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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Mulher Trans Prta

“Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas não era verdade”

Me reconheci como trans em 2002, entre 13 e 14 anos, quando tomei meu primeiro hormônio escondida.

Sou de Ilhéus, mas moro em Salvador desde 2014. Sou graduada em Educação Física. Tive dificuldade de conseguir emprego na área de formação, por isso, passei a atuar na área de ‘telemarketing’.

Estou envolvida no ativismo trans desde 2008. Minha relação com meu pai não é tão boa. Os pais criam expectativas sobre os filhos, de forma geral, e quando esse filho é trans (ou até mesmo cis-gay), eles acreditam que não terão netos, uma descendência. Já com a minha mãe, tenho uma relação de amizade.

Se reconhecer como uma pessoa trans

Roubava calcinhas da minha irmã, para usar e sair na rua. O que foi definitivo para eu saber que sou trans tão cedo, foi o fato de ter referências, como Roberta Close, uma mulher trans da minha cidade, que viajou para a Itália e depois retornou transformada — quando eu nem sabia o que era silicone.

 A partir dessas referências, pude entender ser aquele corpo, aquela forma que eu queria assumir. Elas — mulheres trans famosas e precursoras na visibilidade — foram muito importantes para muitas se verem nelas, assim como nós somos e seremos importantes para outras. Durante o ensino médio enfrentei dificuldades com o preconceito e cheguei a evadir devido à discriminação, visto que eu era impedida de acessar o banheiro feminino, sendo a única trans da escola — tinham muitos gays.

Às vezes eu tinha que sair da escola para usar o banheiro da casa de uma colega que ficava do lado — já cheguei a urinar na roupa.

Também tive questões com o ensino de disciplina ligada à religião, que usava de práticas evangelísticas e cristãs, cujo discurso era transfóbico e não contemplava outras religiões.

Uma juventude conturbada

Voltando a falar da minha relação com a minha mãe… é muito fraternal. No início houve a não aceitação, mas as coisas mudaram, principalmente, quando me tornei a única filha – entre mais 3 mulheres e 4 homens cis – que se formou numa faculdade.

Isso é motivo de orgulho para mim, e motivo de orgulho para ela, ainda mais tendo outros filhos que se envolveram no mundo do tráfico.

Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas percebeu, na prática, que isso não era uma verdade. Por isso, costumava dizer que — “eu não lhe dava orgulho em um ponto (por ser trans ) — mas dava orgulho de outras formas”

Eu precisei tentar compreender muitas falas dela, como essa.

Entender que ela já é uma mulher de mais de 60 anos e sua formação foi outra. Eu passei a interpretar não apenas o que ela dizia, mas o que ela queria dizer. Esse acolhimento é importante, inclusive, devido ao que minha mãe já sofreu, sendo agredida e espancada pelo meu pai, em um contexto machista e de subserviência. Entretanto, ela sempre foi batalhadora… não esperava pelo meu pai, mas ia à luta, trabalhava e fazia todo o possível para trazer o sustento para a nossa casa.

As dificuldades de uma pessoa trans

Depois de um tempo eles se separaram, e nós, os filhos, ficávamos com ela. Após me formar no ensino médio, trabalhei na Secretaria de Educação.

Lá, tive meu nome social respeitado.

Experiência importante para que eu me posicionasse na faculdade, em Itabuna, quanto a preservação do nome social — eu e uma colega fomos as primeiras trans da faculdade a termos o nome social na caderneta — e, também, quanto ao uso do banheiro feminino.

Estagiando no SESI, em Ilhéus, em 2011, não era aceita como mulher trans, mas tratada como homem cis gay.

Era difícil não ter o meu nome respeitado, mas eu precisava daquele dinheiro, porque não queria ter que me prostituir, como já havia feito algumas vezes.

Em 2014, mudei para Salvador e saí do SESI, mas retornei em 2016. Foi quando eu disse que só aceitaria voltar se tivesse a minha identidade de gênero plenamente respeitada, o que me foi negado, de modo que recusei me submeter àquela condição de trabalho.

O mercado de trabalho para pessoas trans

De volta a Salvador, encarei a dificuldade de conseguir um emprego. Dizem que a culpa é da falta de formação, mas quando formamos, continuamos amargando o desemprego. Isso é cansativo… marcas, empresas e instituições que se promovem se afirmando inclusivas porque oferecem um curso, uma oficina, mas que não mudam a realidade e nem oferecem o que realmente precisamos, que é trabalho.

Passei a atuar na área de telemarketing, mas como o dinheiro só é suficiente para pagar as contas básicas, ainda faço alguns trabalhos de prostituição. Durante a pandemia de Covid-19, mantive a minha rotina de trabalho, porém, com todas as limitações impostas pelos protocolos sanitários de prevenção ao coronavírus.

Tive medo, mas não me infectei pelo vírus. Eu cheguei a sair, sim, durante o lockdown, até por uma questão de necessidade. Eu sentia urgência em aproveitar a vida, que é tão curta. Mas prezei por minha mãe, que estava em Ilhéus, em quarentena.

Não tive nenhuma perda significativa de pessoas. Apenas conhecidos distantes, o que, de alguma forma, me entristecia, mas não impactava tanto. O que realmente me impactou foi, já em 2021, ter ficado desempregada. O que garantiu o meu sustento fora os clientes que mantive enquanto garota de programa.

Os anseios do pós-pandemia

As ajudas dos projetos e iniciativas sociais, que ofereceram cestas básicas para pessoas em vulnerabilidade, incluindo pessoas trans, também foram de suma importância para eu conseguir passar por esses momentos de isolamento social.

Usei o tempo em casa para aprender a cozinhar melhor, fazer cursos online e estudar — aproveitei para assistir filmes, séries e aprendi a me cuidar mais e dar valor a minha vida.

Quero muito conseguir voltar a trabalhar e dentro da minha área de formação.

Desejo tocar projetos sociais e de ativismo que ajudem as minhas iguais, e espero o momento em que esse presidente saia do cargo, para podermos ressignificar tudo ao nosso redor, retomando políticas públicas e enfrentando o preconceito e a discriminação.

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60 anos ou mais Bahia Ensino Médio Completo Mulher Trans Parda

Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura.

Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.

Tenho 60 anos e acredito que envelhecer é um privilégio, principalmente para a mulher trans.

O nome que escolhi é um fragmento do meu nome de registro — bíblico — um apelido pelo qual já me chamavam. Venho de uma família de 12 irmãos, cristãos adventistas do sétimo dia. Nasci em Mundo Novo e fui criada em João Dourado, uma vila.

Descobri muito cedo que era diversa, não porque eu pensava ser, mas porque minha mãe dizia que eu era diferente, meus irmãos e irmãs diziam que eu era diferente, a igreja dizia que eu era diferente.

Eu não sabia o que era “ser diferente”

Eu só sabia que não gostava das mesmas coisas que eles, por isso resolvi silenciar, por não suportar ser apontada como culpada por tudo, justamente pelas minhas diferenças. .

Aos 14 anos, cursando o segundo grau, eu cantava e era ensinada a tocar instrumento pela esposa do pastor, que me adorava. Todo mundo dizia ao meu pai que eu era uma criança maravilhosa, mas ele não conseguia aceitar a minha natureza tão distinta dos meus outros irmãos.

Eu não gostava de jogar bola, ir para a roça e tomar banho no açude.

Me identificava muito mais com as minhas irmãs. Eu ficava muito revoltada, questionando o porquê de me chamarem “veado”, “salta moita”, — visto que eu nem sequer tinha experiências sexuais ou manifestava desejos.

Sonhava e imaginava que minha vida seria transformada de uma hora para outra, mas não sabia como.

Tinha muito apreço pela igreja. Ainda aos 14 anos, perdi o meu pai. Foi quando minha mãe entendeu que seria melhor para eu morar com as minhas irmãs em Salvador, onde elas já estudavam.

A passagem por Salvador e Rio

Passava um tempo com cada uma delas. Elas não eram perversas comigo, mas havia, sim, uma repressão, que hoje eu consigo entender com mais facilidade. Aos 16 anos, fui ajudante de cabeleireira e, aos 19, concluí o segundo grau.

 Estudando à noite, eu via mais meninos gays, com liberdade de serem quem eram. Fiz amizades e, nessa fase, eu me entendi enquanto homem gay, porque eram as referências mais fortes que se tinha. Ainda não sabia o que era “trans”.

Sabia que gostava de homens e que não me identificava com as vivências mais comuns. Tive meu primeiro relacionamento gay ótimo. Mas melhor ainda foi ter descoberto os palcos.

Me tornei transformista, comecei a fazer shows na noite e ter muito sucesso em Salvador. Fui eleita Miss Beleza Gay, Miss Universo, e aos 22 fui para o Rio de Janeiro, me apresentando.

Eu representava o Nordeste, interpretando Sarah Jane com o sucesso “A Roda”. Numa noite, no Teatro Brigitte Blair, conheci Claudia Celeste — a primeira travesti a atuar como atriz em novelas brasileiras — que se tornou a minha referência.

Quando a vi, entendi ser aquela forma feminina que eu queria assumir. Encontrei-a no camarim, conversamos, ela me convidou para a sua casa e me ensinou todos os próximos passos. Entendi que não seria fácil incorporar o universo trans, mas estava decidida. Liguei para Salvador, para me desligar do salão onde trabalhava como ajudante, e no dia seguinte, já comecei a tomar os hormônios. Fiquei três anos no Rio sem ver a minha família. Já estava transformada, gloriosa. Os homens já paravam os carros — e é importante falar, nesse ponto, que não são as mulheres trans que buscam pela prostituição, mas a prostituição que nos chama.

“Somos empurradas para essa vida.”

Imagine: eu trabalhava no salão ganhando 250 reais por semana, o valor de um programa ou até mais.

Nós, transexuais, somos essência.

Nós apenas pomos para fora o que existe dentro. Por isso, arriscamos pôr silicone e fazer cirurgias — nós nos expomos à morte numa mesa de cirurgia para conseguirmos expressar a nossa feminilidade.

Passados os três anos, voltei para Salvador para visitar as minhas irmãs. Imaginei que, por estarem na universidade, entenderiam meu processo de mudança. Ao adentrar a casa, me encontrei logo com dois dos meus irmãos. Foi um momento violentíssimo. Para eles, foi como se eu tivesse virado um monstro.

Toda a minha infância veio à tona. Aquilo me deixou destruída, decaí muito. Dali, busquei apoio com amigas, pois acreditava que não conseguiria bancar a transição para a minha família. Apesar da dor e sofrimento, eu não conseguia sentir ódio.

Não voltei mais para o Rio e quase cheguei a desistir por conta do desânimo em que eu me encontrava.

Mas eu já estava tão bonitinha — porque nós ficamos bonitinhas no início; linda, nós ficamos depois que entende a vida e nossa alma.

 Retomei os shows em Salvador e tive sucesso. Representava Gretchen, justamente porque os taxistas mexiam comigo e me chamavam assim por causa do excesso de silicone e harmonização. Aproveitei para ganhar dinheiro fazendo programas com esses mesmos homens. Um tempo depois, uma amiga me disse que deveria ser “puta” na Europa.

Apesar de estar em um relacionamento em que eu amava muito o meu companheiro, decidi abrir mão e me aventurar – principalmente porque eu vivia insatisfeita com o sexo.

A genitália me causava um incômodo que eu ainda não sabia como chamar — hoje, sei: disforia.

A estadia na Itália e o câncer

No fim desse percurso, descobri um câncer no intestino. Veio o pânico. Com toda a vivência cristã que tive desde a minha criação, pensava que todos estavam certos — que era um “castigo de Deus devido ao pecado”.

Foi muito difícil, porque eu sempre acreditei em Deus. Nunca mudei de religião. Eu me considero adventista do sétimo dia, porque essa fé me bastou.

E, apesar de renunciarem a nós, a família é a nossa base. Conversei muito com Deus. Iniciei o tratamento, usei bolsa de colostomia por quase três anos e consegui vencer o câncer. Gastara metade das economias que havia feito — inclusive, para a cirurgia de resignação.

Nessa etapa, minha irmã disse ter entendido o que eu queria e vendeu o próprio apartamento – passando a morar junto comigo – para que eu pudesse ir para a Tailândia realizar o meu sonho.

Eu ressurgi das cinzas. No meu retorno aos palcos, ainda fragilizada, bem mais magra, ouvi alguém da plateia fazer um comentário infeliz que — após me posicionar — me fez abandonar os palcos. Aquilo me magoou ainda mais porque o ambiente era uma casa gay, e eu esperava — e desejava — ser acolhida e respeitada naquele lugar.

Mais uma vez, encontrei apoio e suporte nas amigas. Sentia haver perdido um pouco da estrutura para enfrentar a vida. E um câncer também nos fragiliza.

Mas a cirurgia foi a gota d’água de felicidade para mim. Eu me sentia em paz comigo, até mesmo sexualmente. Encontrei uma pessoa, aproveitei a nossa relação e logo em seguida descobri outro câncer, agora na tireoide.

Dessa vez, foi menos intenso. Até porque, por algum motivo, o médico disse que as minhas cordas vocais estavam limpas e que já não era mais um câncer. Retirei a tireoide e segui trabalhando como cabeleireira.

O início da pandemia

Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia de Covid-19, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.

Muitas pessoas indicavam o meu trabalho como profissional de beleza: “Dicca, vem fazer uma escova”, “Dicca, vem me maquiar”, e, claro, eu ia e fazia preços mais baratos.

Durante a pandemia eu perdi duas irmãs, mas não por Covid-19.

Uma, logo no início, que estava lutando contra um câncer, e outra por um infarto fulminante. Com a perda de minhas irmãs, perdi também o equilíbrio. Porque a família é a base da gente – isso é uma verdade.

Por mais que eles tenham nos renunciados, nós nutrimos amor, de alguma forma, por essas pessoas. Por isso dói tanto. A irmã que ficou comigo, dependia muito de mim. Eu fiquei muito para baixo.

A vulnerabilidade causada pela pandemia

Foi quando fui salva por minhas amizades outra vez. Fomos nos apoiando e encontrando formas de ajudar umas as outras. E eu não tenho vergonha de pedir. Chegou um momento em que eu não tinha dinheiro nenhum.

Estava morando em um apartamento próprio, mas precisava pagar condomínio, contas de luz; precisava do básico: tomar banho, escovar os dentes, tomar os remédios para o estômago, tireoide e pressão.

Cabeleireira, com 60 anos, nunca tive carteira assinada e não recebo nenhuma assistência de serviço social.

Sempre fui militante, porque toda trans é militante. Quando ela dá a cara para a sociedade, ela está militando. Eu só não cheguei ao extremo de uma tristeza profunda — para não dizer “depressão”, pois não gosto dessa palavra — devido às pessoas que conheciam a minha história e me acolheram.

Buscamos por esperança e pelo fim da pandemia

O fim da pandemia não é tão esperançoso. Os contextos e dificuldades só se agravaram. Tenho muitas limitações. Apesar de tudo, eu sou uma pessoa feliz. Meu sonho é conseguir uma aposentadoria ou auxílio que me possibilite descansar, sabendo que terei, pelo menos, o básico para me manter.

Eu não tenho mais condição de ir para as ruas. Não condições físicas, pois, mesmo com a minha idade, ainda tenho um corpo bonito e poderia colocar um vestidinho preto para me prostituir. Isso ainda acontece vez ou outra. Mas não tenho mais estrutura para isso.

Nós realmente precisamos aprender a amar e valorizar os amigos.

Mais do que com palavras. Com atitudes reais. Estender a mão antes de alguém “cair no buraco”.

Na pandemia, eu aprendi a falar a palavra “amor”, mas, muito mais, viver ela. Amar é um sentimento nobre.

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40 a 59 anos Bahia Branca Ensino Médio Completo Mulher Trans

Nós, mulheres travestis, juntas, temos força

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Chamo-me Ranella Marcia, tenho 50 anos, sou virginiana, moro na Pituba (BA) e sou casada há 26 anos.

Meu histórico de vida é de muita luta.

Orgulho-me de ter superado a expectativa de vida de uma travesti, que neste país é de 35 anos. De ter superado, também, a marginalização que nos nega o amor e a relação estável.

A luta de uma travesti por respeito

Sempre fui muito “para frente”. Sempre me entendi como travesti, mesmo sem saber direito o que significava.

Fui muito criticada por “não ter limites” e mostrar quem era. Esperei um tempo para me tornar a mulher que eu queria em respeito a minha avó.

Eu me identificava muito com revistas. Fazia diversos recortes — adorava recortar imagens de bonecas de biquíni, roupas e fazer colagens. Minha avó nem sequer me deixava chegar na cozinha, pois não era “coisa de homem” — os papéis eram muito bem definidos.

Quando ela se foi, em 1994, eu “explodi”. Conheci meu marido nessa época. Eu sabia que gostava de homem.

Logo, me reconhecia como uma mulher heterossexual. Hoje, me considero bi, porque entendi que o que importa é o prazer, independente de quem seja.

Processos de se reconhecer como travesti

Por um tempo, quando morei em Cajazeiras, tive uma vivência de gay afeminada, bem louca, o que chamam hoje de “lacradora”. Tanto que era conhecida como “Xuxa da Cajazeira 8”.

 Isso porque, antes, só se considerava como travesti as pessoas que tinham uma estética realmente feminina, com cabelo grande, silicone e seios. Estudei a troncos e barrancos, porque sofria bullying e agressão. E não era só agressão verbal, mas física. Mesmo assim, sempre fui uma liderança no colégio. Fazia parte do teatro e jogava futebol — isso fazia com que eu conseguisse fazer amizades.

Já no segundo grau, comecei a ter problemas com o uso do banheiro. Além disso, comecei na prostituição. Por diversas vezes, após assistir às aulas, troquei a farda pela “roupa de puta” dentro próprio colégio e fui para as ruas da Pituba.

Quando estagiei nos Correios fui muito discriminada.

Foram idas e vindas pelo período de dois anos. Após conhecer o homem que hoje é meu marido. Fomos morar no Centro e eu parei de estudar. As idas e vindas também foram uma constante quando morei na Itália.

Ao retornar definitivamente, participei de um curso na área de Administração. Lá, questionei: “o curso já temos, e o emprego?”. Como resposta, questionaram a minha formação: “como vocês querem emprego se vocês não estudam?”. Foi nesse momento que decidi retomar os estudos e concluir o segundo grau. Após ocorrido o, me coloquei como uma liderança.

Fui a primeira travesti a ter o nome social na caderneta da escola.

Foi quando enfrentei uma professora que me chamava pelo nome de registro.

Exigi que ela me chamasse pelo nome que escolhi e fui apoiada por todos os colegas da turma, que ameaçaram deixar a professora dando aula sozinha caso ela não mudasse a conduta.

 Ali, também, eu percebi como poderia me articular. Aquele apoio foi muito importante. Isso me formou como alguém que, hoje, é ativista pelos direitos da comunidade trans, que luta por si, mas também, por tantas outras iguais.

Ajudei algumas meninas travestis durante a pandemia

Consegui viver bem durante a pandemia devido ao aluguel casas. O que precisei fazer foi negociar reajustes com meus inquilinos, diminuindo os preços e fazendo acordos. Houve mudanças no acolhimento das travestis que moram em meus imóveis também, dando preferência àquelas que não trabalhavam na rua, mas que atendiam em domicílio os clientes.

Tudo isso, para a segurança delas, e também, pelo meu marido, que faz parte do grupo de risco.

O fato de não pagar aluguel e ter renda foi muito importante para mim. Além disso, eu sou muito organizada. Todos os gastos são bem regrados, sempre deixo uma reserva.

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Meu marido é um grande parceiro. Ele que resolve as coisas para mim, inclusive burocracias e finanças. Eu realmente não sei como eu conseguiria lidar com a perda dele. Antes da pandemia eu costumava viajar muito. Com o lockdown, fiquei mais em casa, e pude aproveitar a companhia do meu marido. Também pude curtir e observar o crescimento dos meus animais de estimação. Coisas simples e importantes que me fizeram bem.

Tranquilizei-me muito com a vacinação. A maior parte da minha vida acontece fora de casa. Assim que meu marido tomou a dose única, me senti à vontade para retornar às ruas.

A Covid-19 tirou de mim três grandes amigas

Em muitos momentos, me arrependia de agir por impulso, mas, depois de 2 meses de quarentena, eu já não aguentava mais ficar trancada em casa sem ter o que fazer. Cozinhava, limpava a casa e já não havia com o que me distrair.

Uma das coisas que mais senti falta foi da presença das minhas amigas, que assumem o comando da minha casa quando me visitam – tiram a MPB, que costumo ouvir, e põem lambada enquanto bebemos cerveja.

As pouquíssimas pessoas que foram à minha casa durante a quarentena. Todos seguiam rigorosamente os protocolos de segurança, como, por exemplo, numa comemoração pequena de aniversário que fiz.

Perdi três amigas maravilhosas para à Covid-19. Nesse tempo, por outro motivo, também perdi Vida Bruno, que morou comigo durante a pandemia. Um amigo para todas as horas, momentos e empreitadas.

Estávamos planejando projetos para ajudar pessoas trans, público para o qual ele tinha uma sensibilidade fora do comum. Nesse período caótico, eu enxerguei a força que nós temos.

A batalha das travestis por respeito e dignidade

Vivemos com muito medo de transfobia, ouvimos palavras que nos rebaixam e reduzem a nada, mas a verdade é que resistimos e nos suportamos em meio a essa crise sanitária — que afetou tantos outros setores.

Eu consegui abrir portas para muitas, e outras vieram juntas, abraçando e fortalecendo o movimento. Eu entendi que nós temos, sim, poder, e assumimos esse poder que descobrimos em nós.

Podemos tudo!

Podemos e vamos crescer e ocupar lugares cada vez maiores.

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25 a 39 anos Ensino Superior Completo Mulher Trans Pará Parda

Queremos o expurgo da Covid-19

No primeiro ano da pandemia de Covid-19, eu passei algumas problemáticas relacionadas à moradia, já que eu residia no espaço cultural Das Liliths .

Eu sou Xan Marçall, uma kaaboka amazônida de Belém do Pará. Resido em Salvador há 15 anos. Sou travesti, filha de uma mulher branca carioca e de um pai preto e kaaboko da Amazônia.

Tenho 35 anos e vivo com HIV há 6 anos. Atuo como professora de Arte e Teatro na educação básica, trabalhando com crianças e adolescentes com métodos de criação colaborativa.

Faço parte de um coletivo de teatro em Salvador chamado Das Liliths, e juntes, realizamos um trabalho pioneiro nas artes, por meio da busca de histórias LGBTQIA+ ancestrais no processo de construção identitária do Brasil.

Ir para Salvador foi uma forma de tentar uma vida menos difícil do que a que vivia em Belém, sobretudo, porque a realidade amazônica, sendo eu, também, filha da periferia, me colocava frente a muitas adversidades.

O primeiro ano de Covid-19

Com o fechamento dos comércios e a não realização de atividades artísticas e culturais presenciais, não tivemos como gerar renda e fomos obrigadas a entregar o espaço. Assim, me deparei com alguns dilemas.

 Estive, inclusive, adoentada nesse período.

Encontramos uma nova moradia.

Nesta residência eu tive 19 dias de tranquilidade, até receber um aviso de evacuação emergencial do imóvel. A residência estava situada em uma região de alto risco de desabamento.

Fui para casa de um amigo que me hospedou durante 1 mês. Depois disso, audaciosamente, eu retornei para a casa que estava sob risco de desabamento e, passei a viver lá durante o ano de 2020 — acreditando que ela não ia desabar.

Não desabou!

Recebi cestas básicas, algo que me tranquilizou e me permitiu dar atenção a outros setores da minha vida. No entanto, o atendimento básico de saúde voltado à minha vivência positiva foi totalmente negligenciado.

HIV e negligência em meio à Covid-19

Minhas consultas essenciais foram interrompidas, como infectologista, clínico geral, dentista e exames ambulatoriais. Além disso, me prescreveram uma receita para eu poder pegar medicamentos e enfiar ‘goela baixo’, sem nenhum acompanhamento médico.

No fim de 2020, eu voltei para Belém para realizar um trabalho — a previsão era ficar apenas 15 dias e já vai completar 1 ano que estou no Pará.

Neste meio tempo, muitas coisas aconteceram, e o ano de 2021 foi envolto em problemas familiares e abandono de tratamento por falta de orientação. Tudo por conta de burocracias e falta de informação básica no sistema de saúde — que não é compartilhada.

Nesse turbilhão todo, pensei que ia surtar, embora, estivesse um pouco mais segura financeiramente, por estar na casa da minha família. Entretanto, os outros problemas ainda me alcançavam e afetavam.

Por fim, consegui resolver a minha situação e retomar meu tratamento — que teve intervalos de não adesão — e, então, fui compreendendo que não aderir ao tratamento é algo muito sério, mas que também não pode ser resumido a questões rasas, pois envolvem muitas camadas.

“Existem, sim, casos de pessoas que abandonam o tratamento porque não querem, e outras, que não conseguem aderir por falta de dinheiro, saúde mental, tempo de deslocamento, negligência no acompanhamento, informações obscuras e má qualidade de alimentação.”

HIV, Covid e outras questões…

O ano se encerra, e eu estou tomando as rédeas da minha cabeça, pensando que, nessa pandemia de Covid-19, além do expurgo desse vírus, queremos e reivindicamos também a cura da AIDS, que já tem 40 anos — e segue em curso.

Sigo, remediada, com uma quantidade química tóxica em meu organismo. Lutando, resistindo e esperançando por dias melhores.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Fundamental Completo Mulher Trans Parda

Eu não pude parar durante a pandemia

Durante a pandemia, fiquei sem ir ao interior — e sem visitar a minha mãe — por 2 anos. Nos comunicávamos por telefone. Quando tudo fechou, eu fiquei um pouco assustada.

Nasci no interior da Bahia, em Cícero Dantas. Após a separação dos meus pais, quando ainda tinha 3 meses, fui com minha mãe morar em Ribeira do Pombal.

Tive pouco contato com meu pai. Minha mãe, doméstica, sempre me aceitou, e eu, desde muito nova, sempre demonstrei a minha essência.

Minha mãe tem uma mente muito aberta, e nunca me discriminou.

Uma vida bem distante da pandemia

No interior, onde morávamos, existiam outras mulheres trans. Aos 15 anos, comecei a tomar hormônio.

Aliás, também vivi a prostituição normalmente, – fazia programas em postos de gasolina, com caminhoneiros e nas festas que aconteciam na cidade – inclusive, em cidades vizinhas.

Estudei até a 8ª série do ensino fundamental. Era uma vivência que eu avalio como tranquila, com poucas importunações, apenas com algumas piadas e coisas do gênero.

Na maioria das vezes, eu não me importava tanto com as situações, – a não ser que eu me sentisse agredida. Acredito que eu tinha essa postura por ser muito acolhida em casa, com a minha mãe, que nunca me discriminou e sempre me defendeu.

Isso mostra a importância do apoio familiar para pessoas como eu. Com 18 anos, uma amiga, também trans, me chamou para conversar, e disse ter um apartamento em Salvador, que eu poderia — e deveria — tentar passar um tempo aqui para tentar mais oportunidades.

Vivendo em Salvador

Aceitei a proposta. Me mudei para Salvador, e gostei da cidade. Hoje, com 28 anos, ainda moro na capital baiana. No início, dividia essa casa com outra menina trans.

Mas, depois de um tempo, senti necessidade de morar só, ter o meu canto. Senti precisar de mais privacidade para atender os meus clientes, como garota de programa, e, ter a minha liberdade.

A pandemia

Uma amiga do interior me ligou, desesperada, dizendo que eu deveria voltar para o interior por conta da pandemia. Neste momento, consegui manter a calma e respirar fundo.

Primeiro, porque eu tinha as minhas economias — eu sempre guardava uma parte de todo dinheiro que eu fazia atendendo, tanto nas ruas, quanto em sites.

Também, porque recebi ajuda, apoio, cesta básica. Não pude parar os atendimentos em meio a pandemia. Era inviável fazer isso nas ruas, mas sempre que um cliente entrava em contato, eu o encontrava.

Mesmo com as minhas economias, uma hora, eu iria precisar do dinheiro, ora para pagar o aluguel, ora para as minhas despesas básicas.

Alguns dos clientes se preocupavam com protocolos de segurança e tinham mais medo, mas, outros não. Apenas diziam precisarem espairecer a cabeça, dar uma volta na cidade — como se eu fosse a distração para toda aquela pressão da quarentena, de estar convivendo tanto com a família.

Eu não podia dizer não

Além dos programas, eu performava em casas de show. Contudo, com as casas fechadas, não tínhamos como atuar. Só à medida que começaram as flexibilizações das normas, é que nós pudemos, pelo menos, fazer os shows através de lives.

Contudo, não era a mesma coisa, na verdade, aparentou ser bem estranho não ter os aplausos, o calor humano, a “churria”.

Todo esse processo me fez ficar muito ansiosa e, com isso, comecei a comer mais, e engordei. Fique frustrada, pois, trabalho com o meu corpo.

Sentia muita vontade de que as coisas voltassem ao normal, que eu pudesse ir à praia e tomar uma cerveja.

Quero muito realizar o sonho de ter uma casa própria. Não quero voltar para o interior. Espero poder tirar logo essa máscara — que eu não suporto. E que, nós saiamos desse momento, colocando em prática tudo o que dizemos ter aprendido sobre amar o próximo

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Ensino Superior Incompleto Mulher Trans Parda

Encontrei amparo em Deus

Eu converso muito com Deus. Apesar de todas as tristezas que tive, e todas as dores que passei, acredito que Deus é a essência da vida. Independentemente de ser mulher trans, Ele é uma fortaleza, que me concedeu a cura.

Meu nome é Lorrany, tenho 40 anos, e minha história de vida é bem atribulada. Pai e irmão policiais civis — e o desejo, era que eu também me tornasse policial.

Uma crianção dolorosa

Tive uma criação extremamente rígida e machista. Já percebiam que eu era diferente.

Além disso, as diversas religiões cristãs que estavam no meu contexto — da Assembleia de Deus até Adventista do Sétimo Dia e Testemunha de Jeová — também eram usadas na tentativa de exercer controle sobre a minha forma de existir.

Meus irmãos jogavam futebol – um deles, em quem eu achava que deveria me inspirar, chegou a ser profissional – e sempre ouviam “piadinhas” dos amigos relacionadas a mim.

Por isso, me agrediam em casa. Recebia murros e pontapés. Minha família não aceitava as minhas diferenças e o meu jeito de ser. Eu via meu pai brigar com minha mãe por minha causa, a ponto de dizer-lhe — “escolha: ou o seu filho, ou eu”.

A fuga

 Aos 16 anos, fugi de casa. Fui morar em uma palafita na periferia com um, já falecido — assassinado —, colega gay.

Após o ocorrido, liguei para minha a mãe, desesperada. Ela me disse para procurar uma casa, que ela se responsabilizaria pelo pagamento do aluguel.

Ela me apoiou em todos os momentos e, até me ajudou a mobiliar a casa e me sustentar.

Com 24 anos, já tendo o corpo que eu sempre quis ter, e terminado precocemente o segundo grau, decidi voltar aos estudos.

Em meio a tudo isso, eu ainda estava vivendo um outro drama: o de ter problemas devido ao silicone em que havia colocado em meu corpo. Cheguei a ficar 4 anos em uma cadeira de rodas, e mais 3 anos usando muleta.

Minha mãe me deu todo o suporte. Neste percurso, me envolvi com outros homens, até conhecer um rapaz de São Paulo. Ele me disse precisar ir embora da cidade, com isso, eu abri as portas da minha casa para ele.

Deus sempre oferece o melhor caminho

Ele era sócio de uma rede de lojas. Usou o meu nome para seus próprios negócios e, acabei contraindo as dívidas que ele tinha, que eram muitas — a ponto de cerca de cinco rapazes chegarem a perseguir e, quase matar ele, que fugiu de volta para São Paulo e deixou tudo comigo.

Comecei a trabalhar com essa loja, pagar as dívidas e investir. Comprei outras duas casas, construí uma nova vida, comecei a faculdade — de enfermagem — e fiz a minha vida mudar.

Por causa do meu curso na faculdade, passei a estagiar em hospitais. Durante a pandemia, eu estive atuando na linha de frente do combate à Covid-19. A minha vida sempre foi urgente.

Meu contexto sempre foi de perigo. A morte sempre esteve perto, à espreita.

Enquanto, para muitas pessoas, o vírus apresentou uma realidade distópica, para mim, ele era só mais um risco. Um entre os tantos que eu corri, corro e supero.

Não tive medo. Fui “jogada” dentro de um hospital de campanha com pacientes infectados pelo coronavírus e, em vez de ter medo, eu entendi ser uma oportunidade para que eu, mulher trans, tão excluída e preterida no mercado de trabalho, pudesse ter alguma experiência e aprendizado.

Isso revela as desigualdades que são um abismo entre nós. Algo que para uns é novo e assustador, para outros, é o triste cotidiano.

Os planos de Deus

Era a minha primeira experiência de trabalho. Eu vi pessoas morrendo na minha frente, muitas pessoas, e aquilo me impactou, — mas não a ponto de me amedrontar e paralisar. Eu não me abstive de sair, e seguir a vida.

Sempre senti precisar viver tudo o que quisesse, logo. Principalmente diante dos riscos.

A minha saúde mental dependia disso. Vi colegas sucumbirem também por demandas mentais — e eu, prezei pelo que necessitava. Não consegui fazer quarentena. Fui diagnosticada com Covid-19, tive febre alta, perdi o paladar, mas nem nesse momento, eu senti medo.

Mantive distância das pessoas e as avisei do meu diagnóstico. Só temi por minha mãe. Ela é uma amiga para mim.

Nós brincávamos, dançávamos e conversávamos. Dei todo suporte a ela, tanto que, devido aos meus estímulos — colocando-lhe medo, por exemplo, ela parou de fumar.

Foi possível me manter durante esses tempos, morando só, porque recebi bolsas dos estágios voluntários, além de ter recebido cestas básicas. Meu pai morreu durante a pandemia. Ele contraiu coronavírus, mas foi um câncer de garganta que o levou. Ele nem sequer falava comigo, mas pediu para eu ver o seu exame.

Naquele momento eu disse-lhe: “se eu te fiz algum mal, e fui uma pessoa ruim, me perdoe”.

Ele disse estar muito orgulhoso de mim.

O que mais quero, é viver.

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Familiares recuperados da Covid-19

Após quase dois anos de pandemia, trabalhando na linha de frente em um Hospital de Campanha em atendimento à Covid-19, pude vivenciar diversas histórias trágicas com a perda de familiares, porém, em contrapartida, algumas histórias de sucesso me marcaram, como a de uma paciente de 35 anos.

Resiliência em momentos conturbados

Internada por dois meses, após ser entubada, ‘traqueostomizada‘, dialisada e submetida a diversos procedimentos invasivos, conseguiu se recuperar.

Saiu da ventilação mecânica, retomou suas lembranças e retornar à sua casa, junto de seus familiares, agradecendo a toda a equipe pelos cuidados.

Nós, médicos, psicólogos e enfermeiras, vibramos por cada vitória de devolver mais uma mãe, um pai, um filho ou um irmão aos seus entes queridos. Viva a família e os familiares.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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Leveza para além da Covid-19

A rotina em um hospital de campanha de Covid-19 é extremamente desgastante.

Aos poucos, fomos nos deparando com olhares cansados e um desgaste emocional que se instalou pelos corredores. O cansaço para conter a pandemia de Covid-19 era grande.

Em algumas paredes, os relógios que, em alguns momentos estacionavam seus ponteiros, em outras, despencavam em uma velocidade absurda.

Era um manequim de rodinhas e tablet

Fui abordada pelo hospital, para receber uma proposta artística remota, a única intervenção desse tipo até o momento. Quando fiquei sabendo, confesso que permaneci resistente à ideia de sair da minha rotina de cuidar dos pacientes com Covid-19, e abraçar um novo viés de trabalho.

Com o passar das visitas, barreiras foram rompidas e, hoje, escuto pelos corredores: “essa semana terá visita dos palhaços?”.

A risada e as bochechas…

O humor e alegria que todos transmitiam, começou a fazer uma diferença enorme na vida das pessoas que se encontravam dentro desse hospital, lutando contra a Covid-19.

Eu não consigo dimensionar em palavras essa importância e o seu efeito no ambiente de trabalho, e na recuperação dos pacientes que estavam com Covid-19.

Médicos e funcionários em um hospital de campanha para a contenção da Covid-19, junto da ONG Nariz Solidário.

E digo pela minha pessoa: meus dias ficam muito mais felizes em momentos de visita do Nariz Solidário. As bochechas chegam a doer por baixo da máscara depois de muito riso.

Todas as quartas-feiras, às 10h da manhã, os corredores se enchem de música e piadas com a visita virtual do Nariz Solidário.

Alguns funcionários se escondem por vergonha de se expressar dentro do ambiente hospitalar, outros, aparecem e dizem que esperaram a semana toda por esse momento.

De Covid-19 para Covidina

Foi escolhido pela equipe o nome ‘Covidina’, em referência ao momento em que vivenciamos.

Desta forma, todas as quartas, músicas são ouvidas, dancinhas são criadas, e tamanha a ansiedade e a expectativa pelas visitas do Nariz Solidário.

A alegria se instala e, por alguns instantes, um lugar que carrega o peso da responsabilidade de cuidar e de salvar vidas, também se torna um lugar de risadas e leveza.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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Vítima da Covid-19

Em meados de agosto de 2021, após mais de um ano de pandemia, em um Hospital de Campanha referência em atendimento à Covid-19, um menino de 17 anos deu entrada no hospital em estado grave.

Durante todo o período de internamento, as equipes assistenciais trabalhavam de maneira triste.

Estavam fragilizadas pela mãe, que sofria, tristes pelo jovem, entubado com poucas chances de sobrevida, tristes pela pouca estrutura psíquica que essa família tinha para lidar com a situação e, desolados pelo agravamento da pandemia de Covid-19.

Acolhimento em meio à Covid-19

Em minha função como psicóloga, acolhia a família, e tentava auxiliar os pais a criarem estratégias internas para lidar com o sofrimento.

Ao final da terceira semana, o quadro clínico de Covid-19 se agravou, fazendo com que a equipe médica tivesse que alertar à família. Naquelas condições, haveria poucas chances para o paciente resistir.

Infelizmente e por alguma razão, a comunicação emitida sobre risco iminente do paciente não resistir, não chegou à família, que acabou por realizar a visita um tempo depois do comunicado.

Por coincidência, a chegada à recepção para comunicar a visita acabou acontecendo no mesmo momento em que o jovem evoluiu para óbito, devido ao agravamento da pandemia.

Não deu tempo. Ao serem direcionados para a sala de acolhimento, a angústia se instalou por todo o hospital.

“Por favor, não façam isso comigo”

Assim que entrei na sala, direcionei-me para o lado da mãe, que estava acompanhada da assistente social e do médico.

A mãe estava com os olhos marejados. Dizia em um tom de súplica: “por favor, não façam isso comigo”.

O médico iniciou o seu discurso retomando as últimas 24h e finaliza sua fala comunicando o falecimento aos pais.

“A dor da perda não tinha uma forma exata de ser expressada, eram gritos, olhares, lágrimas e pedidos de que disséssemos que era mentira.”

Mais uma vítima da Covid-19

Mais de 1 hora se passou até que conseguimos orientar os próximos passos e encaminhar a mãe ao atendimento em uma unidade básica de saúde.

Ao fechar a porta, lágrimas da equipe se despencaram; sofrimento pela dor da mãe; desgaste emocional após o atendimento de tantas histórias semelhantes.

A morte não pede licença, não avisa, não tem piedade, não espera uma expressão de afeto e nem um último adeus, ela aparece e muda toda uma história. Aproveitemos o hoje, o agora


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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“Nunca imaginei que a dona do imóvel onde moro iria pedir uma ordem de despejo”

Sou Beatrys Madelayne, mulher trans branca e trabalhadora sexual. Vou explicar minha situação durante a pandemia.

Com a chegada da pandemia, minha vida mudou. Eu fiquei sem conseguir trabalhar, já que meus clientes ficaram com muito medo de pegar Covid-19. Eu e outras trabalhadoras do sexo que conheço ficamos sem trabalhar. 

Passei por situações muito difíceis,  tendo que vender as coisas de casa para comprar alimentos, pagar meu aluguel e outras contas. Chegou um momento em que eu não tinha mais nada para vender. Hoje, depois de seis meses de aluguel atrasado, a proprietária do imóvel me deu uma ordem de despejo. 

Nessa condição, estou com medo de, a qualquer momento, a proprietária me tirar de onde moro e eu não ter para onde ir. Eu e mais duas amigas trans que acolhi porque, durante a pandemia, elas precisavam de moradia por terem saído da casa de seus familiares.

Tentei alguns benefícios com a ajuda do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) da Diversidade para conseguir me sustentar e tentar me estabilizar, mas o que recebo de benefícios hoje não dá para eu matar a fome de todas nós. 

Ainda assim, fico feliz porque, através do Creas, pude resolver um pouco dos meus problemas e até fiz minha retificação de nome e gênero. Isso para mim era uma das coisas mais importantes, algo que sempre sonhei em ter. É um direito garantido a mim!

Graças a essa ONG, hoje, não passamos fome, recebemos mensalmente uma cesta básica e cesta verde, dentre outras coisas necessárias, como produtos de higiene, cobertores, etc.

Rede de apoio

Devido a dificuldades que vieram com a pandemia, pedi ajuda a uma amiga da terceira idade. Ela me apresentou às Tulipas do Cerrado, uma organização não governamental (ONG) sem fins lucrativos que ajuda, cuida e realiza momentos de convivência com as pessoas da comunidade LGBTQIAP+, população em situação de rua e profissionais do sexo do Distrito Federal e do entorno. 

Graças a essa ONG, hoje não passamos fome, recebemos mensalmente uma cesta básica e cesta verde, dentre outras coisas necessárias, como produtos de higiene, cobertores, etc. Eu e minhas amigas adotamos as Tulipas do Cerrado como uma família, é neste espaço onde nos sentimos acolhidas e amadas, onde podemos sempre desabafar e compartilhar um pouco das nossas vidas, seja em relação aos aspectos positivos ou negativos. Esse é um coletivo que vibra com as conquistas que temos. 

Além da ONG Tulipas do Cerrado e do Creas da Diversidade, tive ajuda recebendo alimentos da Casa Rosa.

Graças a Deus não peguei Covid-19, mas, infelizmente, perdi várias amigas próximas. Tudo isso me marcou bastante. Nunca esperei passar por essas situações. 

Em meio à pandemia, uma ordem de despejo

Nunca imaginei que a dona do imóvel onde moro iria pedir uma ordem de despejo. Até a pandemia chegar eu sempre tinha sido uma boa inquilina e agora, que fiquei em uma condição financeira péssima, ela me trata como se eu fosse lixo. É muito desumano.

Posso concluir essa narrativa dizendo que a pandemia só não mudou quem sou. A minha essência não mudou: eu continuo sendo parceira, sincera, acolhedora. Porém, percebi que as pessoas à minha volta mudaram bastante, ficaram amargas, desunidas.