Meu nome é Francisco Belchior. Sou autônomo e tenho 63 anos.
A pandemia afetou não só minha vida, como todas aquelas de pessoas mais vulneráveis. No meu caso, ela afetou principalmente a questão financeira. Eu tinha um pequeno comércio e a situação está muito difícil.
Fome
Um dos momentos mais difíceis da pandemia foi chegar em casa e não ter o que comer. Isso aconteceu comigo mais de uma vez e felizmente contei com a ajuda de um amigo.
Além da questão financeira, perdi uma irmã na pandemia e vários colegas. É triste perder um ente querido, da sua família.
A minha mensagem vai para as pessoas que sobreviveram à pandemia. É preciso ser forte porque não é qualquer um que aguenta passar por essa situação.
Relato de Francisco Belchior, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Me chamo Dona Fátima, tenho 64 anos e nasci no Igarapé de Nhamundá. Me mudei para Parintins só quando meu pai comprou uma casa. E eu estou aqui até hoje.
Eu tive 10 filhos, mas alguns já são crescidos, então hoje em dia eu tô só com 3 meninas e uma neta. Uma das minhas filhas mora em Manaus, e eu, sempre morei por esse pedaço, conhecido como o reduto do Boi Caprichoso, no lado azul da cidade perto do porto.
Memórias do Boi e da cidade
Contudo, eu não lembro do Boi desde a sua fundação, pois, já pegara aquela animação já andando, no meio do caminho. Antigamente, eu nem me metia nisso, mas, as meninas novas da cidade sempre iam para o Boi, já eu, ficava um pouco de fora. Mas agora, depois de tudo, eu não quero perder nenhum ensaio.
Em algumas memórias, lembro do Boi brincando na rua, na época da lamparina. Era uma briga, tanto que até tinha pedra no meio. A gente andava por toda a cidade, sempre no meio da rua.
Hoje, vou sempre para os ensaios e festas do Boi, principalmente para torcer por ele — inclusive, vou para as festas, mas não danço. Minha filha, Darley, sempre esteve trabalhando nas alegorias do Boi.
Às vezes eu penso sobre outras famílias que perderam entes queridos…
Nestes tempos conturbados, a pandemia levou muito gente, mas, graça a Deus, não levou ninguém da minha família. Às vezes eu penso sobre outras famílias, que perderam seus entes queridos fora da hora, fora do momento — triste.
A minha vida durante a pandemia foi somente em casa. Eu ia para a pia, levava a máscara e álcool em gel, não saía de lá. Quando saia, tomava banho, e sentada, ficava pensando em quem já se foi. A minha mãe partiu durante a pandemia, mas não por conta do vírus, ela se foi por causa de um câncer. Cuidei dela até o final de sua vida, chegando a falecer aqui em casa.
O futuro…
Para o futuro quero assinar a minha carta de aposentadoria, que resta, somente, a minha assinatura para eu já poder receber o meu benefício. Hoje, fiquei com a casa que meu pai comprara. Quero arrumar toda a casa para ela ficar bonita!
Além disso, estou ansiosa para a volta do festival do Boi!
Meu nome é Jorge Oliveira dos Santos. Tenho 69 anos e farei 70 em janeiro, se Deus quiser.
Sou vigia do Caprichoso desde 2015, e vou dizer para você: “não é fácil não” — tudo parou, as coisas ficaram muito complicadas. E para piorar, nessa época minha mulher estava em Manaus e eu estava aqui. Eu pensava assim: “ela pra lá eu pra cá”. Se eu adoecesse aqui, ela não podia vir para cá, e se ela adoecesse lá, eu não podia ir para lá”.
Todas essas coisas se passavam pela minha cabeça e eu sempre perdia o sono. Em alguns momentos eu só dormia um pouquinho, “na boca da noite”, e de madrugada eu ficava pensando todas essas coisas, sabe? Aí eu pedia tanto para Deus que nos desse força, que nos livrasse de todas essas doenças, não só na minha família como em todas as outras. Mas essa doença tirou muita gente, muitos colegas nossos. Até minha irmã, que morreu em Manaus, três dias após eu completar 69 anos. E assim foi… levando as coisas e, até hoje em dia, eu não assisto televisão direito. Às vezes um pouquinho de jornal, um pouquinho de jogo, aí quando vejo aquelas notícias da doença, opto por não assistir mais à televisão.
Tudo parou
Então, tudo parou né!? Aqui nesse galpão a gente olha de um lado para o outro e não se vê ninguém como antigamente — já que minha trajetória de Caprichoso se iniciou em 1996. Lá trabalhei como soldador, e depois que chegou essa doença, acabou tudo. Muita gente tem falta disso, pois, quando terminada o Boi, eu viajava para São Paulo e Rio de Janeiro. E devido à paralisação, eu ficava sem ganhar esse dinheiro.
Os artistas e soldadores vivem desse trabalho de vai e volta, e assim fica. Então, agora eu espero, se Deus quiser que eu continue trabalhando. Eu, com muito cuidado sempre, chegava em casa, já tomava muito cuidado, muito remédio — que era dividido entre filhos e irmãos — e máscara. Eu não tiro a máscara por nada. No Galpão, mesmo sendo só eu e o meu colega que não está lá diariamente, eu nunca tiro a máscara — tirei só agora para dar essa entrevista. Só tiro para beber água, comer algo, mas depois eu boto de novo.
Eu espero que tudo volte ao normal, porquê esse vírus não é. Depois que eu tomei a primeira dose da vacina, antes de inteirar os 3 meses, a enfermeira ligou para mim, que já estava com mais de dois meses, pedindo para retornar e tomar a segunda dose. E, se Deus quiser, agora dia 8 eu tomo a terceira dose já de novo, se Deus quiser. Tenho fé em Deus que tudo vai passar, que tudo vai voltar ao normal, se Deus quiser, tenho fé em senhor Jesus.
A festa do Boi Caprichoso
Assistimos a live do Bumbódromo, e já deu um alívio mesmo não sendo como a festa que a gente ia. Então, a live já me deu mais uma esperança. Voltando a falar brevemente sobre a minha irmã, mesmo ela se cuidando, ela foi embora. Apesar disso, creio que as pessoas, nesses tempos de pandemia, passaram a dar mais atenção e carinho para as suas famílias — o que é ótimo.
Agora, pensando, esse momento foi bem difícil, né? Mas, felizmente, trouxe bastante aprendizado para as pessoas. Hoje em dia, a gente fica mais alegre, pois eu saio na rua para ir ao trabalho e depois volto para a casa. As pessoas já estão andando mais, circulando pelas ruas. E eu espero que, se Deus quiser, que em 2022, já vai ter o festival, e isso vai ser um alívio para muita gente.
O festival do Boi é um evento muito importante para as pessoas da nossa cidade, trazendo venda e lucro para nós.
Vai passar…
Termino esse relato agradecendo, e dizendo que aprendi muito com essa doença que circulou na nossa cidade. Se cuidar e ter o maior cuidado, como, por exemplo, chegar em casa e já ir direto para o banho, para depois entrar em contato com a minha família. Eu já não chego mais em casa como antigamente.
Espero que, mesmo após ter tomado a vacina, as pessoas continuem se cuidando.
E quem não tomou a vacina, que procure um posto de saúde!
Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.
Tenho 60 anos e acredito que envelhecer é um privilégio, principalmente para a mulher trans.
O nome que escolhi é um fragmento do meu nome de registro — bíblico — um apelido pelo qual já me chamavam. Venho de uma família de 12 irmãos, cristãos adventistas do sétimo dia. Nasci em Mundo Novo e fui criada em João Dourado, uma vila.
Descobri muito cedo que era diversa, não porque eu pensava ser, mas porque minha mãe dizia que eu era diferente, meus irmãos e irmãs diziam que eu era diferente, a igreja dizia que eu era diferente.
Eu não sabia o que era “ser diferente”
Eu só sabia que não gostava das mesmas coisas que eles, por isso resolvi silenciar, por não suportar ser apontada como culpada por tudo, justamente pelas minhas diferenças. .
Aos 14 anos, cursando o segundo grau, eu cantava e era ensinada a tocar instrumento pela esposa do pastor, que me adorava. Todo mundo dizia ao meu pai que eu era uma criança maravilhosa, mas ele não conseguia aceitar a minha natureza tão distinta dos meus outros irmãos.
Eu não gostava de jogar bola, ir para a roça e tomar banho no açude.
Me identificava muito mais com as minhas irmãs. Eu ficava muito revoltada, questionando o porquê de me chamarem “veado”, “salta moita”, — visto que eu nem sequer tinha experiências sexuais ou manifestava desejos.
Sonhava e imaginava que minha vida seria transformada de uma hora para outra, mas não sabia como.
Tinha muito apreço pela igreja. Ainda aos 14 anos, perdi o meu pai. Foi quando minha mãe entendeu que seria melhor para eu morar com as minhas irmãs em Salvador, onde elas já estudavam.
A passagem por Salvador e Rio
Passava um tempo com cada uma delas. Elas não eram perversas comigo, mas havia, sim, uma repressão, que hoje eu consigo entender com mais facilidade. Aos 16 anos, fui ajudante de cabeleireira e, aos 19, concluí o segundo grau.
Estudando à noite, eu via mais meninos gays, com liberdade de serem quem eram. Fiz amizades e, nessa fase, eu me entendi enquanto homem gay, porque eram as referências mais fortes que se tinha. Ainda não sabia o que era “trans”.
Sabia que gostava de homens e que não me identificava com as vivências mais comuns. Tive meu primeiro relacionamento gay ótimo. Mas melhor ainda foi ter descoberto os palcos.
Me tornei transformista, comecei a fazer shows na noite e ter muito sucesso em Salvador. Fui eleita Miss Beleza Gay, Miss Universo, e aos 22 fui para o Rio de Janeiro, me apresentando.
Eu representava o Nordeste, interpretando Sarah Jane com o sucesso “A Roda”. Numa noite, no Teatro Brigitte Blair, conheci Claudia Celeste — a primeira travesti a atuar como atriz em novelas brasileiras — que se tornou a minha referência.
Quando a vi, entendi ser aquela forma feminina que eu queria assumir. Encontrei-a no camarim, conversamos, ela me convidou para a sua casa e me ensinou todos os próximos passos. Entendi que não seria fácil incorporar o universo trans, mas estava decidida. Liguei para Salvador, para me desligar do salão onde trabalhava como ajudante, e no dia seguinte, já comecei a tomar os hormônios. Fiquei três anos no Rio sem ver a minha família. Já estava transformada, gloriosa. Os homens já paravam os carros — e é importante falar, nesse ponto, que não são as mulheres trans que buscam pela prostituição, mas a prostituição que nos chama.
“Somos empurradas para essa vida.”
Imagine: eu trabalhava no salão ganhando 250 reais por semana, o valor de um programa ou até mais.
Nós, transexuais, somos essência.
Nós apenas pomos para fora o que existe dentro. Por isso, arriscamos pôr silicone e fazer cirurgias — nós nos expomos à morte numa mesa de cirurgia para conseguirmos expressar a nossa feminilidade.
Passados os três anos, voltei para Salvador para visitar as minhas irmãs. Imaginei que, por estarem na universidade, entenderiam meu processo de mudança. Ao adentrar a casa, me encontrei logo com dois dos meus irmãos. Foi um momento violentíssimo. Para eles, foi como se eu tivesse virado um monstro.
Toda a minha infância veio à tona. Aquilo me deixou destruída, decaí muito. Dali, busquei apoio com amigas, pois acreditava que não conseguiria bancar a transição para a minha família. Apesar da dor e sofrimento, eu não conseguia sentir ódio.
Não voltei mais para o Rio e quase cheguei a desistir por conta do desânimo em que eu me encontrava.
Mas eu já estava tão bonitinha — porque nós ficamos bonitinhas no início; linda, nós ficamos depois que entende a vida e nossa alma.
Retomei os shows em Salvador e tive sucesso. Representava Gretchen, justamente porque os taxistas mexiam comigo e me chamavam assim por causa do excesso de silicone e harmonização. Aproveitei para ganhar dinheiro fazendo programas com esses mesmos homens. Um tempo depois, uma amiga me disse que deveria ser “puta” na Europa.
Apesar de estar em um relacionamento em que eu amava muito o meu companheiro, decidi abrir mão e me aventurar – principalmente porque eu vivia insatisfeita com o sexo.
A genitália me causava um incômodo que eu ainda não sabia como chamar — hoje, sei: disforia.
A estadia na Itália e o câncer
No fim desse percurso, descobri um câncer no intestino. Veio o pânico. Com toda a vivência cristã que tive desde a minha criação, pensava que todos estavam certos — que era um “castigo de Deus devido ao pecado”.
Foi muito difícil, porque eu sempre acreditei em Deus. Nunca mudei de religião. Eu me considero adventista do sétimo dia, porque essa fé me bastou.
E, apesar de renunciarem a nós, a família é a nossa base. Conversei muito com Deus. Iniciei o tratamento, usei bolsa de colostomia por quase três anos e consegui vencer o câncer. Gastara metade das economias que havia feito — inclusive, para a cirurgia de resignação.
Nessa etapa, minha irmã disse ter entendido o que eu queria e vendeu o próprio apartamento – passando a morar junto comigo – para que eu pudesse ir para a Tailândia realizar o meu sonho.
Eu ressurgi das cinzas. No meu retorno aos palcos, ainda fragilizada, bem mais magra, ouvi alguém da plateia fazer um comentário infeliz que — após me posicionar — me fez abandonar os palcos. Aquilo me magoou ainda mais porque o ambiente era uma casa gay, e eu esperava — e desejava — ser acolhida e respeitada naquele lugar.
Mais uma vez, encontrei apoio e suporte nas amigas. Sentia haver perdido um pouco da estrutura para enfrentar a vida. E um câncer também nos fragiliza.
Mas a cirurgia foi a gota d’água de felicidade para mim. Eu me sentia em paz comigo, até mesmo sexualmente. Encontrei uma pessoa, aproveitei a nossa relação e logo em seguida descobri outro câncer, agora na tireoide.
Dessa vez, foi menos intenso. Até porque, por algum motivo, o médico disse que as minhas cordas vocais estavam limpas e que já não era mais um câncer. Retirei a tireoide e segui trabalhando como cabeleireira.
O início da pandemia
Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia de Covid-19, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.
Muitas pessoas indicavam o meu trabalho como profissional de beleza: “Dicca, vem fazer uma escova”, “Dicca, vem me maquiar”, e, claro, eu ia e fazia preços mais baratos.
Durante a pandemia eu perdi duas irmãs, mas não por Covid-19.
Uma, logo no início, que estava lutando contra um câncer, e outra por um infarto fulminante. Com a perda de minhas irmãs, perdi também o equilíbrio. Porque a família é a base da gente – isso é uma verdade.
Por mais que eles tenham nos renunciados, nós nutrimos amor, de alguma forma, por essas pessoas. Por isso dói tanto. A irmã que ficou comigo, dependia muito de mim. Eu fiquei muito para baixo.
A vulnerabilidade causada pela pandemia
Foi quando fui salva por minhas amizades outra vez. Fomos nos apoiando e encontrando formas de ajudar umas as outras. E eu não tenho vergonha de pedir. Chegou um momento em que eu não tinha dinheiro nenhum.
Estava morando em um apartamento próprio, mas precisava pagar condomínio, contas de luz; precisava do básico: tomar banho, escovar os dentes, tomar os remédios para o estômago, tireoide e pressão.
Cabeleireira, com 60 anos, nunca tive carteira assinada e não recebo nenhuma assistência de serviço social.
Sempre fui militante, porque toda trans é militante. Quando ela dá a cara para a sociedade, ela está militando. Eu só não cheguei ao extremo de uma tristeza profunda — para não dizer “depressão”, pois não gosto dessa palavra — devido às pessoas que conheciam a minha história e me acolheram.
Buscamos por esperança e pelo fim da pandemia
O fim da pandemia não é tão esperançoso. Os contextos e dificuldades só se agravaram. Tenho muitas limitações. Apesar de tudo, eu sou uma pessoa feliz. Meu sonho é conseguir uma aposentadoria ou auxílio que me possibilite descansar, sabendo que terei, pelo menos, o básico para me manter.
Eu não tenho mais condição de ir para as ruas. Não condições físicas, pois, mesmo com a minha idade, ainda tenho um corpo bonito e poderia colocar um vestidinho preto para me prostituir. Isso ainda acontece vez ou outra. Mas não tenho mais estrutura para isso.
Nós realmente precisamos aprender a amar e valorizar os amigos.
Mais do que com palavras. Com atitudes reais. Estender a mão antes de alguém “cair no buraco”.
Na pandemia, eu aprendi a falar a palavra “amor”, mas, muito mais, viver ela. Amar é um sentimento nobre.
Perdi muita gente durante a pandemia. Tiveram duas pessoas que me fazem muita falta. Uma delas foi uma grande companheira de caminhada, que lutava comigo há muitos anos.
Chamo-me Rosária, nasci no Uruguai, mas moro no Brasil há 34 anos.
Sou uma das filhas de um casal que gerou 11 mulheres. Casei-me, tive 3 filhas e saí do meu país devido à violência doméstica em meu matrimônio.
Meu marido era um homem muito forte, da Marinha, e muito violento, de modo que ninguém conseguia contê-lo ou mudar a situação. O pior momento, que me fez decidir vir de vez para o Brasil, foi quando fugi para a casa dos meus pais e, ao saber que meu marido estava a caminho da casa deles para me buscar, fugi com as minhas filhas — que eu levava sempre para todo lugar.
A fuga para o Brasil
Ao chegar na casa dos meus pais e não me encontrar, ele bateu nos meus pais. Depois, ele foi até a casa desses amigos, que tinha apenas uma porta, pela qual eu não poderia fugir. Saímos pelas janelas, usando cordões de sandálias que amarramos para descermos.
Depois desse acontecimento, prometi a mim mesma que jamais permitiria que algo como aquilo, acontecesse de novo.
Conheci alguém que gostava muito de mim, com quem entrei em contato, e que me apoiou, me trazendo para o Rio Grande do Sul, no Brasil.
Após 21 anos, voltei ao Uruguai e, mais tarde, retornando ao Brasil, descobri que esse outro companheiro também era violento.
Foi na Bahia que eu realmente soube quem era ele — que sempre ia e voltava para o Uruguai. Ele não trabalhava, eu não trabalhava, mas na minha casa sempre tinha tudo do bom e do melhor.
Ele me dizia ter uma transportadora de frutas, e eu acreditava. Quando ele ficou internado, no Rio Grande do Sul, fui ao encontro dele e descobri que ele era um assaltante de bancos muito perigoso — tanto no Brasil, quanto no Uruguai. Ele foi preso, e eu, que fiquei com muito dinheiro, sempre o visitava.
Uma mulher corajosa
Mas chegou um momento que o dinheiro acabou, as viagens de visitação cessaram, e ele disse não querer mais saber de mim. Então, me vi liberta. Eu e minha filhas fomos vivendo e construindo nossas vidas.
Ao saber que alguém estava me procurando e oferecendo 50 reais — muito dinheiro na época — para quem me encontrasse, fui para Sergipe, onde passei 3 anos e voltei. Apaixonei-me por um baiano, com quem tive uma filha. Vivemos juntos por 12 anos.
Ele enfrentava o racismo de forma muito séria. Ajudei ele, que era usuário de drogas, mas, mesmo assim, ele ficou muito doente.
Teve diarreia, manchas pelo corpo, e diagnosticado com AIDS. Fiquei firme com ele, por 3 meses. No hospital, assistia palestras e recebia informações sobre HIV/AIDS, mas os grupos de risco que eles apresentavam — usuários de drogas, prostitutas, homossexuais — não se enquadravam no meu perfil. Por isso, fiquei tranquila. Mas, após uma médica conversar comigo, me dei conta de que eu poderia, sim, ter sido infectada, e, ainda, ter transmitido às minhas filhas e netas, pelo leite materno.
Elas não foram infectadas, mas eu recebi o resultado positivo para HIV. Meu mundo caiu, eu pensava que morreria a qualquer momento. Fui para o enterro do meu companheiro e não pude mais entrar em casa. Foi aí que encontrei o Gapa. Eu pensava “nunca mais ninguém vai me abraçar, me beijar ou chegar perto de mim”. Mas fui abraçada pelo Gapa, e minha vida mudou.
A rotina antes da pandemia
Passei a estudar, me informar, capacitar e a me engajar no ativismo.
O Gapa se tornou essencial na minha vida, em todas as áreas: emocionais, profissionais, relacionais.
Tenho problemas cardíacos, como “pré-infartos”, e minha filha passou a ser a minha companheira, cuidar de mim.
Antes da pandemia, eu trabalhava no Balcão de Justiça como mediadora de conflitos. Fazia, também, faxinas. Além disso, congelava alimentos para os clientes, na casa dela. Trabalhava quatro vezes por semana, ganhando 100 reais por visita.
Eu tinha um bom salário. E, nessa altura, chega à pandemia.
A pandemia desnudou os abismos sociais
Eu, como representante estadual da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP), me pus à disposição, com outras pessoas do ativismo, para articular estratégias para que a pandemia não afetasse o PVH, — principalmente com a retirada de medicamentos.
Queríamos, por exemplo, que todas as pessoas que tivessem a carga viral indetectável e o CD4 estável, recebessem medicação suficiente para 3 meses, para evitar que saíssem de casa.
É muito difícil falar apenas sobre mim, pois, a minha experiência é pensada sempre de forma coletiva, seja pela minha família ou pelo ativismo. Eu me doo.
Recebi muitas ligações e isso me incomodou porque, diante das limitações, eu não conseguia atender como atendia antes. Eu constatava o desespero das pessoas, a vontade de suicídio das pessoas, a falta de alimento e suporte.
A partir disso, eu me retirei de todos os grupos de movimentos que participava, e fiquei apenas me dedicando ao Gapa e a Rede de Comunidade Saudável.
Tivemos muitos problemas, mas, mesmo assim, ajudamos as pessoas a fazerem o recadastramento do SUS e a inscrição para o Auxílio Emergencial.
Nunca tive medo de morrer. Saí de uma reunião, entrei em casa, e passei um ano e meio sem sair — ninguém entrava lá também. Minha filha era quem fazia minhas compras e pegava a minha medicação.
O pavor da pandemia
Eu me preocupava muito com uma outra filha que mora comigo, pois ela tem escoliose, de modo que o osso da coluna pressiona o pulmão e, com esse problema respiratório, ela fazia parte do grupo de risco.
Assim como eu, devido ao problema cardíaco. Contudo, eu nem lembrava de mim, só pensava nela. Tudo que chegava em casa era deixado na porta, eu recolhia tomando todos os cuidados, usando muito álcool e depois lavava.
Após ter tomado às duas doses da vacina, fui diagnosticada com Covid-19. Busquei acompanhamento médico, fiquei internada no Couto Maia e, enquanto eu estava lá, soube que a minha filha também havia testado positivo para o coronavírus.
Não faço ideia de como isso pode ter acontecido, diante de tantos cuidados tomados.
A minha felicidade é estar viva, e ver muitas das pessoas que conseguimos ajudar, vivas também.
Aprendi a ter fé e a acreditar mais em mim, porque, antes desse momento difícil, eu não acreditava muito em mim.
Mas, hoje, eu acredito, e sei que tenho forças para fazer muita coisa.
Maria Auxiliadora Pereira e Silva, da Associação Cultural Boi-Bumbá Caprichoso, sobre a pandemia em Parintins
Eu sou Maria Auxiliadora Pereira e Silva, mais conhecida como Dora Caprichoso. Trabalho no Curral [da Associação Cultural Boi-Bumbá Caprichoso] há vinte anos. Comecei [no setor de] serviços gerais e hoje sou diretora do Curral, desde 2016.
A pandemia me trouxe uma tristeza muito grande pois fui obrigada a me ausentar do Curral. Passar meses fora daqui foi a maior tristeza que senti. Fiquei muito abalada quando vi as pessoas morrerem e deixei de assistir o jornal. Foi um desespero, fiquei muito nervosa e acabei trazendo isso para a minha vida.
Agora já estamos vivendo momentos melhores e espero que não voltemos mais àquela situação. Ainda que o momento mais crítico da pandemia tenha passado, a gente continua a sentir tristeza pelas pessoas que morreram e, dessa forma, a pandemia deixa marca. Perdi amigos queridos e isso me entristece muito. Eu não gosto muito de falar porque sinto uma dor muito grande no meu coração.
Espero que isso [a pandemia] termine definitivamente. Por ser uma cidade pequena, Parintins foi bastante afetada. Pessoas como eu ficaram desesperadas por não poder trabalhar.
Minha experiência na pandemia
Quando chegou em agosto de 2021, o presidente [do Boi Caprichoso] me perguntou se era hora de voltar ao trabalho e eu retornei ao Curral porque já não aguentava mais o sofrimento de ficar em casa sem poder fazer nada. Muitos sócios queridos do Caprichoso morreram e ao ficar em casa, sem poder fazer nada, me deixava ainda pior.
Eu espero que, daqui para frente, tudo volte ao normal. Espero que possamos viver como antes, com alegria, com festas. Quero poder passear, tirar um dia para lazer sem a preocupação de não poder estar em determinado lugar por causa do Covid-19.
“A pandemia ainda não passou e pode voltar a seu estado mais crítico, mas se a gente se respeitar e continuar usando a máscara, a gente vai ter um final muito feliz.”
Eu também espero que as pessoas se respeitem uns aos outros, que continuem usando máscara até que tudo isso passe. Se todos colaborarem, a pandemia acaba. Espero que, na idade que estou, não presencie mais uma pandemia dessas. Ela foi tão triste para nossas vidas. Não só pra mim, para todos.
Agora em diante, gostaria que todo mundo respeitasse uns aos outros, continuasse se distanciando, usando máscara, se prevenindo. A pandemia ainda não passou e pode voltar a seu estado mais crítico, mas se a gente se respeitar e continuar usando a máscara, a gente vai ter um final muito feliz.
Fotografia preto e branca do rosto de Heddy Lamar da Silva acompanha relato "Essa pandemia não vai acabar", para a Memória Popular da Pandemia.
Relato de Heddy Lamar, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
A pandemia não vai acabar. Eu acredito que não. E vai ser como a vacina para a H1N1, todo ano a gente vai ter que tomar. Agora, ela é uma coisa mais grave do que a H1N1, bem mais grave, então tenho certeza de que a gente vai conviver com isso para sempre. E estou pensando agora, que já liberaram o carnaval do Rio de Janeiro, tenho neta que mora no Rio de Janeiro, eu ia muito ao Rio, para Copacabana assistir ao desfile.
No início, quando a gente via todas aquelas coisas na televisão, apavorantes, eu ficava sem acreditar. A televisão é um meio de comunicação que te envolve muito, causa medo. No entanto, achava que aquilo era um filme que estava assistindo. A ficha caiu mesmo foi quando eu peguei a doença, mesmo tendo ficado em quarentena. Não saia, ia ao mercado às 7 horas, logo que abria. Quando estava abrindo, eu estava entrando.
A gente sempre acha que irá acontecer com o vizinho, mas não com a gente, mas aconteceu, mesmo já estando vacinada com as duas doses, tive Covid.
A pandemia pode não acabar, por isso já estou imunizada
Eu já tomei a terceira dose da vacina contra a Covid, mas se tiver a quarta, eu tomo também. No início, eu julguei a vacina, mas eu tomaria, não deixaria de tomar por nenhum motivo. É um teste para meus netos, para meus filhos, para meus bisnetos. Eles têm que começar pelos mais velhos. Então foi aperfeiçoando mais, logo as crianças vão começar a tomar. Acho que está tudo certo agora, pois uma vacina para ter uma eficácia cem por cento, ela tem que ser testada de dois a três anos, e não por meses.
Hoje eu penso: meu Deus, o tumulto que é no ano novo. Todo mundo gosta, quem não gosta? E já liberou, então já vai ter réveillon neste final de ano, e vai ter carnaval também. Então, o que você acha que vai acontecer ano que vem? Tudo de novo!
Por exemplo, aqui em Brasília, como estava passando desde ontem na reportagem sobre novos hospitais de campanha. O governador respondeu: “prevenindo”. Por que prevenindo? Por que ele tem a certeza de que a bomba vai estourar novamente? E por que vai liberar? O financeiro, o poder público… vai liberar por isso. Então, tenho certeza de que o ano que vem a Covid vai voltar com força total.
“Se tiver terceira ou quarta onda vai ser muito pior”
Então, se não estivermos em cima das pesquisas para a vacina, para que ela seja eficaz, isso aí vai ser para o resto da vida. E se tiver terceira ou quarta onda, vai ser muito pior. Um ou dois anos acredito que não, exatamente que falei no início, é o período do tempo para uma vacina ser segura ser feita é de três anos para lá. Então, dois anos ainda para frente, a nossa guerra ainda vai continuar. Mas a gente não pode deixar de ser otimista.
As vezes a gente responde assim, enganando a si próprio, porque quero ver todo mundo bem. É isso que a gente quer. Mas não é isso que os governantes estão ajudando a gente a conseguir. A cada dia que ligo a televisão e falam sobre isso, fico mais para baixo, sem confiança, sem esperança de que isso irá melhorar rápido. Não é isso que eles querem. Se eles virem que a Covid vai render muito financeiramente, isso aí não vai acabar. Por isso lhe digo que minha perspectiva não é das melhores. Por dois anos pela frente, não! A não ser que mude muita coisa aí.
“Como acreditar que a pandemia vai acabar?”
Enfim, quando eu vi, isso é uma coisa que ficou gravada na minha mente, fiquei imaginando uma pessoa a pegar um corpo de um ente querido, de um familiar.
Os corpos sendo refrigerados dentro de contêineres, no estacionamento de um hospital, como aconteceu lá em Manaus! Isso é muito triste, gente. Isso é uma coisa de arrepiar. E pessoas morrerem por falta de ar, por não terem cilindros de oxigênio para respirar porque os hospitais não têm. Como é que a gente acredita em um país desse? Como acreditar que pode melhorar em pouco prazo?
Mas, enfim, por isso acredito que a pandemia não vai acabar tão cedo. Não sei se estou certa ou estou errada, mas eu penso desta forma. Eu fico muito triste com isso, porque eu amo tanto meu Brasil. A gente tem uma riqueza tão grande, a gente podia ser um país tão lindo e maravilhoso. Se eu tivesse condições, pegaria meu povo todo e sairíamos daqui!
Eu tive cinco filhos, e perdi o mais velho, com AVC, com quarenta anos, era o Marcel, e quatro meninas. Um homem e quatro mulheres. Desses cinco filhos, foram onze netos e três bisnetos. Eu sou de Belo Horizonte, sou nascida em Belo Horizonte, morei um tempo no Rio de Janeiro, mas me considero pioneira, moradora de Brasília. Eu vim passear em Brasília em 1965, e estou passeando até hoje. Aqui eu formei minha família, então, agora, minha vida é em Brasília. Todos os meus filhos e netos nasceram aqui. Só uma bisneta, das três que eu já tenho, nasceu em São Paulo, é paulista, mas as outras todas nasceram aqui em Brasília.
Relato de Marilza Xavier, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
quando começou a pandemia, eu fiquei com muito medo. Fiquei nervosa, então quando eu ia dormir assim na noite, nossa eu falei assim: ai meu Deus,se eu amanhecer com essa coisa né, aí eu ficava orando pra Deus me dar calma, porque eu fiquei muito nervosa, eu chegava parecia que eu tava andando assim nas nuvens, pisando assim. Foi de nervoso né, e até hoje ainda eu estou nervosa.
Eu tenho medo, eu falo assim: “ôh meu Deus, a gente não tem com essa doença traiçoeira, né? a gente não tem, sei lá , segurança”. Imagina, eu tomei as duas doses e vou tomar no dia 04 agora de novembro o reforço, a terceira dose.
Os acontecimentos que mais marcaram esse processo da pandemia, foram as mortes das pessoas. Todo dia vendo notícia da televisão que informava: morreram tantos! Isso daí me impressionou muito, e pressiona muito, né? Foi quando eu deixei mais, assim, de ir na reunião da igreja, sabe, vejo mais tudo pela televisão, os cultos que vai ter, né? Não vou mais quase em feira, em mercado.
Diminui a ida aos cultos na igreja
É porque eu gostava muito de ir à igreja, eu ia quarta, sexta, aí eu diminuí, tenho tudo aqui dentro de casa. Porque eu tenho cisma, sabe? Se eu cismar com uma coisa, aí que eu fico nervosa, parece até que eu estou doente já, de nervoso. Depois que eu ainda perdi essas pessoas, né, os entes queridos, ainda que me dá mais angustia! Aí eu não saio muito não, porque se eu sair e se aparecer mais de dez pessoas, nossa aquilo pra mim já estou vendo um povão, sem tá vendo, parece que é na minha mente né, ai eu deixo vim embora.
Cheguei aos 81. Em maio, eu faço outro aniversário, se Deus quiser. As meninas farão um bolo. Eu vivo assim mais estou vivendo bem. Eu me alimento bem direitinho, faço as coisas nada assim, como só quando eu devo, não fico me enchendo de besteira, comendo bobagem, doce. Que eu gostava muito de comer doce. Agora eu mesmo, por mim, estou cortando, porque às vezes a gente se sente mal. E assim eu estou vivendo. Se eu fiquei sem Joãozinho, sem a Ju, foi porque Deus quis.
Eu até que não chorei muito porque eu pedir tanto a Deus, Deus eu não quero, eu sei que eles faleceram, a morte não tem volta, a gente tem que pedir isso a Deus. Quando bate uma saudade boa, eu lembro que eu passeava muito com ela, ela me levava para passear, me levava no shopping. Então aí eu vou.
Quando a pandemia passar eu também vou à ceia da igreja, se Deus quiser, quando eu estiver bem segura assim que eu possa ir nos lugares. Todos os anos eu ia à ceia.
Perspectivas para o futuro
Eu tenho assim né mais pra frente, eu acho assim que eu já perdi, eu não sei né, eu acho que era só esses agora, então aí vou ver se eu vivo melhor né, não ficar assim pensamento só em morte, coisa ruim né, nem nessa pandemia passando, aí pronto, eu acho que eu vou viver bem! Até no dia que eu tiver ter que ficar aqui nessa terra né. E sempre eu sou assim mesmo, eu sou sempre eu fui caseira, eu saia assim com a minha neta que se foi sabe, viajava saia muito. Mais eu sempre fui muito caseira assim, não fui muito de ficar assim passeando sabe, em festas, mais nisso tudo eu vivo bem. Está entendendo.
É, boas expectativas do futuro né. Vamos ver, entrando o ano dos meus 82, 83, como vai ser né. Se eu vou ficar assim forte como eu ainda estou né. Eu não ando não é porque eu não posso é porque eu não gosto e pra mim eu não posso ver muita gente, tumulto eu não posso porque ataca meus nervos e parece que aquilo já é uma coisa muito ruim para mim. Então, eu prefiro ficar mais isolada. E assim nós vamos vivendo chegando na nossa idade feliz, porque a morte não traz muitos, não é feliz, mais deu pra me superar bem né, que eu não fiquei assim com a minha cabeça doente, que eu acho digo assim na minha cabeça me atormentando né, porque eu só tenho saudade boa.
Eu vou levando agora quando eu falo né, agora a gente tem que levando a vida né, que a vida se segue né. Cada um de nós tem uma missão e ela acaba no momento certo. Se vai um mais velho, se vai um mais novo e fica mais velho, é porque era o seu destino.
Fotografia preto e branca do rosto de Margarida Antônia Silva acompanha relato "Tudo o que está acontecendo já era predestinado", para a Memória Popular da Pandemia.
Relato de Margarida Silva, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Tragédias como pandemia e vulcões que estão acontecendo no mundo, tudo já estava predestinado a acontecer, e virão, ainda, outros desastres pelo que eu sei. Logo, a solução é se prevenir e esperar, ver o que é que Deus tem pra fazer com cada um de nós, porque ninguém tá livre de nada. Só que eu não tenho medo, apesar de esperar viver mais tempo, ainda. Eu perdi uma irmã há pouco tempo, ela tinha 90 anos, nem óculos usava. Fazia até labirinto, um bordado feito em grades.
Quando eu me casei, tinha medo de morrer e deixar os meus filhos pequenos sofrerem o que eu passei. Eu e outras irmãs passamos por isso. Hoje, quero viver até a hora que Deus achar que está bom. Embora eu tenha alguns problemas, a minha mente não foi afetada. Ao contrário, a minha mente é lúcida, tranquila. Tudo o que eu fiz, tudo o que eu consegui, foi já depois de idosa. Eu era louca para estudar, terminar meus estudos e não conseguia. Trabalhava muito, era aquela correria toda. Até que decidi fazer um concurso. Passei na Fundação Educacional, terminei o segundo grau, fiz curso de inglês, tudo depois de idosa, com 50 anos.
Enfim, tudo o que eu consegui, hoje não preciso mais, graças a Deus. Hoje, estou só curtindo. Minha mente está boa, eu resolvo tudo sozinha. Eu vou ao banco, eu vou para todo o canto que eu tiver de ir e vou sozinha.
Destino predestinado
Nasci em Fortaleza, no Ceará. Cheguei em Brasília em 1967, depois que meu pai faleceu. Eu e minhas irmãs ficamos desgarradas, porque ele já tinha outra família, havia casado pela segunda vez e tinha um monte de filho pequeno. Eu e minhas irmãs já éramos adultas. Fiquei em Fortaleza trabalhando com bordados para uma espanhola.
Um dia, após a morte do meu pai, cheguei de roupa preta à casa da espanhola, para trabalhar, quando ela me perguntou: “o que foi que houve? Porque você está com essa roupa?” Respondi: “é porque meu pai faleceu”. Eles se conheciam. Ela, então, me sugeriu uma viagem, dizendo que eu estava muito abatida. Eu disse que queria ir para outro canto, então ela me disse que arranjaria, mas se fosse numa casa de família.
Só queria sair dali um pouco. Queria ser enviada ao Rio ou à Bahia, porque era onde ela tinha parentes. Entretanto, o destino estava predestinado. A espanhola me enviou à Brasília com um pessoal. Eu vim e, logo em seguida, arranjei meu namorado aqui. Sei que abri caminho em Brasília para a maioria do meu povo. Hoje, eu tenho uma sobrinha formada em Relações Internacionais, com mestrado na Inglaterra, e morando na Ceilândia. Ela trabalha na ONU, aqui em Brasília. Ou seja, todo mundo que veio para minha casa, saiu bem empregado.
Racismo
Eu não tinha ninguém por mim, era só eu e Deus. Eu vim pra cá confiando em Deus, porque a família do meu marido é branca. Meu marido era loiro do olho azul e os parentes dele não gostavam de mim, por causa da minha cor. A família dele não me tolerava. Eu não sabia que o nome para isso era racismo.
Meu marido era simples demais, muito tranquilo, o mundo podia pegar fogo, e ele era o último que saía da casa, ele não tinha pressa para nada. Eu sempre fui mais agoniada, queria resolver as coisas rápido. Tanto que, uma vez, eu disse a mim mesma: eu vou fazer o concurso, nem que seja para limpar chão, eu quero.
Pra dizer a verdade, nada na vida me marcou tanto, porque eu tinha cuidado. A vida me obrigava a ter cuidado comigo mesma, porém, nunca tive medo. Nunca deixei de ir ao mercado, à farmácia ou à igreja. Alguma coisa me dizia que eu não ia pegar a Covid. Talvez, um ser tenha me dado essa luz que eu não ia ter Covid, porque eu rezava muito por mim e por eles. A minha filha, que é o meu braço direito, também não pegou Covid. Eu sempre dizia: “meu Deus, cuida da minha filha, cuida do meu filho, pois eles precisam trabalhar”.
Fotografia preto e branca do rosto de João Pereira dos Santos acompanha relato "Comecei a estudar durante a pandemia; quero aprender a ler e escrever", para a Memória Popular da Pandemia.
Relato de João Pereira, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Passei a estudar, durante a pandemia, na Associação de Mulheres de Sobradinho II, onde fui acolhido há cinco meses. Por meio dos estudos, também ganhei novos amigos. Há 48 anos, eu moro em Brasília. Morei de aluguel, por muito tempo. Aqui, comecei a estudar e arrumei uma casinha com a Ivonete, uma pessoa muito legal. Com fé em Deus, a gente vai permanecer na escola. Hoje, ajeitei um local pequeno e estamos aqui. Estou aqui até hoje, onde tem luz. Eu não tenho do que reclamarda minha querida Ivonete.
Eu vou aprender a ler e escrever. Tudo começou quando a ‘tia’ procurava por alunos interessados em estudar. Então, eu me ofereci. Foi assim que comecei a aprender a ler e escrever. O meu amigo, o Daliano, também estuda com a gente.
Antes, eu morava de aluguel, então comecei fazendo uns bicos. Arranjei um local para abrir um barzinho para eu trabalhar, porque nunca fiquei quieto. Então, investi nesse barzinho. Hoje, tenho lugar para morar, onde posso ficar dentro de casa. E, se Deus abençoar e tudo der certo, em breve, voltarei para casa.
Enfim, penso em retornar. Mas, antes, vou continuar na escola, pois não vou parar de estudar. Sei que preciso continuar os estudos. Eu acredito que Deus vai me abençoar e eu vou ser muito feliz. A gente vai lutando e, aos poucos, tudo dá certo.
Eu nasci na Bahia, saí de lá aos 10 anos de idade. Cheguei em Minas Gerais com a minha madrinha. As pessoas achavam que éramos ciganos, porque a gente não parava em um lugar só. Algumas pessoas tinham até medo de mim, por acharem que eu era cigano! Elas diziam assim: “olha o cigano ali”. Mas, eu dizia: “não tenha medo, não sou cigano”.
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