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18 a 24 anos Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Mato Grosso Prta Raça/Cor

“A leitura tem me ajudado a passar por esse momento”

Estou recluso no Centro de Ressocialização de Cuiabá. Estou preso há dois anos já aqui no cinema e hoje a pandemia veio. Infelizmente no momento é ruim, no momento que eu estou passando por mais dificuldade é mais a parte emocional. E hoje eu estou é sem as visitas. Assim como os familiares vem me visitar então assim nós está um transtorno mentalmente é ruim , infelizmente mas é nós estamos buscando outros meios. Como eu estou no sistema penitenciário aqui do CRC tenho a biblioteca e eu fiz algumas atividades.

Ressaltando que com restrição nós tá é buscando ler pra tentar fugir um pouco dos familiares pois não tem visita nem de sistema. Então nós está buscando esses mecanismos de leituras, de trabalhos. Que tenham restrição à distância, fiz partes assim e o sistema propõe pra nós. É como a faculdade também nos busca. A estudar também virei a ver o sistema e o mestrado também que fazemos também aqui. Então ela ajuda muito, Conforme essa pandemia tá tão expansiva.

Buscar novas oportunidades

Muitas pessoas morrendo, então nós não conseguimos compreender e entender. A situação mas sempre nós buscamos arrumar uma forma de distração, sempre a leitura. A Bíblia que nós lemos bastante é a forma de buscar a  Deus. É pra forma de esquecimento do mundo lá de fora e dos familiares para não sofrer tanto como nós sofremos tanto aqui nesse sistema. Eu agradeço a Deus, já tomei as duas doses da vacina.

A minha expectativa daqui pra frente é sair daqui e buscar uma ressocialização lá fora, uma qualificação melhor lá fora e buscar uma mudança que esse percurso todo passando aqui dentro do sistema porque eu estou refletindo muito. Queremos a mudança ão só  não só mentalmente e espiritualmente. E graças a Deus o sistema está favorecendo até mesmo  esse mecanismo, com contato com psicólogo entre  outros que ajuda bastante dentro do  sistema.

Relato de Raony Silva, produzido pela Associação Mais Liberdade para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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18 a 24 anos Branca Ensino Médio Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mato Grosso Mulher Cis Raça/Cor

“Perdi meu emprego e entrei numa fase muito difícil”

Oi, meu nome é Maria, eu sou esposa do Reeducando se encontra no CRC de Cuiabá e eu vim falar sobre a pandemia né? Que a gente teve muita dificuldade sobre questão de remédios, muitas pessoas morrendo, vacina a gente não sabia se eles estavam tomando ou não, porque não estava tendo visita íntima e as vídeo chamadas também não estavam tendo, estava sendo muito difícil pra gente e muitas pessoas perderam familiares.

E isso afetou muito a gente, gente, com ansiedade, preocupada, não sabia o que tava acontecendo, não tava entrando as coisas sem visitas, sem, nada não estava entrando remédio tudo parado e a dificuldade bateu na porta de todo mundo, muitas pessoas perderam seus  serviço eu inclusive né? Perdi meu emprego, fiquei numa fase difícil, não tava entrando remédio e não tinha videochamada, tava muito complicado mesmo.

Relato de Maria Souza, produzido pela Associação Mais Liberdade para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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18 a 24 anos Ensino Médio Completo Indígena Mulher Cis Roraima

“Além de estarem presos, eles não falavam português, (…) não sabiam porque estavam isolados”

Meu nome é Deirys Ramos e pertenço à etnia indígena Warao. Sou da Venezuela e durante esse tempo tenho trabalhado como mediadora cultural.

Eu tive Covid-19 e me contagiei no meu trabalho, atuando com migrantes venezuelanos, com meus conterrâneos. Meu trabalho consistia em explicar como fazer a prevenção contra o vírus, mas com a proximidade física que tínhamos diariamente eu acabei tendo Covid-19. 

No momento que peguei Covid-19 eu não me dei conta, pensava que era cansaço por causa do trabalho, mas pouco tempo depois meus olhos já não me deixavam trabalhar porque ardiam muito. Fiz um teste rápido e deu positivo. Nunca imaginei ficar contagiada por Covid-19. 

Eu não me sentia cansada, tinha ânimos para seguir trabalhando. Eu respirava bem e fisicamente não me doía nada, mas não conseguia ver bem e isso me afetou bastante.

Tivemos que estar fechados em um lugar que fazia muito calor e a minha filha de cinco anos se sentia como se estivesse presa. Ela me perguntava se havia feito algo de mal

Isolamento

Como eu estava com Covid-19 e vivia em um abrigo, minha família e eu tivemos que ficar em isolamento. Isso nos afetou bastante, principalmente a minha filha de cico anos porque tivemos que estar fechados em um lugar que fazia muito calor e a minha filha de cinco anos se sentia como se estivesse presa. Ela me perguntava se havia feito algo de mal. Foi muito traumático. 

Ela teve que ir a psicólogos também, chorava bastante e pensava que não gostavam dela por causa do isolamento, porque ainda que não estivesse com Covid-19, como ela estava com nós, ela teve que ficar isolada também. 

Além de nós, outra família estava isolada. Era uma mãe e seu filho que passavam por um periodo e luto por causa da morte do esposo/pai. Eles estavam sofrendo o luto pela morte de um familiar muito próximo.

Além de estarem presos, eles não podiam se comunicar porque não falavam português. Por isso, não sabiam a razão pela qual seu esposo/pai havia morrido e tampouco sabiam porque estavam isolados. Eu tentava explicar, mas a comunicação não era boa. Ao vê-los chorar, minha filha, a mais velha, ficou traumatizada. Ela pensava que as pessoas não gostavam de nós. Foi muito traumático para ela. 

Essa experiência me fortaleceu bastante porque conseguimos atuar rápido. Em menos de três dias soube que tinha me contagiado e tomei as medidas necessárias para evitar mais contágios e superar a doença. A experiência me encheu de muita fé, fé e esperança ao ver que nem minha filha, nem meu esposo apresentavam os sintomas do Covid-19. 

Em alguns momentos eu senti medo de que a doença pudesse ficar mais grave e isso me ensinou a não esquecer das medidas de proteção, de manter sempre a máscara, de respeitar as pessoas que estão com máscara também. Agora entendo  e estou muito feliz de ver que as pessoas usam o álcool gel nas mãos e se cuidam.

***

Observação: o relato acima, em português, foi uma tradução livre do relato feito originalmente em espanhol. Abaixo está o conteúdo original.

***

“Aparte de estar encerrados, ellos no entendían el portugués.  (…) No sabían por qué estaban aislados” 

Mi nombre es Deirys Ramos y pertenezco a la etnia indígena Warao. Soy de Venezuela y en estos momentos he trabajado como mediadora cultural.

Yo tuve Covid-19 y me contagié en mi trabajo con los migrantes venezolanos, con mis paisanos. Mi trabajo consistía en explicarles cómo hacer la prevención contra el virus pero el acercamiento diario a ellos hizo que yo también tuviera Covid-19. 

Al momento no me di cuenta, pensaba que el cansancio era normal, pero al poco tiempo mis ojos ya no me permitían trabajar, me ardían mucho. Hice la prueba rápida y dió positivo. Nunca imaginé estar contagiada de Covid-19.

No me sentía cansada, tenía ánimos de seguir trabajando.Yo respiraba bien y físicamente no me dolía nada, pero lo en los ojos se me notaban, no podía ver bien y me afectó bastante.

Tuvimos que estar encerrados en un lugar que hacía mucho calor y mi hija de cinco años se sentía como si estuviera presa y me preguntaba si había hecho algo malo

Aislamiento

Como yo estaba con Covid-19 y vivía en un abrigo, mi familia y yo tuvimos que estar aislados. Eso nos afectó bastante, principalmente mi hija de cinco años porque tuvimos que estar encerrados en un lugar que hacía mucho calor y ella se sentía como si estuviera presa, me preguntaba si había hecho algo malo. Fue muy traumático. 

Ella tuvo que estar con los psicólogos también, lloraba bastante, creía que no la querían por el aislamiento, porque aunque no estuviera con Covid-19, ella estaba con nosotros y tuvo que ser aislada también. 

Además de nosotros, otra familia estaba aislada. Era una madre y su hijo que sufrían el duelo por la muerte de su esposo. Ellos estaban sufriendo el duelo de haber fallecido a un familiar muy cercano. 

Aparte de estar encerrados, ellos no podían comunicarse porque no entendían el portugués.  No sabían la razón por la cuál su esposo y padre había muerto y tampoco por qué estaban aislados. Yo les trataba de explicar, pero la comunicación no se daba. Al verlos llorar, mi hija, la mayor, se traumó. Ella pensaba que las personas no nos querían. Fue muy, muy traumático para ella.

Esa experiencia me fortaleció bastante porque logramos actuar rápido. En menos de tres días me di cuenta de que estaba contagiada y tomé las medidas necesarias para evitar más contagios y lograr superar la enfermedad.  La experiencia me llenó de mucha fe también, Fe y esperanza al ver que ni mi hija ni mi esposo presentaban síntomas. 

En algunos momentos sentí miedo a que la enfermedad pudiera agravarse y fue lo que me ha dejado una gran enseñanza: de no olvidar las medidas de protección; de mantener siempre el tapabocas; de respetar aquellas personas que lo tienen. Ahora entiendo y estoy muy contenta de ver que las personas se echan gel en la mano y se cuidan.

Relato de Deirys Ramos, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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18 a 24 anos Ensino Médio Completo Indígena Mulher Cis Roraima

“A pandemia tirou o meu abraço”

Meu nome é Glauciely Castro, eu tenho 19 anos e sou da etnia Macuxi. 

Quando penso na pandemia, a primeira coisa que me vem à cabeça é a morte da minha tia Margarida. Eu era muito próxima dela e foi muito doído porque foi muito rápido. Um dia ela estava falando que sentia falta de ar e, de repente, foi ao hospital. Lá, ficamos orando por ela, para que ela melhorasse. Porém, veio a notícia de sua morte. Foi muito triste. Ela foi a primeira pessoa que eu perdi!

Eu já tinha pegado Covid-19 e foi horrível. Não conseguia respirar. E a partir de então, vi que em tudo a gente tem que dar valor, até o ar que a gente respira. Quando minha tia estava no hospital, eu pensava: “eu estou respirando e ela está agonizando”. Por isso, eu tenho que dar mais valor para a minha vida.

Tomamos todos os cuidados para não pegar a doença: usava máscaras, quase não saíamos, passávamos álcool em gel em tudo, seguíamos todas as orientações, mas aconteceu.

Eu fico pensando: “meu Deus, pedi tanto por isso?” É assim como outros parentes meus. Mas eu costumo pensar que quando a gente está triste ou com muita raiva, a gente não consegue ver Deus em momento algum. 

Eu fiquei procurando onde me segurar e me segurei na minha fé, em mim mesma. Eu busquei a esperança, acreditar que essa situação possa melhorar.

Luto

Minha tia morreu em um domingo de agosto. Desde então, todos os domingos pensamos nela. Quando eu soube de sua morte, eu soube que nunca mais a vida voltaria a ser como era antes. A gente fica com uma cicatriz, ainda que siga em frente. 

Minha tia amou todas as vezes que podia amar, ela se se jogou na vida. Agora quando eu penso nela, penso em momentos felizes. 

Penso também nos abraços que a pandemia nos tirou. Abraçar era algo que ela gostava muito de fazer e eu não pude abráça-la. O abraço é uma coisa muito importante!

Antes eu conseguia me concentrar nas coisas que eu ia estudar, agora eu perco muito fácil a concentração

Síndrome pós-Covid

Não sei se a gente pode falar que é síndrome pós-Covid, mas depois que tive a doença, fiquei com muita ansiedade. Isso piora e é um cansaço o tempo todo. A gente rende menos do que a gente rendia antes! Antes eu conseguia me concentrar nas coisas que eu ia estudar, agora eu perco muito fácil a concentração. Eu me esforço muito para fazer o meu melhor, mas eu sei que prejudicou de alguma forma o meu rendimento!

Fora Bolsonaro!

O que eu tenho a dizer é: fora Bolsonaro! 

E, também, queria falar que é para as pessoas não perderem a esperança na vida. Nunca todo mundo vai estar totalmente bem, mas é preciso se cuidar. E, se puder, buscar a ajuda de um psicólogo, fazer terapia! Isso é algo que eu quero fazer.

Relato de Glaucielly Castro, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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18 a 24 anos Branca Ensino Médio Completo Mulher Cis Roraima

“Eu tinha muitos sonhos, mas com a pandemia todas as portas se fecharam”

Meu nome é Carmen Alejandra. Sou venezuelana, tenho 19 anos e faço faculdade de estética e cosmetologia.

Quando soube da pandemia, eu ainda não tinha chegado ao Brasil. Eu tinha 18 anos quando apareceu o primeiro caso de Covid-19 em Boa Vista (RR). Tinha o sonho de fazer uma festa de aniversário muito grande, mas por conta da pandemia, não consegui fazer. Esse foi o primeiro impacto que senti da pandemia.

Eu não sabia da gravidade do assunto, mas quando as pessoas começaram a se infectar e os lugares públicos do município foram fechados eu comecei a me preocupar. Parecia que eu estava  vivendo um filme.

Eu fiquei muito triste. Sou uma pessoa que gosta muito de abraçar, que é carinhosa. Gosto de ter contato com outras pessoas e quando soube que já não poderia fazer isso, fiquei triste. Nessa época, pensava que a pandemia duraria uns 30 dias e conforme o tempo foi passando, eu fiquei muito mal psicologicamente

Fiquei muito mal porque eu tinha muitos planos. Eu tinha acabado de fazer dezoito anos, queria fazer vestibular, prestar o ENEM e entrar na faculdade.  Eu tinha muitos sonhos, muitas coisas que eu queria realizar e com a pandemia todas as portas se fecharam. 

Graças a Deus eu não perdi ninguém, mas ver que outras estavam perdendo seus familiares e amigos mexeu comigo. Aqui em Roraima houve o caso de uma mãe de gêmeos que morreu. O pai das crianças ficou em depressão e os bebês ficaram sozinhos. Ao saber disso, não conseguia mais dormir, não conseguia fazer nada. Foi o pior dia da pandemia para mim.

Eu só comia, deitava, dormia, acordava. Não tinha esperança na vida. Também ficava pensando na cena em Manaus, quando a prefeitura abriu covas porque já não havia lugar para enterrar as vítimas do Covid-19. Ficava pensando nos familiares dessas pessoas. 

O que mais me incomodava era ver pessoas fazendo festa. Estamos em um contexto de que uma doença está matando muita gente e havia pessoas organizando festas, sem consciência alguma do que estava acontecendo.

Eu olhava para o céu e ficava pensando: “o que vai ser de mim? O quê que vai ser da minha vida? O quê que vai ser da minha família?”. Eu fiquei me sentindo um peso para os meus pais

Migrantes enfrentam mais dificuldades para encontrar trabalho

Nós que somos imigrantes enfrentamos muita dificuldade para encontrar um emprego. Meu pai só conseguiu trabalho como ajudante de pedreiro e nada mais. Há imigrantes que não têm o que comer. Muitas vezes nossa família tirava do pouco que tinha para ajudar. Foi uma época muito difícil. Só de lembrar eu tenho vontade de chorar. Não havia saída. Eu olhava para o céu e ficava pensando: “o que vai ser de mim? O quê que vai ser da minha vida? O quê que vai ser da minha família?”. Eu fiquei me sentindo um peso para os meus pais.Nessa época eu percebi que precisava de ajuda. Eu sofria de ansiedade antes da pandemia e, depois, desenvolvi depressão. Procurei ajuda em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e precisei tomar remédio tarja preta, porque eu estava em uma fase da depressão bem avançada. Com o remédio e o contexto melhor, com o número de mortes diminuindo, eu fui melhorando.

Há muitos jovens que não se vacinaram e eu, como sou jovem, quero conscientizar os outros jovens a se vacinar. Se eles querem voltar para a vida que tinham antes, com festa e praia, é preciso se vacinar

Viva a ciência: vamos nos vacinar

Eu queria primeiramente dizer que eu sou eternamente grata pela Ciência. Graças a Deus a vacina existe. Chego a sorrir porque sei que tem vacina. Eu já me vacinei! Hoje em dia eu estou bem melhor. Graças à Ciência! Estou fazendo faculdade, estou trabalhando. Também me sinto melhor psicologicamente. 

Pensando no futuro, acredito que temos que nos conscientizar e entender que a pandemia é um processo e que com a vacina, tudo vai melhorar. Gente, vacinem-se! Vamos nos vacinar!

Desde o começo, quando nascemos, somos vacinados. Isso não impede de pegarmos alguma doença, mas ela não vai ser tão grave. Eu conheço pessoas que depois de se vacinarem pegaram Covid-19, mas não foram pra UTI, não sentiram falta de ar, tiveram sintomas leves. 

Eu quero conscientizar as pessoas para que se vacinem. Há muitos jovens que não se vacinaram e eu, como sou jovem, quero conscientizar os outros jovens a se vacinar. Se eles querem voltar para a vida que tinham antes, com festa e praia, é preciso se vacinar. 

O recado que eu quero deixar é que as coisas estão melhorando e que precisamos ter esperança. Os dias mais difíceis já passaram e a gente vai conseguir superar tudo isso.

Também quero conscientizar sobre a necessidade de se procurar ajuda. Eu vejo que a sociedade de uma maneira geral tem uma ideia errada sobre os psicólogos e psiquiatras. Muita gente atrela o fato de procurar ajuda e acompanhamento de um psicólogo significa que você está louco. Isso é um erro. Para mim, louco é quem não faz terapia. Com o mundo como está, precisamos cuidar de nossa saúde mental para conseguir ter uma vida mais leve.

Relato de Carmen Alejandra Muñoz Luengo , produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Prta

“A pandemia me pegou em um momento muito desafiador”

A pandemia me pegou em um momento muito desafiador. Eu havia abandonado a faculdade de Hotelaria alguns anos antes, porque eu precisava trabalhar.

A maioria das pessoas me chamam de Juli. Nasci em Salvador. Morei um tempo em Feira de Santana com minha família, mas a música trouxe o meu pai de volta para o Candeal.

Meu pai, músico, foi um dos fundadores da Timbalada. Mas a música, infelizmente, não é suficiente para sustentar as pessoas. O sonho da maioria da população que nasce no Candeal é viver de música. Mas, infelizmente, as oportunidades não chegam para todos da forma que se espera e muitos se frustram — foi o que aconteceu com o meu pai.

Houve um tempo que a única alternativa para ele foi sair do país. Dos EUA, ele mandava dinheiro para que minha mãe e eu — que chegamos a tentar ir morar com ele, mas não conseguimos, — nos mantivéssemos. Com esse dinheiro foi que compramos nossa casa. Eu não achava a minha infância estranha, mas, hoje, ao olhar para trás, eu consigo identificar coisas que passaram despercebidas.

O racismo estrutural no Brasil

Como eu tive o privilégio de crescer no Candeal, tive acesso a curso de inglês, aulas de violino e estudei em colégio particular. O dinheiro que meu pai conseguia fazer no carnaval, era destinado a pagar as mensalidades de todo o ano letivo da escola. A gente não sabia o que iria comer durante o ano, mas a escola estava paga. E era esse “bastidor” que reverberava na maneira como eu identificava e enfrentava pequenas e grandes diferenças entre mim e meus colegas, como, por exemplo, o fato de que todo mundo tinha um celular e eu não tinha — e isso gerava exclusão.

Meus colegas não me incluíam porque eu sequer sabia sobre o que eles falavam. Com 9 anos, eu pedi para que alisassem o meu cabelo porque todas as referências ao meu redor eram de cabelos lisos — tanto na família quanto na escola — e eu pensava ter algo de errado comigo e com o meu cabelo. Isso só mudou quando eu acessei a universidade e tive contato com outros questionamentos e passei a fazer reflexões sobre tudo isso que eu, antes, não percebia.

Eu me limitava muito por medo da opinião alheia. Deixava de ser quem eu era para que minhas tias, por exemplo, não falassem e nem me julgassem mal. Quando mudei para um colégio público, meus colegas marcaram de ir ao cinema. Como eu não tinha dinheiro, resolvi vender brigadeiro para conseguir.

Ainda lembro do orgulho que meu pai sentiu de mim por isso. Daí para a frente, comecei a lidar com vendas e ir vendendo outras coisas. Descobri esse gosto e talento.

Os problemas gerados pela pandemia

Eu havia abandonado a faculdade de Hotelaria alguns anos antes, porque eu precisava trabalhar. Meu pai só estava tocando em casamentos — quando tinha casamento —, recebendo R$100 por cada cerimônia… se um mês tem, em média, 4 fins de semana, ele receberia R$200 no mês se conseguisse tocar em duas festas.

Nesse ponto, eu já ganhara um irmão. O dinheiro não era suficiente. Nem o xerox da faculdade eu conseguia tirar, por isso, também, tranquei o curso. Além disso, eu, que escolhera Hotelaria por acreditar que me renderia maiores oportunidades por ter inglês fluente, já firmara a certeza de que queria mesmo Psicologia. Passei a trabalhar com vendas de suplementação alimentar.

Como já disse, eu amo vender e me sentia bem exercendo aquele ofício. Mas, por conta da pandemia, a emprese fechou.

Isso me deixou sem chão — mas, não só isso. Meus pais, há alguns anos, já estavam se desentendendo. Acontece que meu pai estava adoecendo lentamente. Ele tinha dificuldade de lidar com o fato de não conseguir manter sozinho a nossa casa e ter eu e minha mãe sendo as principais mantenedoras. Hoje, eu entendo que isso despertou nele um processo depressivo — que o fez se sentir estagnado.

Emocional abalado pela pandemia

Tentamos de tudo para ajudá-lo, mas quanto mais a gente tentava, mais ele ficava estagnado. Ele sempre bebeu, mas passou a beber cada vez mais. Eu sofria com isso, mas não dava vazão, me ocupava com o trabalho. Quando eles se separaram, isso me afetou absolutamente, porque sou muito apegada à minha família. Caí de vez… nesse momento eu iniciei um processo de depressão profunda. Não dormia nem de dia e nem de noite — só conseguia chorar.

Fazendo terapia, entendi que eu não via o meu pai como um ser humano, mas como sobre-humano — por isso, não entendia a dor dele. Quando meu pai saiu, ele não pensou em muita coisa. Eu entendo que ele não estava bem, mas ninguém estava. Todo esse peso recaiu sobre a minha mãe. Ele retornou para os Estados Unidos — onde mora até hoje — para reencontrar um irmão dele que estava lá, na tentativa de reconstruir a vida dele — ele dizia que não tinha mais nada.

Depois que ele foi embora, ele e minha mãe voltaram a conversar e reataram o relacionamento — à distância.

A partir disso, algumas coisas começaram a melhorar, inclusive, porque ele começou a mandar dinheiro. Apesar disso, eu continuava no mesmo estado. A minha maior dificuldade nesse período é que eu sou uma pessoa muito sensível. Quando eu tentava recuperar as forças, eu declinava novamente. Não conseguia constatar os fatos, as pessoas morrendo, tantas tragédias juntas. Tudo aquilo me assustava e eu só conseguia chorar. Pensava “como morre tanta gente e ninguém faz nada?”.

Já não sou a mesma de antes da pandemia

Por mais que eu evitasse assistir aos jornais, a energia parecia mais tensa e eu sentia e absorvia isso. Esse foi o start para eu buscar uma conexão com a minha espiritualidade. Parei de me voltar tanto para fora e me voltei para dentro. Foi aí que eu consegui voltar à superfície. Eu sentia como se algo estivesse me segurando até que eu me reestabelecesse.

Chegamos a viajar durante a pandemia e, ao chegar lá, descobrimos que a família toda estava doente, mas eu, minha mãe e meu irmão, não tivemos nenhum sintoma e ajudamos a cuidar deles. Eu não tive medo do vírus, mas me sentia desesperada pela quantidade de mortes. Ficava me perguntando como as pessoas estavam encarando tudo isso, principalmente quem perdera pessoas, porque era uma dor muito grande.

Já sei que não sou mais a pessoa que eu era. Não tenho como voltar… não sei sequer como estão os meus laços de amizade e nem como serão, porque assim como não sou mais a mesma pessoa, tenho certeza de que os meus amigos também não são. Não tem nem como se manter igual. Mesmo sem ter perdido alguém próximo, não tem como não se sentir “perdendo algo”.

Aprendi que nós precisamos fazer uns pelos outros. Por mais que a dor seja grande, precisamos olhar para fora, porque, talvez, a dor do outro seja ainda maior do que a nossa. Eu tenho esperança de que as pessoas melhorem, que nada do que vivemos seja esquecido.

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta

Foi assim, nessa fase, que me deparei com a pandemia

Eu tenho 23 anos. Curso Bacharelado Interdisciplinar em Artes desde 2017 e teria me formado em 2020, se não fosse a pandemia. Passei a maior parte da minha vida em Cajazeiras.

Meus pais são separados. Minha mãe criou a mim e meu irmão. Ela é empregada doméstica e sempre trabalhou em casas situadas em bairro considerados nobres, como Rio Vermelho e Barra, para onde eu ia com ela — já que ela me matriculou em colégios públicos próximos à área em que trabalhava. Assim, saíamos juntos, e, depois que a minha aula terminava, eu ficava com ela até que fosse liberada do serviço e voltássemos para casa.

Sempre existiram algumas questões que me afastavam da minha família. Meu pai, ausente, morando em outra cidade, só nos ajudava quando conseguia algum trabalho. Meu irmão, usuário de drogas, se envolveu com o tráfico e chegou a ser preso. Minha mãe conseguiu um advogado para libertá-lo. Questões como essas geraram um afastamento familiar. Mas minha mãe sempre trabalhou para colocar comida na mesa e nos dar o mínimo.

Os abismos da realidade

Éramos vulneráveis e nem tínhamos essa consciência. O mais doido de tudo isso era que enquanto eu vivenciava essa realidade em casa — e convivia nos colégios com colegas, na maioria pretos, como eu, que vinham de um contexto similar —, na casa dos patrões da minha mãe eu percebia outra categoria de arranjo familiar. Era completamente desigual. Eu experienciava um “não-lugar”. Não me sentia pertencente a nenhum dos mundos.

Em Cajazeiras ou no colégio, eu tinha pouco tempo, e no trabalho da minha mãe, eu sabia que não fazia parte daquele lugar. Esses trânsitos me impediam de criar vínculos e relações estáveis, duradouras. Eu era bem introvertido.

Sou gay e minha mãe age com indiferença, como se não soubesse.

Sempre fui a pessoa mais escura da minha família. Eu sabia que muito do que eu passava na vida era, primeiro, por conta da minha cor, e também, por perceberem minha sexualidade dissidente.

A desigualdade é anterior à pandemia

Eu ainda era uma criança quando já me preocupava em, quando comprar o pão para a família que a minha mãe trabalhava, não parecer ou ser confundido com um delinquente, por exemplo. Eu pensava desde as roupas que usaria, que não estivessem minimamente rasgadas, até a maneira como andaria. A neta da patroa da minha mãe tinha a minha idade e era com ela (e com os amigos e familiares dela) que eu tinha algum tempo para brincar, de vez em quando. E, obviamente, existia um contraste gritante… sofrendo violências que, pela pouca idade, eu nem sequer percebia na época, sendo excluído de algumas brincadeiras.

Era um recorte de classe, mas que, principalmente no Brasil, está intrinsecamente ligado ao recorte de raça. O subconsciente e inconsciente coletivo de que preto é pobre e branco é rico. E as pessoas ao meu redor acreditavam que eu deveria enxergar naquele lugar uma oportunidade de transformação — apesar das violências. Eu era visto como um exemplo, principalmente porque, comparado ao meu irmão — que apontavam como alguém que “deu errado” — eu era alguém em que se podia depositar alguma confiança de que “daria certo”.

Isso era extremamente incômodo para mim, porque eu não queria ocupar esse lugar de expectativas. Fiz o possível para me esquivar dessa perspectiva. Até por tentar enxergar meu irmão de forma mais humana e, sem desresponsabilizar ele, entender os contextos e perceber quais as responsabilidades dele, do Estado, da família, da sociedade. Enquanto isso, fui tomando consciência, cada vez mais, sobre a minha raça e sexualidade.

A chegada da pandemia

Por conta da universidade, primeiro, fui morar com um casal de amigos, no Alto das Pombas. Envolvi-me bastante com o movimento estudantil, e essa foi a maior oportunidade de fazer coisas novas, que eu tinha vontade. Além disso, a fazer parte de um coletivo de teatro, e nele, eu estava atuando. Em 2019, eu sentia que a minha vida estava fluindo bem e eu estava dando conta de tudo, até comecei um namoro.

Quando ainda só ouvíamos os rumores e não sabíamos a dimensão de tudo que viveríamos, fomos vivendo normalmente e deixando para ver como seria quando chegasse aqui. Até aí, eu estava muito conectado às pessoas.

A cada passo que eu dava no campus da universidade, eu falava com alguém. Eram muitas relações. O distanciamento social me impactou. E os amigos, com quem eu morava viajaram… passei 7 meses sozinho, recebendo visitas apenas do meu namorado. Foi uma época meio louca, porque era preciso se preparar tecnologicamente, porque era através da tecnologia que se manteriam as relações.

Houve muita briga no meu curso por questões administrativas e afins. Eu temi muito por minha mãe. Eu não estava com ela, mas ela ainda trabalhava na casa das pessoas de classe média. Ela chegou a ficar um tempo parada, mas depois retornou. E não tem como não pontuar que a primeira pessoa a morrer por Covid no Brasil foi uma empregada doméstica. Ela ficou bem.

Não perdi familiares, mas vizinhos e conhecidos faleceram.

Uma possível esperança para o pós-pandemia?

O que mais me dava medo dessa pandemia era essa ideia de uma “coisa invisível” que, em algum momento, poderia pegar em mim. E aí tinha toda aquela paranoia, limpando tudo, separando as roupas que eram usadas e tudo mais. Hoje eu avalio que foi ótimo estar só — não completamente só, porque, como disse, via meu namorado aos fins de semana. Mas penso que se eu estivesse com mais alguém em casa… acredito que ficaria louco.

A pior parte da pandemia era estar em espaços virtuais nos quais eu não me sentia contemplado, não tinha tanto acesso e o medo dessa ameaça iminente, o que me gerou crises de ansiedade. Fiquei bloqueado para o choro, as lágrimas não vinham.

E um momento muito difícil foi a morte do meu namorado — que não foi por Covid — sobre a qual eu ainda nem consigo elaborar.

A sensação que eu tenho é de que a vida parou. Tudo ficou estagnado em algum lugar, paralisado, esperando o momento de reiniciar. Agora, espero que eu consiga retomar tudo de onde parei. Quero muito conseguir tirar do passado para o presente tudo o que eu iniciei, e precisei pausar. Mas, por enquanto, tanto individual quanto coletivamente, não existe alegria, estamos longe de estar bem.

 Espero sairmos dessa preparados e com forças para encarar coisas piores.

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta

“Foi quando ficou mais forte a negritude em mim”

A questão da negritude chegou-me dentro da academia, me impulsionando ao ativismo. Eu, primeiro, vi o racismo enquanto estrutura, antes de vê-lo como uma problemática nas particularidades da minha vida, porque nunca sofri violências individuais explícitas.

Sou um jovem negro de 24 anos. Filho único. Costumo dizer que me tornei negro… 

O universo das escolas particulares

Sempre fui bolsista em escola particular. Apesar de nunca ter passado por privações, tínhamos limitações. E isso se evidenciava quando eu comparava a minha realidade com a de colegas do colégio. Colegas, esses, com quem não conseguia construir relações por falta de afinidades.

Eu era introspectivo e não me sentia pertencente a nenhum dos grupos que existiam lá. Romanticamente, eu nunca tive o meu interesse despertado por ninguém. O meu foco era, realmente, nos estudos.

Universidade e o olhar para a negritude

Na universidade, foi onde comecei a ter vivências de juventude. Eu senti como se tivesse ganhado uma missão: como cursava no turno noturno, as minhas experiências eram um tanto diferentes das de outros jovens na universidade… Eu lidava com colegas mais maduros, em sua grande maioria mulheres, pessoas que trabalhavam no turno oposto ao que estudavam, e, logo de cara, fui pego pela militância e fui atuar no movimento estudantil. 

Esse tipo de contexto também fazia com que minha socialização fosse um tanto limitada.

Ter entrado em contato com o Gapa foi um divisor de águas, principalmente por ser um movimento social que pautava temáticas de sexualidade, o que ia me trazendo provocações e compreensões que ainda não tinha. Passei a me questionar sobre meus desejos (ou a falta deles).

No Rio de Janeiro, em um encontro do movimento estudantil, eu tive uma primeira experiência com um rapaz. Ao retornar para Salvador, resolvi me desenvolver mais nesse aspecto. Conversando com uma colega, ela me apresentou algo que eu nunca pensara em usar: os aplicativos de relacionamento. Ao questioná-la, ela me disse que não tinha expectativas, que apenas passava algum tempo olhando os perfis das pessoas e que se não conhecesse ninguém, ao menos poderia fazer amizades.

Pandemia e o boicote às descobertas

Aquilo me interessou e comecei a ver, nisso, a possibilidade de começar a me relacionar. Após dois encontros e muita animação por desbravar essa área da minha existência, veio a pandemia, mudando todos os planos e dificultando essas oportunidades.

O início da pandemia me encontrou num momento de muita atividade, conciliando faculdade e trabalho. Como sou da área de Saúde Coletiva, a pandemia não me assustou a ponto de me paralisar, por entender todos os processos que estavam acontecendo. 

Eu já tinha vivido um momento de isolamento social, em 2015, quando, ao finalizar o Ensino Médio, fiquei integralmente em casa, estudando para o vestibular. Sem sair, sem ver amigos… Isso me gerou um pico de ansiedade, visto que eu só tinha 18 anos. Mas foi uma fase, também, em que pude refletir sobre estar só, entender e aprender a lidar com isso. Lidar, inclusive, com a falta de privacidade que acontece, vez ou outra, com meus pais. Sendo assim, consegui lidar bem com o fato de estar em casa durante o lockdown. 

A minha dificuldade era que, apesar de ter familiaridade com aquela realidade, o momento de vida que eu estava vivendo era de querer ir para fora e explorar espaços que eu ainda não explorara. Em meio a isso, mergulhei na espiritualidade. Sou da religião Messiância e sempre fui muito requisitado… fui me aproximando mais. Me dedicava ao audiovisual — que se tornou essencial. Passei a priorizar estas relações. E, por isso mesmo, não senti medo, apesar do caos. Eu me sentia muito protegido.

“Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza em minha negritude”

Também desenvolvi o TCC durante a quarentena, mas o mais marcante, para mim, nesse momento foram as mudanças das minhas percepções sobre mim mesmo. Eu passei a enxergar coisas que eu nunca enxergara. Ao deixar cabelo e barba crescerem — coisas que eu não deixava antes —, vi nascer em mim um homem que eu não vira ainda. Foi quando ficou mais forte a negritude em mim. Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza neles. Eu não me via como alguém bonito. Todo empoderamento que, com a militância, vinha à tona de fora para dentro, com essa transformação estética, passou a florescer de dentro para fora. 

Além disso, com a pandemia, eu entendi que a vida é urgente e demanda urgência. Tudo que aconteceu é, também, resultado de uma conjuntura política que trouxe à tona muitas vulnerabilidades e, agora, entendendo-as.

 Quero usar minhas forças para lutar contra elas, sem deixar de acreditar num futuro melhor. 

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Eu também adoeci

Sou psicóloga residente em um programa de Saúde da Família, e também adoeci.

Atuo em um núcleo de Atenção Primária em Saúde: a UBS, o querido “postinho”. Nesse espaço, atuo com os usuários do SUS que são encaminhados à avaliação e atendimentos psicológicos breves, além de realizar encaminhamentos a outros serviços da rede.

Dei início à residência e à minha prática profissional em sua totalidade em 2021, já em um contexto pandêmico.

Passei 8h diárias, escutando a dor e acolhendo o sofrimento.

Após alguns dias atuando na UBS, em um momento de maiores restrições sanitárias, houve importantes mudanças no meu processo de trabalho: minha atuação se restringiu aos teleatendimentos.

Durante alguns meses, passei 8h diárias, seis dias por semana, escutando a dor e acolhendo o sofrimento individual, atravessado pelo contexto da pandemia.

Fui tomada pela angústia e, por fim, eu também adoeci. E como poderia ter sido diferente? A dor do isolamento social, da saudade, das restrições no repertório de vida, da morte, das implicações financeiras, políticas e sociais… Todas me atravessaram. Foram tempos nebulosos, duvidei da minha própria capacidade de (re)existir.

Um sono patológico que tomava conta dos meus dias, um pedido de socorro. Meu corpo e minha mente tinham adoecidos.

Só-depois

Afastei-me de coisas que considero importantes, como o trabalho com o Nariz Solidário, em que, inclusive, atuava em prol do incentivo ao cuidado da saúde mental. Hoje, olho para tudo isso e percebo o quanto fui capaz de superar, de reinvestir no mundo, de estar retomando projetos, apesar de ainda não ter compreendido totalmente minhas reações frente a esse período. Mas não tenho pressa.

Freud tem um conceito muito interessante para isso: “nachträglich”, palavra alemã que não possui tradução literal, mas implica uma ideia: só-depois.

Tem coisas que só vêm depois.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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Mil e uma noites de solidão

O início de 2021 foi uma eterna noite de solidão. Eu passei por um grande sufoco emocional, em que descobri que meu relacionamento com minha “melhor amiga” era extremamente tóxico.

Lidar com isso foi algo demorado, pois eu não me afastei dela de um dia para o outro, até porque, morávamos sob o mesmo teto.

Esse empecilho fez com que eu vivesse dias e noites, durante seis meses, dividindo a casa com uma pessoa que me odiava, e fazia de tudo para eu me sentir mal, chegando a relatar várias vezes que o motivo da vida miserável dela, era culpa minha. Não podia sair de casa, pois estávamos no auge da pandemia.

Mesmo sendo ela que me xingava, gritava, ignorava, e quebrava as coisas.

Noite sem fim…

Como se isso não fosse ruim o bastante, ela ainda fazia a cabeça das pessoas, para que eu parecesse um monstro. Essas dificuldades de 2020 me abalaram muito, mas, 2021 me reservou uma nova surpresa.

No início do ano eu fui diagnosticada com distimia. Essa doença é diferente da depressão, apesar de serem semelhantes.

Um paciente com distimia sofre de mau-humor, irritação constantes, personalidade difícil, e nossos organismos têm dificuldade em produzir serotonina.

Essa é uma doença crônica. E por conta das minhas dificuldades em 2020, meu estado emocional era sério.

Precisei começar a me medicar, o que também foi uma aventura. Cada medicamento me dava um efeito colateral. Até que então, encontrei o medicamento certo para o meu organismo.

Esse processo só foi possível devido ao apoio de minha família, e de uma luz que acabou com as minhas noites de solidão.

Depois da noite, vem o dia

Uma ex-colega de faculdade mandou uma mensagem no grupo da nossa antiga sala, pedindo ajuda com um projeto voluntário. Eles precisavam de pessoas para editarem vídeos, e eu, precisava de algo que me desse força para conseguir levantar da cama e não desistir.

 Foi quando eu mandei uma mensagem pedindo para me juntar ao grupo. Quando fui aceita na equipe, não sabia se estava mais feliz ou desesperada, pois meu medo de fazer algo errado era enorme, mas a alegria de fazer parte de um novo projeto era maravilhosa.

Assim, eu me juntei ao Nariz Solidário. Não demorou muito para eu perceber que o grupo era muito divertido e organizado. Eu sempre achei engraçadas as diferenças dos editores para os palhaços.

Dias de Nariz Solidário

Um grupo é todo reservado, enquanto o outro saltita de alegria. O famoso caso dos introvertidos e extrovertidos tendo que dividir o mesmo ambiente.

E, mesmo com tanta diferença, todos se entendiam e se respeitavam, pois, estávamos ali com o mesmo objetivo.

Minha missão no Nariz Solidário é receber vídeos produzidos pelos palhaços, adaptar para o ambiente hospitalar e colocar elementos que auxiliem na compreensão de cada tema, como, por exemplo, a sonoplastia.

Daphane com seu livro de animação durante a edição dos vídeos do Nariz Solidário

Eles estavam me salvando…

Se me perguntassem hoje, se eu voltaria no tempo para nunca fazer amizade com aquela pessoa, minha resposta seria não.

É verdade que essa amizade me trouxe muita dor, mas, foi por conta disso, que eu busquei ajuda profissional, e soube do meu caso. Foi por conta desse estado emocional que eu entrei para o Nariz Solidário.

Loucamente eles me recrutaram pensando que eu ia ajudá-los, mas eram eles que estavam me salvando.

Sou uma pessoa muito tímida, eu não me envolveria em um grupo tão alegre como o de palhaços, se eu não estivesse em um momento tão complicado. E foi graças a isso que eu percebi, que mesmo que uma pessoa pareça muito diferente de você, é possível que vocês se deem bem.

Que mesmo que o mundo esteja desabando, vai ter alguém do seu lado para ajudar. Seja a sua família, ou até uma mensagem de ajuda enviada pelo WhatsApp.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia