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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Prta

“Nesse período eu só sabia chorar”

Sou Elza, tenho 38 anos, sou mulher cis, preta, maranhense, mãe solo de seis filhos. Possuo o ensino fundamental incompleto, sou profissional do sexo e moro há 17 anos em uma cidade no entorno do Distrito Federal.

Com a chegada da pandemia, minha vida mudou muito: tive que encontrar outras fontes de renda e, com o fechamento das escolas, minha filha mais nova, de 11 anos, teve que ficar em casa sem estudar. Foi muito difícil para ela, pois ela tinha muita vontade de voltar a frequentar a escola. 

Tive minhas preocupações e angústias. Eu vi as coisas mudarem do dia para a noite. Quando fui para Brasília trabalhar no centro de uma região administrativa [“bairro”], vi que as lojas estavam fechadas, as ruas vazias, as poucas pessoas que estavam transitando estavam usando máscaras. 

Lembro até hoje da minha primeira máscara, era do Flamengo. Aí veio o medo: usando máscara, as coisas ficaram complicadas. Não havia ninguém na rua, sem clientes, nada. Eu pensei: “O mundo está acabando e eu não estou sabendo de nada”.

O início da pandemia foi bem difícil. Não tive ajuda em nada, nem do Governo. Pelo contrário, eu recebia R$50 de bolsa família e o benefício foi cortado. Fiquei sem água e luz em casa. O gás de cozinha acabou e tive que preparar a comida à lenha no meu quintal. Às vezes, meu pai, que é aposentado, me ajudava com o pouco que tinha.

Filhos em situação de rua

Atualmente, moro apenas com minha filha mais nova. Antes da pandemia, minha filha de 16 anos morava comigo, mas se amigou com um rapaz e foi morar com ele. Posteriormente, esse rapaz foi privado de liberdade e está até hoje em situação de cárcere. 

Essa minha filha ficou um período em situação de rua. Tentei tirá-la dessa condição, me aproximar, conversar, porém, ela tentou me agredir fisicamente diversas vezes e me xingava bastante. Uma situação muito complicada. Sempre tento contato via telefone com ela, mas não tenho resposta. Fico aqui com minha preocupação.

Meu outro filho teve uma crise de saúde mental no meio desse ano (2021) e saiu de casa sem dar notícias. Ele também acabou ficando em situação de rua. Fiquei mais de um mês sem dormir, com muita preocupação, sem saber onde ele estava, como ele estava, até mesmo se estava vivo. 

Nesse período eu só sabia chorar, sem saber o que fazer. Consegui achá-lo e trazê-lo com segurança para casa, mas a crise não passava. Ele ficou um tempo internado em uma Unidade de Pronto Atendimento 24h e, posteriormente, foi atendido em um Centro de Atenção Psicossocial. Meus demais filhos moram no Maranhão com meus pais.

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto

Redes de apoio

Mesmo diante desse turbilhão, tive um grande presente em minha vida: Juma Santos. Eu a considero como minha segunda mãe. Foi a partir dela que conheci coletivos maravilhosos, como a organização não governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que é um grupo maravilhoso que tem me ajudado muito nesse período difícil na minha vida, tem cuidado de mim e da minha família. 

Conheci também a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, outra parceria maravilhosa. Assim como o Coletivo Aroeira. Com eles eu aprendi muitas coisas boas sobre agroecologia como, por exemplo, plantar, colher, fazer sabonete, extrair óleo essencial. 

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto. Me sinto muito abençoada por Deus pela oportunidade de participar desses grupos e por ter conhecido cada pessoa. 

Não consigo encontrar palavras para expressar a minha gratidão a esses grupos pelas várias formas que tem me ajudado, seja com cesta básica e cesta verde, seja com uma escuta, acolhimento, momentos de convivência, trocas de saberes com ensinamentos e aprendizados. Agradeço a Deus e a essas pessoas que chegaram em minha vida para somar e trazer luz.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Superior Incompleto Indígena Mulher Trans

“O preço da comida subiu e eu não tinha condições financeiras para me sustentar”

Me chamo Yessica Andrés, tenho 25 anos, sou mulher trans e vivo com HIV desde meus 13 anos de idade. Sou natural de Buenos Aires,Argentina, e imigrante no Brasil há mais de 10 anos. 

Estou compartilhando o relato da minha história de vida no momento da pandemia pelo Covid-19. Gostaria de relatar como foi o impacto da notícia de estar vivendo em uma pandemia. O HIV está presente em minha vida há mais de uma década, porém jamais esperava viver essa fase de pandemia sem precedentes do Covid-19, um vírus letal. 

Eu tive medo, o pânico assolava minha rede de amizades e trabalho. Para mim, nunca foi fácil viver isolada, principalmente quando fui preparada para viver a vida e “dar a cara para bater”

Mulher trans, soropositiva: viver com HIV pra mim é estar em vulnerabilidade biológica

Por viver com HIV, eu fui expulsa de casa e cresci em abrigo no Brasil até ser maior de idade. Foram muitos “coquetéis” [remédios para conter o desenvolvimento do HIV no organismo] que consumi até chegar neste momento, em que tomo remédios em menos doses e que me ajudam a me manter viva e sem muitos efeitos colaterais. 

Viver com HIV pra mim é estar em vulnerabilidade biológica e me mantendo indetectável eu posso viver com qualidade, sempre com cuidado e atenção. Com HIV, eu já tive muitas doenças sexualmente transmissíveis e passei por tratamentos dolorosos.

Em fevereiro de 2020, eu estava trabalhando no carnaval e tive muito contato com o público geral. Na época, em Brasília/Distrito Federal, não se falava de Covid-19. A partir de março do mesmo ano, começou a efetivação de medidas enfrentamento ao novo vírus, especialmente com o isolamento social e fechamento de comércio e/ou mudanças na forma em que eram ofertados os serviços não essenciais, o que acarretou em desempregos, alterações no formato de ensino em escolas e faculdades, entre outras questões sociais.

No início da pandemia eu estava casada com um homem trans e havia muitos conflitos familiares e brigas, que se intensificaram por conta do isolamento social e da convivência mais próxima. Diante disso, eu me separei. No começo de 2021, eu me casei com um homem cisgênero soro discordante. Fizemos uma linda cerimônia de casamento civil

Pandemia: mudança de ciclos e efeitos colaterais da vacina

Nesse contexto, a pandemia afetou meus estudos. Eu sou estudante de enfermagem de nível superior e fui afastada do estágio por fazer parte do grupo de risco. O estágio na faculdade é feito em Prontos Socorros dos Hospitais Regionais de Brasília e, por isso, eu deveria atuar na linha de frente do Covid-19. Com isso, me mantive em casa, estudando de maneira remota.

Durante a pandemia, minha vida passou por vários ciclos. Alguns foram encerrados para dar lugar a outros. No início da pandemia eu estava casada com um homem trans e havia muitos conflitos familiares e brigas, que se intensificaram por conta do isolamento social e da convivência mais próxima. Diante disso, eu me separei. No começo de 2021, eu me casei com um homem cisgênero soro discordante. Fizemos uma linda cerimônia de casamento civil, em um ponto turístico de Brasília, o Museu Nacional de Brasília. 

No início de 2021, eu não tinha expectativa que tudo fosse voltar ao antigo normal, pré-pandemia. Mas veio a liberação das vacinas imunizantes para Covid-19. Tomei minha primeira dose da vacina em maio e tive vários efeitos colaterais como: febre, dor e muita tontura. Só me estabilizei depois de 21 dias. Depois disso, fiquei em casa, não saí e parei de trabalhar, pois tive medo de adoecer. 

Na época em que tomei a segunda dose da vacina, os problemas aumentaram: o preço da comida subiu e eu não tinha condições financeiras para me sustentar. 

Entrei neste coletivo para ajudar mulheres trans e demais público da comunidade LGBTQIAP+, especialmente em situação de vulnerabilidade

Tulipas do Cerrado: um movimento social de resistência contra opressões em relação às nossas vivências

Com essa situação muito difícil e diante da intensificação das vulnerabilidades, a organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado começou a entregar cestas básicas mensalmente e produtos de higiene pessoal, como forma de tentar reduzir a falta de alimento nas casas das pessoas acompanhadas pela instituição. 

Eu conheci a ONG antes da pandemia. Entrei neste coletivo para ajudar mulheres trans e demais público da comunidade LGBTQIAP+, especialmente em situação de vulnerabilidade. 

A ONG Tulipas do Cerrado forma um movimento social de resistência contra opressões em relação às nossas vivências. Ela é liderada por uma mulher muito emponderada e não deixou em nenhum momento de atender o público alvo (mulheres cis e trans, profissionais do sexo, população em situação de rua e pessoas usuárias de drogas). 

A ONG elaborou um projeto que oferece ajuda de custo e muitos cuidados, principalmente psicossocial às pessoas que estão nas ruas. É neste projeto que trabalho, atuando na área de redução de danos nas ruas.

Espero que a minha história possa levar até o coração das pessoas um pouco de luta feminina e resistência LGBTQIAP+  para que todes possam tomar os devidos cuidados e prevenções possíveis para que não passem por problemas sérios de saúde

Futuro: emprego, dinheiro e comida nas mesas a todes

Como expectativas para o futuro, desejo conquistar um bom emprego  por meio da minha qualificação profissional. Quero amizades que pratiquem o autocuidado e o cuidado com o próximo. Desejo dinheiro e comida nas mesas.  

Espero que a minha história possa levar até o coração das pessoas um pouco de luta feminina e resistência LGBTQIAP+  para que todes possam tomar os devidos cuidados e prevenções possíveis para que não passem por problemas sérios de saúde e na sociedade. 

Encerro aqui este relato agradecendo a oportunidade que tenho de ter aliados por perto e muito amor no coração. Com carinho, Yessica Andrés.

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25 a 39 anos Branca Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Trans

“Ter pego Covid-19 me ensinou a colocar minha saúde em primeiro lugar”

Eu me chamo Renata, tenho 37 anos e sou mulher trans. Sou natural do Tocantins, trabalho como cabeleireira, faxineira e realizo outras atividades para complementar a renda. Também sou estudante de enfermagem, nível médio. 

Antes da pandemia, eu trabalhava como profissional do sexo. Porém, durante a pandemia, encontrei dificuldades, já que vários clientes “desapareceram”, o que me prejudicou bastante.

Esse cenário me fez começar a estudar o curso técnico em enfermagem para futuramente ter um complemento na minha profissão. Tenho vontade de fazer faculdade de estética, mas atualmente sobrevivo de ajuda com doações de alimentos e realizando trabalhos como diarista, cabeleireira ou levando pets para passear. Essa é a forma que encontrei para conseguir melhorar essa fase ruim e poder me sustentar, pagar aluguel e outras contas, bem como cuidar dos meus cachorros.

Com Covid-19 e sem contar com ajuda de ninguém

Por morar sozinha, tive a pior experiência quando peguei Covid-19, em setembro de 2021. Eu tive que “me virar”,  já que pude contar com a ajuda de ninguém próximo, nem mesmo para de vizinho. Tive vários sintomas como febre, dor de cabeça, dores no corpo inteiro, diarreia, vômitos, tontura e calafrios. Esses sintomas duraram três dias. 

Nesse período, fui a uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Lá fui bem recebida pela equipe de saúde, especialmente pela médica que me acolheu e me acalmou dizendo que ficaria tudo bem. Ela receitou os remédios e eu retornei para casa. 

Após alguns dias, eu voltei à UBS consulta, pois estava com alguns desconfortos respiratórios. Com isso, a médica pediu um exame de raio-x do meu pulmão e constatou que não havia alterações, que “meus pulmões estavam limpos”. 

Eu tive muito medo, mesmo com as duas doses da vacina. Nesse período, fiquei duas semanas sem trabalhar, mas já estou na ativa novamente. Fico feliz por estar viva e também por não ter perdido ninguém da minha família por Covid-19. Ter pego o vírus me ensinou que tenho que me cuidar mais e colocar minha saúde em primeiro lugar.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis

“Minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19”

Me chamo Maria Aparecida, porém sou mais conhecida pelo meu apelido, Iza. Sou baiana, tenho 38 anos e ensino médio completo. Trabalho como profissional do sexo há 19 anos.

Quando a pandemia começou eu estava em Goiânia/Goiás e fiquei sabendo que não poderia sair do Estado de Goiás, as rodovias estavam sendo fechadas. Contudo, eu consegui retornar para Brasília, comprei alimentos e fiquei duas semanas em quarentena. 

O tempo foi passando e as contas continuaram a chegar – água, luz e outras despesas – e o dinheiro foi acabando. Foi quando eu tive a necessidade de voltar trabalhar. As ruas, porém, estavam vazias, sem movimento, sem clientes. 

Muitos dos meus clientes fixos eram idosos, então eles sumiram com medo do Covid-19. Diante disso, tive que conquistar uma nova clientela. Com a diminuição da circulação de pedestres e queda no movimento dos comércios, meu companheiro na época deixou de vender pipoca nos semáforos. 

Infelizmente, o período de pandemia me trouxe outras perdas: minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19. Eu considerava muito a minha mãe, foi ela quem me criou, eu a amava, admirava e respeitava. Daria tudo por ela.

Eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro”

Empoderamento

Quando as pessoas voltaram a andar pelas ruas, meu companheiro começou a vender bebida alcoólica na praça e a convivência com ele ficou muito ruim, pois ele passou a beber mais bebida alcoólica e a fazer uso de outras drogas. Com isso, tivemos muitas brigas e o relacionamento foi de mal e pior.

Foi nesse período conturbado da minha vida que eu conheci a Juma Santos e a organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado. Com ela eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro e, após algumas conversas, identifiquei situações de violência em meu relacionamento que eu não podia mais tolerar. 

Antes eu pensava que a opressão era apenas em ocasiões que havia violência física, mas ao ouvir a história de vida da Juma, eu percebi que não. Então, ao ouvi-la, me senti forte, empoderada, para registrar o primeiro boletim de ocorrência contra aquele homem, que me oprimia, me xingava e quebrava as coisas dentro de casa. 

Ainda assim, continuei me relacionando com ele. Depois de alguns meses, em um momento de muita ira e surto, ele tentou queimar o apartamento onde eu morava, jogou minhas coisas no chão do apartamento, tentou explodir o botijão de gás de cozinha, correu atrás de mim. 

Ele nunca tinha chegado a esse ponto durante esses 11 anos de relacionamento. Eu tive muito medo de ele me matar. Fui até a polícia, fui acolhida e fizeram a busca por ele nos locais onde ele costumava ficar, porém não o encontraram. 

Hoje eu tenho medida protetiva contra ele e estou tentando sair desse relacionamento. Na verdade, eu saí há pouco tempo.

Acolhimento

Por fim, gostaria de acrescentar que, além de ser um coletivo que me empodera com mulher, como mãe, como trabalhadora sexual, as Tulipas do Cerrado, especialmente a Juma, tem sido meu refúgio e minha fonte de apoio. 

Nessa ONG eu sou acolhida, me tornei redutora de danos, recebo cesta básica e cesta verde mensalmente e, às vezes, é possível receber ticket alimentação e vale gás. Todo esse apoio tem me ajudado bastante.

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25 a 39 anos Distrito Federal Mulher Cis Parda Prefiro não informar

“Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada”

Eu me chamo Jackeline, mas também sou conhecida como Fernanda. Tenho 33 anos, sou gaúcha, mãe solo de quatro filhos, trabalhadora sexual e resido na periferia do Distrito Federal, em Ceilândia. 

Quando a pandemia começou, eu morava em Anápolis/GO, onde tenho casa própria e trabalhava com carteira assinada em um restaurante. Por ter sido uma das últimas funcionárias a ser admitida, com a chegada da pandemia eu fui dispensada do serviço, pois o restaurante fechou as portas e passou a funcionar na modalidade de delivery.

Menos vendas, mais contas

Retornei para Brasília, onde eu já tinha morado em outro momento, para trabalhar com vendas nas ruas como ambulante com meu companheiro. O lucro não era tão ruim, dava para sobreviver. 

Em Brasília, vivia com minha família em uma casa de aluguel. Escolhi sair de Anápolis porque lá possui um órgão do governo que retira os vendedores das ruas da cidade e, por isso, quase não dá para viver dessa atividade no município. Em Brasília existe a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (AGEFIS), órgão similar ao que tem em Anápolis, porém os vendedores ambulantes se ajudam e evitam o recolhimento das mercadorias. “Todos correm juntos!” quando a AGEFIS chega.

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos.

Contas a pagar

Com o passar dos meses as coisas ficaram mais complicadas. As contas eram muitas: aluguel, água, energia, prestação do apartamento, alimentação, transporte e outras despesas. Com isso, voltei a realizar o trabalho sexual e meu companheiro, devido a baixa nas vendas nas ruas, começou a mexer com coisas ilícitas. 

Na época eu estava com dois meses de gravidez de gêmeos, porém, algumas semanas depois eu tive aborto espontâneo.Com a vinda para Brasília, meus filhos ficaram sem vaga nas escolas. Todos ficaram em casa, estressados, entediados e com os estudos prejudicados. Nesse período, eles começaram acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial Infantil e passaram a tomar remédios controlados.

Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada da casa onde morávamos. Apenas meu companheiro estava trabalhando e eu estava de resguardo por conta do abortamento.

Naquele período tão difícil, me aproximei da organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que nos ajudou, a mim e à minha família, com doação de cestas básicas, ajuda de custo quando participava de projetos, remédios, roupas e tantas outras coisas. 

Ainda assim, ainda tínhamos gastos, dívidas, frete de mudança para pagar, quatro filhos para sustentar e só recebíamos um auxílio. Com isso, meu companheiro continuou a atuar com coisas ilícitas e, um tempo depois, ele foi preso e me deixou sozinha. 

Redes de apoio

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos. Nessa época minha mãe passou a morar comigo. Ela usa marcapasso e não possui renda, mas tem me ajudado a cuidar das crianças.

As ruas estavam e continuam muito vazias, sem clientes. Quase não estou dando conta de pagar as contas. Alguns coletivos dos quais eu faço parte tem me ajudado bastante, como as Tulipas do Cerrado, Coletivo Aroeira e a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas. Com esses grupos eu tenho tido suporte, cuidados com a saúde mental e física, alimentação, ajuda jurídica com meu parceiro que ainda está privado de liberdade e me auxiliam a conquistar meus sonhos e atingir meus objetivos. 

Essas redes ajudam a reduzir os danos na vida das pessoas que estão em situações complicadas, como eu. Hoje eu consigo sobreviver, trabalhar, aprender, ensinar, etc. graças às pessoas que compõem essas redes. Posso afirmar que atualmente tenho uma família imensa no Distrito Federal, com quem posso contar a qualquer momento.

“Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito”

Pandemia: Como iremos sobreviver?

A pandemia ainda me traz medo e tristeza. Mesmo com tantas batalhas, o que mais me preocupa é viver sem ter a certeza do amanhã, sem saber se estarei aqui com meus filhos, medo de pegar Covid-19. 

Peço misericórdia a Deus! Perdi muitos amigos e clientes para o Covid-19 e não quero que isso aconteça comigo ou algum membro de minha família. Por fim, trago um apelo. O auxílio que recebo do governo e os ganhos financeiros com meu trabalho não dá para pagar com tranquilidade as despesas do mês, porque está tudo muito caro, os preços estão abusivos. 

Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito. Emprego? Ninguém nos dá oportunidade. Ai de nós se não tivermos uma Juma Santos em nossas vidas. Ela é a minha segunda mãe, que cuida, acolhe e ajuda.

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25 a 39 anos Branca Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis

“Como vou manter funcionários sem ter nenhum capital na empresa?”

Meu nome é Keilla Rocha, tenho 28 anos e sou mãe de um rapaz pré-adolescente. Quando a pandemia começou, em 2020, eu estava casada, fazendo o curso técnico de enfermagem e trabalhava como comerciante varejista em Shopping Centers.

Com a pandemia, eu passei a não deixar mais meu filho sair pelo condomínio ou brincar na rua e ele não conseguia entender o motivo. Ele, triste, olhava pela janela e dizia: – Olha lá mãe… Todo mundo brincando na rua! Todos meus amigos nas quadras, e eu aqui em casa, já não aguento mais”.

Ele estava exausto, as brincadeiras dentro de casa já não tinham graça, a escola havia fechado e eu estava super amedrontada e não deixava ele nem “piscar” fora de casa. Parecia um filme de terror sem fim. Sabe aquele apocalipse que tanto nos alertavam desde a infância? Sentia que ele realmente havia chegado. 

Ao acordar, o meu marido já estava com a televisão ligada assistindo incansavelmente a mais um noticiário que nos alertava sobre o maior número de mortes a cada minuto. Às vezes eu parava e pensava: “Será que só eu estou realmente levando isso tão a sério? Onde estão os pais dessas crianças que deixam elas ficarem na rua?” E, por fim, eu fico vista como a errada ou a mãe super protetora.

Senti um desespero quando recebi um e-mail da secretária do suposto médico incrível informando que ele havia ido embora de Brasília para ficar com a família, pelo motivo da pandemia

Filho com epilepsia

Quando meu filho fez nove anos, ele foi diagnosticado com epilepsia. A partir de então, ele tem tomado medicamentos controlados e procuramos o melhor neuropediatra que atendia em Brasília. Comecei a pagar um plano de saúde super caro, pois era o que o suposto médico escolhido aceitava na época. As consultas passaram a acontecer por chamada de vídeo. Nós realizávamos a consulta segurando o celular, sentados em nosso próprio sofá, no conforto do nosso lar, conforto este que meu filho já não suportava mais. 

Realmente, senti um desespero quando recebi um e-mail da secretária do suposto médico incrível informando que ele havia ido embora de Brasília para ficar com a família, pelo motivo da pandemia.

Como eu, sendo uma microempresária, vou manter funcionários sem ter nenhum capital na empresa? Como iria alimentar minha família, pagar boletos que estavam para vencer? Foi um desespero sem fim

Fechamento de shoppings centers, fim do trabalho

O tempo passou e o terror continuou. Eu sempre tentei proteger minha família passando álcool em tudo e em todos. Quando eu e meu ex-marido íamos ao mercado, parecia o fim dos tempos: muitas prateleiras vazias, as máscaras em nossos rostos tampando todos os vestígios de sorriso que poderia surgir, olhares assustados, um silêncio que parece que nos havia matado por dentro e a cada instante. 

No momento em que o nosso empreendimento nos Shoppings Centers faria com que conseguíssemos sair do mar de dívidas, recebemos a notícia de que os shoppings deveriam fechar. Como eu, sendo uma microempresária, vou manter funcionários sem ter nenhum capital na empresa? Como iria alimentar minha família, pagar boletos que estavam para vencer? Foi um desespero sem fim. Não havia nenhuma notícia boa e nenhuma esperança desse pesadelo acabar. Sem a cura, sem a esperança de vacinação, com o caos no governo em nosso País, parecia que não iríamos sobreviver.

No curso de enfermagem, os estágios foram suspensos. E, dessa forma, nós, estudantes inexperientes e despreparados, tivemos que ir à guerra.  Adiantaram o diploma, pois a cada dia que passava eram necessários mais “soldados” da saúde para ir à guerra.

Devemos observar e entender o contexto e não perder a fé. Temos que saber que temos que lutar pelos nossos sonhos e objetivos, mas jamais deixar de ser grato pela vida e pela saúde

Fim do casamento: “Seu egoísmo não o deixava enxergar que diante de tudo aquilo que o mundo passava, o bem maior era a própria vida e a família”

Em meio a essa “tempestade” mundial, o meu casamento não resistiu e sucumbiu em meio a tantos conflitos. As pessoas à nossa volta nos julgavam como o casal perfeito. Porém, todo espetáculo é lindo para quem assiste e só quem vive atrás, nos bastidores, sabe a realidade. 

Ao acordar, sempre via o meu marido mal e desesperado e eu dava apoio e alicerce, sejam eles quais fossem necessários. Eu tentava mostrar que mediante a todo ócio mundial, a nossa família estava bem, tínhamos saúde, alimento na mesa. Mas ele se sentia como se estivesse levando um golpe do destino. Seu egoísmo não o deixava enxergar que diante de tudo aquilo que o mundo passava, o bem maior é a própria vida e a família.

Devemos observar e entender o contexto e não perder a fé. Temos que saber que temos que lutar pelos nossos sonhos e objetivos, mas jamais deixar de ser grato pela vida e pela saúde. Do que adianta chegarmos no topo da montanha sem ter com quem compartilhar? O mais importante é saber como lidamos com o próximo ao longo da caminhada, com quem está contigo nos momentos de dificuldade. 

É fácil ser feliz ao valorizar o próximo nos momentos de bonança e alegria. O sábio é aquele que valoriza e entende que nem tudo são flores. Hoje sei que existe arrependimento em seu coração, mas tudo isso me ensinou a ser uma mulher forte, guerreira e independente. Sou grata a Deus por não me desamparar, por me mostrar o caminho e por me guiar em meio ao caos.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis Prta

“Eu só pensava em não morrer”

Meu nome é Sindy, tenho 22 anos, sou goiana, empreendedora e moro na Ceilândia Norte, periferia de Brasília-DF. 

Quando começou a pandemia do Covid-19, achei que a quarentena fosse durar apenas 15 dias, porém já estamos há dois anos com ela. Como esses dias têm sido longos! 

No começo, todos os dias pareciam iguais. Eram momentos de muita reflexão. Eu pude perceber durante a quarentena que psicologicamente eu não estava bem. Eu entendi também que não era só eu que não estava bem, mas todo o mundo ao meu redor tampouco estava bem. Por isso, eu tentei encontrar meios para melhorar o meu psicológico, com a prática de exercícios físicos e tentando me auto conhecer.

Antes da pandemia, comecei um relacionamento e foi muito complicado pra mim, principalmente no começo do relacionamento, ter que ficar longe de uma pessoa que eu gosto e ter que conviver de maneira mais próxima aos meus familiares. Por mais que eu estivesse acostumada e que amasse minha família, estar em isolamento por causa da pandemia tornou a convivência muito mais difícil.

“Foram tantas vítimas que não quero ser mais uma estatística!”

Desemprego, auxílio emergencial e redes de apoio

Na pandemia, eu me vi  desempregada, tentando me esforçar pra fazer cursos, para ler livros, mas eu só pensava em não morrer ao mesmo tempo que as contas chegavam. Eu mal tinha dinheiro pra me alimentar. Depois de alguns meses de pandemia, o governo resolveu dar auxílio emergencial. Para conseguir o benefício, tínhamos que fazer um cadastro no aplicativo “Caixa TEM”. Todos os de casa fizemos, porém eu não consegui receber esse auxílio. 

A minha irmã e a minha madrasta receberam o auxílio e a gente conseguiu melhorar a questão da alimentação. As despesas fixas (contas de água, luz, aluguel, internet…) obviamente não eram imensas, então “dava pra se virar”. Além disso, minha família recebeu cestas básicas e auxílio gás de organizações não-governamentais (ONG) que antes da pandemia já ajudavam com a questão do combate à fome, especialmente voltada para as pessoas em situação de rua em Brasília. Tais organizações foram a Rede Solidária Barba na Rua, Tulipas do Cerrado, Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas e Frente de Mulheres Negras do Distrito Federal e Entorno/Coalizão Negra por Direito.

Depois desses meses de pandemia, consigo me entender melhor, mas ainda restam sequelas desse Covid-19. Foram tantas vítimas que não quero ser mais uma estatística!

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Prta

“Entendo a frase de Clarice Lispector que diz: ‘Brasília, uma prisão ao ar livre’ pois quando caminho no centro percebo que ressoa a dor”

Meu nome é Eveline, mas desde sempre me chamam de Vivi. Nunca entendi, pois não é um apelido derivado do meu nome, mas hoje sei que a Vivi viveu tantas coisas, vivi e estou VIVA, superando as estatísticas.

Tenho nível superior incompleto, cursando Direito. Vim de um lugar de privilégios, mas hoje ocupo o lugar da não existência, onde os nossos direitos são chamados de benefícios, onde o que foi reservado como resolução para nossos problemas foi o direito penal.

Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre

Vida na rua: uma prisão ao ar livre

Eu moro em Brasília, mas sou nordestina de corpo e alma. Nasci em Teresina (PI), a capital verde do Brasil. Fui atravessada ainda menina nesta mudança de lá para o Distrito Federal. Minha mãe não tinha mais condições de ficar em Teresina, por causa de um processo muito doloroso de separação com meu pai e eu, que era a filha mais nova, tive que vir com ela.

Hoje, depois de muitos anos, entendo a frase de Clarice Lispector que diz: “Brasília, uma prisão ao ar livre!” pois quando caminho no centro da capital, percebo que ressoa a dor. Sou mulher usuária de crack em processo de resistência e enfrentamento há oito anos. 

Não utilizo a palavra limpa porque ela é higienista e nos coloca num lugar de seres imundos, sem humanidade e que é de extrema crueldade. Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre.Sou uma mulher preta. Eu não sabia que era preta, mas descobri num processo também de muita dor. Sou preta! Sou uma mulher periférica e hoje moro em Ceilândia Norte, onde – segundo o rap Cirurgia Moral, grupo que narra a realidade do nosso cotidiano aqui de baixo, “os versos do reino da morte ditam a sorte, nossa vida já é escassa em Ceilândia Norte”, onde o corre da sobrevivência é duro, onde é comum acordar e dormir pensando no que fazer para não deixar filho, neto, enteado e todos os que estão em torno de nossa vida à mercê da sorte, onde as mulheres resistem.

O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana

Vida na rua e no cárcere: cultura punitivista e proibicionista

Eu saí da rua em 2015, meu companheiro de vida e caminhada havia sido privado de liberdade e eu precisa dar suporte a ele, que é um homem negro, pobre e saiu de casa aos nove anos de idade. Foram 34 anos de rua, rua e grades e vice e versa. 

Viver o cárcere foi outra dor extrema. Crescemos dentro de uma cultura punitivista e proibicionista, que faz controle de corpos por meio de uma política de miséria, da qual a guerra e as drogas fazem parte. Todo o tempo que meu esposo ficou naquele lugar, eu fui a chefe de família, a mãe, a avó, a madrasta. 

Passei por um câncer no colo do útero e a cada dia surgia uma nova dificuldade. O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana. O que chega para sociedade não é a realidade, nem do processo penal e muito menos da execução da pena. Mas eu somente compreendi isso quando vivi. 

Foram tempos difíceis. Ali meu melhor amigo e parceiro de vida estava submetido a todo tipo de violação. Não só ele como todas as pessoas privadas de liberdade neste país, principalmente as mulheres, que são abandonadas pela sociedade machista e patriarcal. Antes de tudo a sociedade nos pune por sermos mulheres. 

No sistema prisional, nós, familiares, somos também aprisionados e eu estava mesmo adoentada, me virando para poder suprir as necessidades da minha família, me alimentar, ter onde morar, não perecer. Eu fazia faxina, cozinhava para eventos, fazia trabalhos freelancer, de domingo a domingo incessantemente.

São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito

Luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista

Em 2019 eu cheguei no limite de minha sanidade mental e fui acolhida pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento. Foi nesse espaço que eu senti a potência dos movimentos sociais. Eu não sabia como funcionava e somente acreditei que existia um lugar para familias de pessoas privadas de liberdade e sobreviventes do sistema prisional quando vi com os meus próprios olhos aquelas pessoas que faziam resistência e enfrentamento de forma coletiva. 

Quando cheguei no encontro, realizado no final daquele ano, em Fortaleza -CE , conheci muitos movimentos: o Coletivo Vozes do Cárcere, Elas Existem, EuSouEu, AMPARAR, RENFA e também as Tulipas do Cerrado

Nunca imaginei que ali eu encontraria o abraço, o acolhimento, inclusive a subsistência através do apoio coletivo dos movimentos e organizações que compõem essa luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista. São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito. 

Naquele dia minha vida mudou, principalmente em relação à solidão que eu vivia na caminhada do cárcere. Conheci tanta gente incrível e que vem me ensinando tantas coisas. Uma delas foi Juma Santos. Nunca deixarei de citá-la porque as Tulipas do Cerrado é um dos lugares que hoje para mim é vida.

“O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada”

Pandemia: sem emprego, sem perspectivas

Quando a pandemia do Covid-19 chegou, fiquei sem fazer as faxinas, sem os freelancers e, se não fosse por essa rede de apoio, eu e minha família teríamos ficado sem amparo. Através destes movimentos, foi garantido a sobrevivência, a minha e tantas outras mulheres, sobreviventes da rua, do cárcere, o povo LGBTQIAP+ que sofrem e vivenciam grandes violações, abandono e são excluídos de forma muito cruel. 

No início da pandemia, meu esposo voltou para casa, em regime domiciliar. O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada.

“Não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19”

Rede de apoio: seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo

As Tulipas do Cerrado fizeram uma intervenção que foi crucial na mudança de visão de vida e de amparo na vida de meu esposo. Aliás, acolheu nossa família e estamos seguindo de pé por termos esses lugares de resistência, bem como a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, que vem trazendo também formas de fortalecimento para nós familiares. 

Nada sobre nós sem nós, seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo, se cuidando juntas (os) e juntes. E hoje sei a importância da redução de danos nas nossas vidas. Sim, eles “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de ficar vivas (os) e vives! ”. 

A pandemia trouxe dificuldades muito piores para nós, mas eu posso falar que não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Prta

“Eu não conseguia mais pagar aluguel e fui morar na rua”

Eu me chamo Bruna. Sou mulher cis preta, tenho 26 anos, mineira, resido em Planaltina, no Distrito Federal (DF), possuo ensino fundamental incompleto e sou redutora de danos.

No começo da pandemia do Covid-19, eu achava tudo maravilhoso, já que minha mãe, que trabalhava em um hospital regional pela Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (FUNAP/DF), onde surgiu a primeira vítima do Covid-19 no DF, foi afastada do serviço por ter comorbidade e fazer parte do grupo de risco.

Porém, desse dia em diante, muita coisa mudou. A pandemia se alastrou em Brasília, no Brasil e no mundo, matando milhares de pessoas. A minha vida também passou por transformações: eu não conseguia mais pagar aluguel e fui morar na rua.

Na rua, eu só aprendi coisas ruins: usei drogas, consumi muita bebida alcoólica, caí na farra. Contudo, também tive coisas boas: conheci pessoas legais. Na época em que eu estava na rua, minha mãe estava presa e isso mexeu comigo. Ela era tudo o que eu tinha para me manter firme. Eu queria visitá-la, mas não conseguia. 

“Gostaria de agradecer aos profissionais da saúde, cientistas e governantes que têm trabalhado muito para garantir a saúde e combater a pandemia. Eles têm toda a admiração e apoio desta ex-moradora de rua”

Volta por cima: apoio e trabalho para garantir o sustento da família

Foi uma fase muito difícil até eu conseguir me organizar para o retorno da minha mãe para casa. Nesse período eu conheci algumas pessoas que me deram oportunidade de trabalho, participei de alguns projetos nas Tulipas do Cerrado e no Coletivo Aroeira, que me ajudam, esclarecem minhas dúvidas.

Eu vejo que estou crescendo a cada dia, é crescimento pessoal e foi graças a essas oportunidades que hoje me sinto vitoriosa: eu pago meu aluguel, junto meu dinheiro, cuido da minha mãe e não moro mais nas ruas.

Além disso, com a ajuda de amigos que me orientaram, passei a receber a Bolsa Família, um benefício que eu não sabia que poderia ter e que tem me ajudado muito.

Sou grata a Deus e a essas pessoas, que também têm sido meu apoio para progredir na vida. Mesmo com muitas dificuldades causadas pela pandemia, eu me encontro saudável, cuidando da minha mãe, estudando e trabalhando para garantir o nosso sustento.

Por fim, gostaria de agradecer aos profissionais da saúde, cientistas e governantes que têm trabalhado muito para garantir a saúde e combater a pandemia. Eles têm toda a admiração e apoio desta ex-moradora de rua.

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25 a 39 anos Distrito Federal Parda Pós-Graduação Completa

“Na pandemia, a Tulipas do Cerrado começou a distribuir alimentos e produtos a grupos em vulnerabilidade social”

Sou Victória, mulher cis parda, tenho 26 anos, sou enfermeira, especialista em saúde mental, álcool e outras drogas, e redutora de danos voluntária na organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado desde 2019. Resido em Ceilândia, periferia do Distrito Federal e irei fazer o relato a partir dos impactos que a pandemia trouxe à ONG.

Antes da pandemia, a ONG Tulipas do Cerrado realizava ações de redução de danos nas ruas, em territórios vulneráveis, com foco nas pessoas em situação de rua, profissionais do sexo e população LGBTQIAP+. Além disso, a organização estava se inserindo nos ambientes de festas, com a oferta de acolhimento e atendimento às pessoas que estavam sob efeito de álcool e outras drogas, bem como realizava ações de redução de danos (oferta de água, frutas, informações de saúde) para o público que frequentavam as festas. 

A Tulipas do Cerrado também realizava cursos, seminários e oficinas em volta das temáticas: redução de danos; guerra às drogas; trabalho sexual; cuidado à população em situação de rua; atenção à saúde da comunidade LGBTQIAP+

Pandemia: ações na rua deram lugar a atendimento psicossocial e arrecadação de alimentos

Porém, com o surgimento da pandemia do novo Coronavírus e as medidas de enfrentamento focadas no distanciamento social e na quarentena, a instituição ficou dois meses fora das ruas, o principal local das ações. Nesse período, realizamos mobilização pelas redes sociais para adquirir doações de roupas, produtos de higiene pessoal, alimentos não perecíveis, cestas básicas e água, para que pudéssemos entregar em domicílio esses insumos para as pessoas que estavam sendo acompanhadas pela ONG. 

Ainda naquele tempo fora das ruas, a organização passou a oferecer atendimento psicossocial online. A ONG conta com uma equipe multiprofissional voluntária de profissionais da saúde que tem experiência em cuidado em saúde mental na perspectiva psicossocial e de redução de danos, da qual eu faço parte. Essa atividade tinha os objetivos de dar suporte e escuta qualificada às pessoas que estavam em sofrimento mental e em situações de agudização de quadros de ansiedade e/ou depressão causadas pelo impacto da pandemia (isolamento, pobreza, insegurança, mortes…). Esse trabalho envolvia também o encaminhamento dessas pessoas para a Rede de Atenção Psicossocial do Distrito Federal e Entorno, para dar continuidade no cuidado e acessar outros profissionais, como psiquiatra e terapeuta ocupacional.

Doações

Em meados de abril de 2020, a Tulipas do Cerrado começou a distribuir doações de alimentos, roupas, máscaras e álcool em gel a grupos de trabalhadoras sexuais cis e transgênero, chefes de família, que estavam em vulnerabilidade social decorrente da pandemia. A entrega de cestas básicas, cesta verde e ticket alimentação ocorrem mensalmente com a ajuda de múltiplos parceiros da rede.

Em 2020 e 2021, a Tulipas do Cerrado participou de editais que possibilitaram a implementação de projetos voltados a prevenção do Covid-19, redução de danos e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, com foco na população em situação de rua e trabalhadoras sexuais. 

Com os recursos financeiros adquiridos, foi possível: custear medicamentos para alívio de sintomas do Covid-19 às mulheres assistidas pela instituição; pagar gás de cozinha para as que não tinham condição de obter por conta própria; e oferecer ajuda de custo àquelas que estava indo aos territórios para realizar as atividades do projeto.

Atualmente, as atividades da Tulipas do Cerrado têm sido possíveis com a ajuda de outras organizações e coletivos, bem como com o financiamento de projetos. Mesmo que nossas atividades estejam aquém do que projetamos antes do surgimento da pandemia, creio que estejamos realizando da melhor forma que tem sido possível e, apesar das dificuldades, temos conseguido reduzir os danos sociais e de saúde e provocar melhorias na qualidade de vida das pessoas que são acompanhadas pela ONG.