamos ficado sem amparo. Através destes movimentos, foi garantido a sobrevivência, a minha e tantas outras mulheres, sobreviventes da rua, do cárcere, o povo LGBTQIAP+ que sofrem e vivenciam grandes violações, abandono e são excluídos de forma muito cruel. 

No início da pandemia, meu esposo voltou para casa, em regime domiciliar. O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada.

“Não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19”

Rede de apoio: seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo

As Tulipas do Cerrado fizeram uma intervenção que foi crucial na mudança de visão de vida e de amparo na vida de meu esposo. Aliás, acolheu nossa família e estamos seguindo de pé por termos esses lugares de resistência, bem como a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, que vem trazendo também formas de fortalecimento para nós familiares. 

Nada sobre nós sem nós, seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo, se cuidando juntas (os) e juntes. E hoje sei a importância da redução de danos nas nossas vidas. Sim, eles “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de ficar vivas (os) e vives! ”. 

A pandemia trouxe dificuldades muito piores para nós, mas eu posso falar que não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19.