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60 anos ou mais Bahia Ensino Médio Completo Mulher Trans Parda

Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura.

Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.

Tenho 60 anos e acredito que envelhecer é um privilégio, principalmente para a mulher trans.

O nome que escolhi é um fragmento do meu nome de registro — bíblico — um apelido pelo qual já me chamavam. Venho de uma família de 12 irmãos, cristãos adventistas do sétimo dia. Nasci em Mundo Novo e fui criada em João Dourado, uma vila.

Descobri muito cedo que era diversa, não porque eu pensava ser, mas porque minha mãe dizia que eu era diferente, meus irmãos e irmãs diziam que eu era diferente, a igreja dizia que eu era diferente.

Eu não sabia o que era “ser diferente”

Eu só sabia que não gostava das mesmas coisas que eles, por isso resolvi silenciar, por não suportar ser apontada como culpada por tudo, justamente pelas minhas diferenças. .

Aos 14 anos, cursando o segundo grau, eu cantava e era ensinada a tocar instrumento pela esposa do pastor, que me adorava. Todo mundo dizia ao meu pai que eu era uma criança maravilhosa, mas ele não conseguia aceitar a minha natureza tão distinta dos meus outros irmãos.

Eu não gostava de jogar bola, ir para a roça e tomar banho no açude.

Me identificava muito mais com as minhas irmãs. Eu ficava muito revoltada, questionando o porquê de me chamarem “veado”, “salta moita”, — visto que eu nem sequer tinha experiências sexuais ou manifestava desejos.

Sonhava e imaginava que minha vida seria transformada de uma hora para outra, mas não sabia como.

Tinha muito apreço pela igreja. Ainda aos 14 anos, perdi o meu pai. Foi quando minha mãe entendeu que seria melhor para eu morar com as minhas irmãs em Salvador, onde elas já estudavam.

A passagem por Salvador e Rio

Passava um tempo com cada uma delas. Elas não eram perversas comigo, mas havia, sim, uma repressão, que hoje eu consigo entender com mais facilidade. Aos 16 anos, fui ajudante de cabeleireira e, aos 19, concluí o segundo grau.

 Estudando à noite, eu via mais meninos gays, com liberdade de serem quem eram. Fiz amizades e, nessa fase, eu me entendi enquanto homem gay, porque eram as referências mais fortes que se tinha. Ainda não sabia o que era “trans”.

Sabia que gostava de homens e que não me identificava com as vivências mais comuns. Tive meu primeiro relacionamento gay ótimo. Mas melhor ainda foi ter descoberto os palcos.

Me tornei transformista, comecei a fazer shows na noite e ter muito sucesso em Salvador. Fui eleita Miss Beleza Gay, Miss Universo, e aos 22 fui para o Rio de Janeiro, me apresentando.

Eu representava o Nordeste, interpretando Sarah Jane com o sucesso “A Roda”. Numa noite, no Teatro Brigitte Blair, conheci Claudia Celeste — a primeira travesti a atuar como atriz em novelas brasileiras — que se tornou a minha referência.

Quando a vi, entendi ser aquela forma feminina que eu queria assumir. Encontrei-a no camarim, conversamos, ela me convidou para a sua casa e me ensinou todos os próximos passos. Entendi que não seria fácil incorporar o universo trans, mas estava decidida. Liguei para Salvador, para me desligar do salão onde trabalhava como ajudante, e no dia seguinte, já comecei a tomar os hormônios. Fiquei três anos no Rio sem ver a minha família. Já estava transformada, gloriosa. Os homens já paravam os carros — e é importante falar, nesse ponto, que não são as mulheres trans que buscam pela prostituição, mas a prostituição que nos chama.

“Somos empurradas para essa vida.”

Imagine: eu trabalhava no salão ganhando 250 reais por semana, o valor de um programa ou até mais.

Nós, transexuais, somos essência.

Nós apenas pomos para fora o que existe dentro. Por isso, arriscamos pôr silicone e fazer cirurgias — nós nos expomos à morte numa mesa de cirurgia para conseguirmos expressar a nossa feminilidade.

Passados os três anos, voltei para Salvador para visitar as minhas irmãs. Imaginei que, por estarem na universidade, entenderiam meu processo de mudança. Ao adentrar a casa, me encontrei logo com dois dos meus irmãos. Foi um momento violentíssimo. Para eles, foi como se eu tivesse virado um monstro.

Toda a minha infância veio à tona. Aquilo me deixou destruída, decaí muito. Dali, busquei apoio com amigas, pois acreditava que não conseguiria bancar a transição para a minha família. Apesar da dor e sofrimento, eu não conseguia sentir ódio.

Não voltei mais para o Rio e quase cheguei a desistir por conta do desânimo em que eu me encontrava.

Mas eu já estava tão bonitinha — porque nós ficamos bonitinhas no início; linda, nós ficamos depois que entende a vida e nossa alma.

 Retomei os shows em Salvador e tive sucesso. Representava Gretchen, justamente porque os taxistas mexiam comigo e me chamavam assim por causa do excesso de silicone e harmonização. Aproveitei para ganhar dinheiro fazendo programas com esses mesmos homens. Um tempo depois, uma amiga me disse que deveria ser “puta” na Europa.

Apesar de estar em um relacionamento em que eu amava muito o meu companheiro, decidi abrir mão e me aventurar – principalmente porque eu vivia insatisfeita com o sexo.

A genitália me causava um incômodo que eu ainda não sabia como chamar — hoje, sei: disforia.

A estadia na Itália e o câncer

No fim desse percurso, descobri um câncer no intestino. Veio o pânico. Com toda a vivência cristã que tive desde a minha criação, pensava que todos estavam certos — que era um “castigo de Deus devido ao pecado”.

Foi muito difícil, porque eu sempre acreditei em Deus. Nunca mudei de religião. Eu me considero adventista do sétimo dia, porque essa fé me bastou.

E, apesar de renunciarem a nós, a família é a nossa base. Conversei muito com Deus. Iniciei o tratamento, usei bolsa de colostomia por quase três anos e consegui vencer o câncer. Gastara metade das economias que havia feito — inclusive, para a cirurgia de resignação.

Nessa etapa, minha irmã disse ter entendido o que eu queria e vendeu o próprio apartamento – passando a morar junto comigo – para que eu pudesse ir para a Tailândia realizar o meu sonho.

Eu ressurgi das cinzas. No meu retorno aos palcos, ainda fragilizada, bem mais magra, ouvi alguém da plateia fazer um comentário infeliz que — após me posicionar — me fez abandonar os palcos. Aquilo me magoou ainda mais porque o ambiente era uma casa gay, e eu esperava — e desejava — ser acolhida e respeitada naquele lugar.

Mais uma vez, encontrei apoio e suporte nas amigas. Sentia haver perdido um pouco da estrutura para enfrentar a vida. E um câncer também nos fragiliza.

Mas a cirurgia foi a gota d’água de felicidade para mim. Eu me sentia em paz comigo, até mesmo sexualmente. Encontrei uma pessoa, aproveitei a nossa relação e logo em seguida descobri outro câncer, agora na tireoide.

Dessa vez, foi menos intenso. Até porque, por algum motivo, o médico disse que as minhas cordas vocais estavam limpas e que já não era mais um câncer. Retirei a tireoide e segui trabalhando como cabeleireira.

O início da pandemia

Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia de Covid-19, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.

Muitas pessoas indicavam o meu trabalho como profissional de beleza: “Dicca, vem fazer uma escova”, “Dicca, vem me maquiar”, e, claro, eu ia e fazia preços mais baratos.

Durante a pandemia eu perdi duas irmãs, mas não por Covid-19.

Uma, logo no início, que estava lutando contra um câncer, e outra por um infarto fulminante. Com a perda de minhas irmãs, perdi também o equilíbrio. Porque a família é a base da gente – isso é uma verdade.

Por mais que eles tenham nos renunciados, nós nutrimos amor, de alguma forma, por essas pessoas. Por isso dói tanto. A irmã que ficou comigo, dependia muito de mim. Eu fiquei muito para baixo.

A vulnerabilidade causada pela pandemia

Foi quando fui salva por minhas amizades outra vez. Fomos nos apoiando e encontrando formas de ajudar umas as outras. E eu não tenho vergonha de pedir. Chegou um momento em que eu não tinha dinheiro nenhum.

Estava morando em um apartamento próprio, mas precisava pagar condomínio, contas de luz; precisava do básico: tomar banho, escovar os dentes, tomar os remédios para o estômago, tireoide e pressão.

Cabeleireira, com 60 anos, nunca tive carteira assinada e não recebo nenhuma assistência de serviço social.

Sempre fui militante, porque toda trans é militante. Quando ela dá a cara para a sociedade, ela está militando. Eu só não cheguei ao extremo de uma tristeza profunda — para não dizer “depressão”, pois não gosto dessa palavra — devido às pessoas que conheciam a minha história e me acolheram.

Buscamos por esperança e pelo fim da pandemia

O fim da pandemia não é tão esperançoso. Os contextos e dificuldades só se agravaram. Tenho muitas limitações. Apesar de tudo, eu sou uma pessoa feliz. Meu sonho é conseguir uma aposentadoria ou auxílio que me possibilite descansar, sabendo que terei, pelo menos, o básico para me manter.

Eu não tenho mais condição de ir para as ruas. Não condições físicas, pois, mesmo com a minha idade, ainda tenho um corpo bonito e poderia colocar um vestidinho preto para me prostituir. Isso ainda acontece vez ou outra. Mas não tenho mais estrutura para isso.

Nós realmente precisamos aprender a amar e valorizar os amigos.

Mais do que com palavras. Com atitudes reais. Estender a mão antes de alguém “cair no buraco”.

Na pandemia, eu aprendi a falar a palavra “amor”, mas, muito mais, viver ela. Amar é um sentimento nobre.

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Queremos o expurgo da Covid-19

No primeiro ano da pandemia de Covid-19, eu passei algumas problemáticas relacionadas à moradia, já que eu residia no espaço cultural Das Liliths .

Eu sou Xan Marçall, uma kaaboka amazônida de Belém do Pará. Resido em Salvador há 15 anos. Sou travesti, filha de uma mulher branca carioca e de um pai preto e kaaboko da Amazônia.

Tenho 35 anos e vivo com HIV há 6 anos. Atuo como professora de Arte e Teatro na educação básica, trabalhando com crianças e adolescentes com métodos de criação colaborativa.

Faço parte de um coletivo de teatro em Salvador chamado Das Liliths, e juntes, realizamos um trabalho pioneiro nas artes, por meio da busca de histórias LGBTQIA+ ancestrais no processo de construção identitária do Brasil.

Ir para Salvador foi uma forma de tentar uma vida menos difícil do que a que vivia em Belém, sobretudo, porque a realidade amazônica, sendo eu, também, filha da periferia, me colocava frente a muitas adversidades.

O primeiro ano de Covid-19

Com o fechamento dos comércios e a não realização de atividades artísticas e culturais presenciais, não tivemos como gerar renda e fomos obrigadas a entregar o espaço. Assim, me deparei com alguns dilemas.

 Estive, inclusive, adoentada nesse período.

Encontramos uma nova moradia.

Nesta residência eu tive 19 dias de tranquilidade, até receber um aviso de evacuação emergencial do imóvel. A residência estava situada em uma região de alto risco de desabamento.

Fui para casa de um amigo que me hospedou durante 1 mês. Depois disso, audaciosamente, eu retornei para a casa que estava sob risco de desabamento e, passei a viver lá durante o ano de 2020 — acreditando que ela não ia desabar.

Não desabou!

Recebi cestas básicas, algo que me tranquilizou e me permitiu dar atenção a outros setores da minha vida. No entanto, o atendimento básico de saúde voltado à minha vivência positiva foi totalmente negligenciado.

HIV e negligência em meio à Covid-19

Minhas consultas essenciais foram interrompidas, como infectologista, clínico geral, dentista e exames ambulatoriais. Além disso, me prescreveram uma receita para eu poder pegar medicamentos e enfiar ‘goela baixo’, sem nenhum acompanhamento médico.

No fim de 2020, eu voltei para Belém para realizar um trabalho — a previsão era ficar apenas 15 dias e já vai completar 1 ano que estou no Pará.

Neste meio tempo, muitas coisas aconteceram, e o ano de 2021 foi envolto em problemas familiares e abandono de tratamento por falta de orientação. Tudo por conta de burocracias e falta de informação básica no sistema de saúde — que não é compartilhada.

Nesse turbilhão todo, pensei que ia surtar, embora, estivesse um pouco mais segura financeiramente, por estar na casa da minha família. Entretanto, os outros problemas ainda me alcançavam e afetavam.

Por fim, consegui resolver a minha situação e retomar meu tratamento — que teve intervalos de não adesão — e, então, fui compreendendo que não aderir ao tratamento é algo muito sério, mas que também não pode ser resumido a questões rasas, pois envolvem muitas camadas.

“Existem, sim, casos de pessoas que abandonam o tratamento porque não querem, e outras, que não conseguem aderir por falta de dinheiro, saúde mental, tempo de deslocamento, negligência no acompanhamento, informações obscuras e má qualidade de alimentação.”

HIV, Covid e outras questões…

O ano se encerra, e eu estou tomando as rédeas da minha cabeça, pensando que, nessa pandemia de Covid-19, além do expurgo desse vírus, queremos e reivindicamos também a cura da AIDS, que já tem 40 anos — e segue em curso.

Sigo, remediada, com uma quantidade química tóxica em meu organismo. Lutando, resistindo e esperançando por dias melhores.

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Perdi muita gente durante a pandemia

Perdi muita gente durante a pandemia. Tiveram duas pessoas que me fazem muita falta. Uma delas foi uma grande companheira de caminhada, que lutava comigo há muitos anos.

Chamo-me Rosária, nasci no Uruguai, mas moro no Brasil há 34 anos.

 Sou uma das filhas de um casal que gerou 11 mulheres. Casei-me, tive 3 filhas e saí do meu país devido à violência doméstica em meu matrimônio.

Meu marido era um homem muito forte, da Marinha, e muito violento, de modo que ninguém conseguia contê-lo ou mudar a situação. O pior momento, que me fez decidir vir de vez para o Brasil, foi quando fugi para a casa dos meus pais e, ao saber que meu marido estava a caminho da casa deles para me buscar, fugi com as minhas filhas — que eu levava sempre para todo lugar.

A fuga para o Brasil

Ao chegar na casa dos meus pais e não me encontrar, ele bateu nos meus pais. Depois, ele foi até a casa desses amigos, que tinha apenas uma porta, pela qual eu não poderia fugir. Saímos pelas janelas, usando cordões de sandálias que amarramos para descermos.

Depois desse acontecimento, prometi a mim mesma que jamais permitiria que algo como aquilo, acontecesse de novo.

Conheci alguém que gostava muito de mim, com quem entrei em contato, e que me apoiou, me trazendo para o Rio Grande do Sul, no Brasil.

Após 21 anos, voltei ao Uruguai e, mais tarde, retornando ao Brasil, descobri que esse outro companheiro também era violento.

Foi na Bahia que eu realmente soube quem era ele — que sempre ia e voltava para o Uruguai. Ele não trabalhava, eu não trabalhava, mas na minha casa sempre tinha tudo do bom e do melhor.

Ele me dizia ter uma transportadora de frutas, e eu acreditava. Quando ele ficou internado, no Rio Grande do Sul, fui ao encontro dele e descobri que ele era um assaltante de bancos muito perigoso — tanto no Brasil, quanto no Uruguai. Ele foi preso, e eu, que fiquei com muito dinheiro, sempre o visitava.

Uma mulher corajosa

Mas chegou um momento que o dinheiro acabou, as viagens de visitação cessaram, e ele disse não querer mais  saber de mim. Então, me vi liberta. Eu e minha filhas fomos vivendo e construindo nossas vidas.

Ao saber que alguém estava me procurando e oferecendo 50 reais — muito dinheiro na época — para quem me encontrasse, fui para Sergipe, onde passei 3 anos e voltei. Apaixonei-me por um baiano, com quem tive uma filha. Vivemos juntos por 12 anos.

Ele enfrentava o racismo de forma muito séria. Ajudei ele, que era usuário de drogas, mas, mesmo assim, ele ficou muito doente.

Teve diarreia, manchas pelo corpo, e diagnosticado com AIDS. Fiquei firme com ele, por 3 meses. No hospital, assistia palestras e recebia informações sobre HIV/AIDS, mas os grupos de risco que eles apresentavam — usuários de drogas, prostitutas, homossexuais — não se enquadravam no meu perfil. Por isso, fiquei tranquila. Mas, após uma médica conversar comigo, me dei conta de que eu poderia, sim, ter sido infectada, e, ainda, ter transmitido às minhas filhas e netas, pelo leite materno.

Elas não foram infectadas, mas eu recebi o resultado positivo para HIV. Meu mundo caiu, eu pensava que morreria a qualquer momento. Fui para o enterro do meu companheiro e não pude mais entrar em casa. Foi aí que encontrei o Gapa. Eu pensava “nunca mais ninguém vai me abraçar, me beijar ou chegar perto de mim”. Mas fui abraçada pelo Gapa, e minha vida mudou.

A rotina antes da pandemia

Passei a estudar, me informar, capacitar e a me engajar no ativismo.

O Gapa se tornou essencial na minha vida, em todas as áreas: emocionais, profissionais, relacionais.

Tenho problemas cardíacos, como “pré-infartos”, e minha filha passou a ser a minha companheira, cuidar de mim.

Antes da pandemia, eu trabalhava no Balcão de Justiça como mediadora de conflitos. Fazia, também, faxinas. Além disso, congelava alimentos para os clientes, na casa dela. Trabalhava quatro vezes por semana, ganhando 100 reais por visita.

Eu tinha um bom salário. E, nessa altura, chega à pandemia.

A pandemia desnudou os abismos sociais

Eu, como representante estadual da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP), me pus à disposição, com outras pessoas do ativismo, para articular estratégias para que a pandemia não afetasse o PVH, — principalmente com a retirada de medicamentos.

Queríamos, por exemplo, que todas as pessoas que tivessem a carga viral indetectável e o CD4 estável, recebessem medicação suficiente para 3 meses, para evitar que saíssem de casa.

É muito difícil falar apenas sobre mim, pois, a minha experiência é pensada sempre de forma coletiva, seja pela minha família ou pelo ativismo. Eu me doo.

Recebi muitas ligações e isso me incomodou porque, diante das limitações, eu não conseguia atender como atendia antes. Eu constatava o desespero das pessoas, a vontade de suicídio das pessoas, a falta de alimento e suporte.

A partir disso, eu me retirei de todos os grupos de movimentos que participava, e fiquei apenas me dedicando ao Gapa e a Rede de Comunidade Saudável.

Tivemos muitos problemas, mas, mesmo assim, ajudamos as pessoas a fazerem o recadastramento do SUS e a inscrição para o Auxílio Emergencial.

Nunca tive medo de morrer. Saí de uma reunião, entrei em casa, e passei um ano e meio sem sair — ninguém entrava lá também. Minha filha era quem fazia minhas compras e pegava a minha medicação.

O pavor da pandemia

Eu me preocupava muito com uma outra filha que mora comigo, pois ela tem escoliose, de modo que o osso da coluna pressiona o pulmão e, com esse problema respiratório, ela fazia parte do grupo de risco.

Assim como eu, devido ao problema cardíaco. Contudo, eu nem lembrava de mim, só pensava nela. Tudo que chegava em casa era deixado na porta, eu recolhia tomando todos os cuidados, usando muito álcool e depois lavava.

Após ter tomado às duas doses da vacina, fui diagnosticada com Covid-19. Busquei acompanhamento médico, fiquei internada no Couto Maia e, enquanto eu estava lá, soube que a minha filha também havia testado positivo para o coronavírus.

Não faço ideia de como isso pode ter acontecido, diante de tantos cuidados tomados.

A minha felicidade é estar viva, e ver muitas das pessoas que conseguimos ajudar, vivas também.

Aprendi a ter fé e a acreditar mais em mim, porque, antes desse momento difícil, eu não acreditava muito em mim.

 Mas, hoje, eu acredito, e sei que tenho forças para fazer muita coisa.

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Eu não pude parar durante a pandemia

Durante a pandemia, fiquei sem ir ao interior — e sem visitar a minha mãe — por 2 anos. Nos comunicávamos por telefone. Quando tudo fechou, eu fiquei um pouco assustada.

Nasci no interior da Bahia, em Cícero Dantas. Após a separação dos meus pais, quando ainda tinha 3 meses, fui com minha mãe morar em Ribeira do Pombal.

Tive pouco contato com meu pai. Minha mãe, doméstica, sempre me aceitou, e eu, desde muito nova, sempre demonstrei a minha essência.

Minha mãe tem uma mente muito aberta, e nunca me discriminou.

Uma vida bem distante da pandemia

No interior, onde morávamos, existiam outras mulheres trans. Aos 15 anos, comecei a tomar hormônio.

Aliás, também vivi a prostituição normalmente, – fazia programas em postos de gasolina, com caminhoneiros e nas festas que aconteciam na cidade – inclusive, em cidades vizinhas.

Estudei até a 8ª série do ensino fundamental. Era uma vivência que eu avalio como tranquila, com poucas importunações, apenas com algumas piadas e coisas do gênero.

Na maioria das vezes, eu não me importava tanto com as situações, – a não ser que eu me sentisse agredida. Acredito que eu tinha essa postura por ser muito acolhida em casa, com a minha mãe, que nunca me discriminou e sempre me defendeu.

Isso mostra a importância do apoio familiar para pessoas como eu. Com 18 anos, uma amiga, também trans, me chamou para conversar, e disse ter um apartamento em Salvador, que eu poderia — e deveria — tentar passar um tempo aqui para tentar mais oportunidades.

Vivendo em Salvador

Aceitei a proposta. Me mudei para Salvador, e gostei da cidade. Hoje, com 28 anos, ainda moro na capital baiana. No início, dividia essa casa com outra menina trans.

Mas, depois de um tempo, senti necessidade de morar só, ter o meu canto. Senti precisar de mais privacidade para atender os meus clientes, como garota de programa, e, ter a minha liberdade.

A pandemia

Uma amiga do interior me ligou, desesperada, dizendo que eu deveria voltar para o interior por conta da pandemia. Neste momento, consegui manter a calma e respirar fundo.

Primeiro, porque eu tinha as minhas economias — eu sempre guardava uma parte de todo dinheiro que eu fazia atendendo, tanto nas ruas, quanto em sites.

Também, porque recebi ajuda, apoio, cesta básica. Não pude parar os atendimentos em meio a pandemia. Era inviável fazer isso nas ruas, mas sempre que um cliente entrava em contato, eu o encontrava.

Mesmo com as minhas economias, uma hora, eu iria precisar do dinheiro, ora para pagar o aluguel, ora para as minhas despesas básicas.

Alguns dos clientes se preocupavam com protocolos de segurança e tinham mais medo, mas, outros não. Apenas diziam precisarem espairecer a cabeça, dar uma volta na cidade — como se eu fosse a distração para toda aquela pressão da quarentena, de estar convivendo tanto com a família.

Eu não podia dizer não

Além dos programas, eu performava em casas de show. Contudo, com as casas fechadas, não tínhamos como atuar. Só à medida que começaram as flexibilizações das normas, é que nós pudemos, pelo menos, fazer os shows através de lives.

Contudo, não era a mesma coisa, na verdade, aparentou ser bem estranho não ter os aplausos, o calor humano, a “churria”.

Todo esse processo me fez ficar muito ansiosa e, com isso, comecei a comer mais, e engordei. Fique frustrada, pois, trabalho com o meu corpo.

Sentia muita vontade de que as coisas voltassem ao normal, que eu pudesse ir à praia e tomar uma cerveja.

Quero muito realizar o sonho de ter uma casa própria. Não quero voltar para o interior. Espero poder tirar logo essa máscara — que eu não suporto. E que, nós saiamos desse momento, colocando em prática tudo o que dizemos ter aprendido sobre amar o próximo

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Encontrei amparo em Deus

Eu converso muito com Deus. Apesar de todas as tristezas que tive, e todas as dores que passei, acredito que Deus é a essência da vida. Independentemente de ser mulher trans, Ele é uma fortaleza, que me concedeu a cura.

Meu nome é Lorrany, tenho 40 anos, e minha história de vida é bem atribulada. Pai e irmão policiais civis — e o desejo, era que eu também me tornasse policial.

Uma crianção dolorosa

Tive uma criação extremamente rígida e machista. Já percebiam que eu era diferente.

Além disso, as diversas religiões cristãs que estavam no meu contexto — da Assembleia de Deus até Adventista do Sétimo Dia e Testemunha de Jeová — também eram usadas na tentativa de exercer controle sobre a minha forma de existir.

Meus irmãos jogavam futebol – um deles, em quem eu achava que deveria me inspirar, chegou a ser profissional – e sempre ouviam “piadinhas” dos amigos relacionadas a mim.

Por isso, me agrediam em casa. Recebia murros e pontapés. Minha família não aceitava as minhas diferenças e o meu jeito de ser. Eu via meu pai brigar com minha mãe por minha causa, a ponto de dizer-lhe — “escolha: ou o seu filho, ou eu”.

A fuga

 Aos 16 anos, fugi de casa. Fui morar em uma palafita na periferia com um, já falecido — assassinado —, colega gay.

Após o ocorrido, liguei para minha a mãe, desesperada. Ela me disse para procurar uma casa, que ela se responsabilizaria pelo pagamento do aluguel.

Ela me apoiou em todos os momentos e, até me ajudou a mobiliar a casa e me sustentar.

Com 24 anos, já tendo o corpo que eu sempre quis ter, e terminado precocemente o segundo grau, decidi voltar aos estudos.

Em meio a tudo isso, eu ainda estava vivendo um outro drama: o de ter problemas devido ao silicone em que havia colocado em meu corpo. Cheguei a ficar 4 anos em uma cadeira de rodas, e mais 3 anos usando muleta.

Minha mãe me deu todo o suporte. Neste percurso, me envolvi com outros homens, até conhecer um rapaz de São Paulo. Ele me disse precisar ir embora da cidade, com isso, eu abri as portas da minha casa para ele.

Deus sempre oferece o melhor caminho

Ele era sócio de uma rede de lojas. Usou o meu nome para seus próprios negócios e, acabei contraindo as dívidas que ele tinha, que eram muitas — a ponto de cerca de cinco rapazes chegarem a perseguir e, quase matar ele, que fugiu de volta para São Paulo e deixou tudo comigo.

Comecei a trabalhar com essa loja, pagar as dívidas e investir. Comprei outras duas casas, construí uma nova vida, comecei a faculdade — de enfermagem — e fiz a minha vida mudar.

Por causa do meu curso na faculdade, passei a estagiar em hospitais. Durante a pandemia, eu estive atuando na linha de frente do combate à Covid-19. A minha vida sempre foi urgente.

Meu contexto sempre foi de perigo. A morte sempre esteve perto, à espreita.

Enquanto, para muitas pessoas, o vírus apresentou uma realidade distópica, para mim, ele era só mais um risco. Um entre os tantos que eu corri, corro e supero.

Não tive medo. Fui “jogada” dentro de um hospital de campanha com pacientes infectados pelo coronavírus e, em vez de ter medo, eu entendi ser uma oportunidade para que eu, mulher trans, tão excluída e preterida no mercado de trabalho, pudesse ter alguma experiência e aprendizado.

Isso revela as desigualdades que são um abismo entre nós. Algo que para uns é novo e assustador, para outros, é o triste cotidiano.

Os planos de Deus

Era a minha primeira experiência de trabalho. Eu vi pessoas morrendo na minha frente, muitas pessoas, e aquilo me impactou, — mas não a ponto de me amedrontar e paralisar. Eu não me abstive de sair, e seguir a vida.

Sempre senti precisar viver tudo o que quisesse, logo. Principalmente diante dos riscos.

A minha saúde mental dependia disso. Vi colegas sucumbirem também por demandas mentais — e eu, prezei pelo que necessitava. Não consegui fazer quarentena. Fui diagnosticada com Covid-19, tive febre alta, perdi o paladar, mas nem nesse momento, eu senti medo.

Mantive distância das pessoas e as avisei do meu diagnóstico. Só temi por minha mãe. Ela é uma amiga para mim.

Nós brincávamos, dançávamos e conversávamos. Dei todo suporte a ela, tanto que, devido aos meus estímulos — colocando-lhe medo, por exemplo, ela parou de fumar.

Foi possível me manter durante esses tempos, morando só, porque recebi bolsas dos estágios voluntários, além de ter recebido cestas básicas. Meu pai morreu durante a pandemia. Ele contraiu coronavírus, mas foi um câncer de garganta que o levou. Ele nem sequer falava comigo, mas pediu para eu ver o seu exame.

Naquele momento eu disse-lhe: “se eu te fiz algum mal, e fui uma pessoa ruim, me perdoe”.

Ele disse estar muito orgulhoso de mim.

O que mais quero, é viver.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Médio Completo Homem Cis Parda

Descobri o meu diagnóstico de HIV aos 48 anos

Descobri o meu diagnóstico positivo para HIV em 2 de fevereiro de 2007, aos 48 anos. Tanto eu, quanto a minha esposa, nunca soubemos como pegamos.

Meu nome é Robson, tenho 52 anos, e fui criado em Salvador. Fugi de casa aos 7 anos, pois passava por diversos conflitos. Sou fruto de uma relação da minha mãe com um homem casado, por isso, ela foi mãe solteira.

Com o passar dos anos, ela conheceu — e passou a morar — com um cidadão que se tornou o meu padrasto, o mais próximo que tive de um pai.

Naquele tempo, a ideia era de que “um bom psicólogo é uma boa surra”. Fui criado numa família com base evangélica, que apontava tudo como pecado. Eu apanhava bastante.

Fugindo de casa

A partir disso, comecei a ensaiar fugas: fugia para a esquina, depois, de Candeias para Salvador, de Salvador para Itabuna e, com 11 anos, eu estava em São Paulo, sozinho.

Fugia porque apanhava. Depois, comecei a fugir porque não conseguia mais trabalhar. E foi assim que eu aprendi a viver. Por isso, sempre disse para mim mesmo que, quando eu pensasse em colocar filhos no mundo, eles jamais seriam criados por padrastos, mas por mim. Para que eles não passassem pelo que passei.

Conheci minha esposa na Praça José Ferreira, em Fortaleza. Eu, com 22 anos, e ela, com 17. Ela também vivia em situação de rua, e estava toda suja de cola de sapateiro — tinha uma história de vida muito parecida com a minha.

Pelos caminhos da vida

Tivemos 3 filhos. Tenho uma filha lésbica e, acho importante dizer isso porque, apesar da criação evangélica, e de ser evangélico, eu não concordo com o que dizem sobre pessoas como a minha filha — que são lésbicas ou que são ‘diversas’.

Eu entendo que eu devo dar a ela o mesmo que Deus dá: amor e respeito. É nisso que eu acredito.

Aprendi a pensar assim depois que um amigo meu me mostrou o quanto eu era ignorante, quando pensava que minha filha tinha que corresponder às minhas expectativas. Ele dizia:

“Veja tudo o que você esperava que sua filha fosse; uma mulher inteligente, bem-educada, com caráter, estudiosa, trabalhadora. Ela é tudo isso! Você também quer escolher com quem ela deve amar e namorar? Isso não lhe cabe! Você está perdendo a sua filha”.

Aquilo me fez mudar…

Descobrindo o HIV

Descobri o meu diagnóstico positivo para HIV em 2 de fevereiro de 2007, aos 48 anos. Tanto eu, quanto a minha esposa, nunca soubemos como adquirimos, ou de quem adquirimos.

Quando ainda planejávamos os filhos — que são HIV negativo — eu disse-lhe que, caso nos separássemos, eles ficariam comigo. E quando a separação aconteceu, meus próprios filhos escolheram ficar comigo.

Não conhecia e nem sabia o que era ter HIV. Nesta época, pensei que teria apenas mais 2 ou 3 meses de vida. Cheguei a pensar em suicídio.

Vivendo com HIV

Um dia, em Belo Horizonte, na Praça Afonso Pena, um lugar que passa ônibus a todo minuto, eu cogitei me lançar na frente de um daqueles transportes coletivos, mas, por incrível que pareça, em quase uma hora esperando, não passou um ônibus sequer.

 A partir daquele momento, passei a tomar um litro de conhaque por dia. Depois, já de volta a minha cidade, meu filho me chamou e disse:

“O HIV não vai lhe matar, mas o senhor está se matando”.

Então, ele me deu o endereço de um Serviço de Atendimento à Pessoas Vivendo com HIV — as nomenclaturas na época eram outras. Lá, conheci uma mulher que me disse viver com o vírus há 25 anos — foi quando eu entendi que iria sobreviver, que havia, ainda, muita vida por vir.

Tive a melhor faculdade que qualquer ser humano poderia ter: o mundo; e o melhor professor: o sofrimento.

Aprendi a me virar de diversas formas, exceto cometer crimes. Sempre trabalhei. Cheguei a levar compras de pessoas do mercado até em casa, lavar carros, vender picolé, e jornal.

 Foi com os jornais que aprendi a ler. Tinha muita curiosidade de entender o que eu estava vendendo. E lendo jornais, vendo as notícias, — entendi a importância de estar informado, para ir à luta.

O lugar de fala de uma pessoa com HIV

Entendo meu lugar como uma pessoa que vive com HIV, mas também como negro, e, ainda, entendo as relações entre o racismo e o classicismo, que oprimem de forma conjunta.

O preto sofre discriminação por ser preto, mas também, de forma agravada por ser pobre. Sei bem o que é isso. Mas venci. Meu filho se formou jornalista, e eu, até na área de caldeiraria trabalhei; e, trabalhando nesse setor, tive a oportunidade de viajar e conhecer 26 capitais do Brasil e 6 países.

Cheguei a ir para a África. Fiquei em São Paulo, passei por Curitiba. Contudo, meu projeto era encontrar o meu filho em Salvador, pois tínhamos planos de abrir um hostel em Fortaleza — em Canoa Quebrada.

A chegada da pandemia

Estava tudo programado para isso. Quando ouvimos sobre as notícias do coronavírus, ainda fora do país. Pensávamos que a pandemia seria apenas mais uma daquelas viroses que sempre nos acometem logo após a época de carnaval. Pensávamos que duraria uma semana.

Mas a pandemia destruiu todos os meus projetos, visto que acabou com o turismo. Retornei para São Paulo, para a casa do meu irmão, na tentativa de redirecionar a vida, mas quando cheguei lá, tive de ficar preso e com medo, transtornado, como todo o mundo.

Com a vida parada, precisei pensar em formas de me manter durante todo aquele momento que se iniciava. Com isso, comecei a trabalhar como motorista de aplicativo. Usava um carro que não era meu e, infelizmente, tive que devolvê-lo quando parei de trabalhar.

E isso não aconteceu apenas comigo, mas com muitos que trabalhavam como motorista de aplicativo, porque já não era mais viável, dado que, com o lockdown, as pessoas não utilizavam mais o serviço.

De volta à Salvador

Voltei à Salvador para tentar atuar como motorista, mas, encontrei uma grande dificuldade. Não perdi ninguém próximo durante a pandemia.

Acredito que não me infectei, ou que fui assintomático. Não segui a quarentena porque não tinha saída: eu precisava trabalhar diariamente.

O máximo que podia era me afastar um pouco mais das pessoas. Não tive dificuldades para conseguir os medicamentos antirretrovirais, mas foi bem difícil ter acesso aos médicos infectologistas. Foi muito difícil fazer os exames e marcar as consultas.

Não tive medo de morrer porque fui treinado pela vida. Eu dormia debaixo da ponte, entrava em baldes de lixo para conseguir ter o que comer.

Vivo com HIV em um país com um governo que não me assiste. O que mais poderia temer?

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25 a 39 anos Distrito Federal Mulher Cis Parda Prefiro não informar

“Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada”

Eu me chamo Jackeline, mas também sou conhecida como Fernanda. Tenho 33 anos, sou gaúcha, mãe solo de quatro filhos, trabalhadora sexual e resido na periferia do Distrito Federal, em Ceilândia. 

Quando a pandemia começou, eu morava em Anápolis/GO, onde tenho casa própria e trabalhava com carteira assinada em um restaurante. Por ter sido uma das últimas funcionárias a ser admitida, com a chegada da pandemia eu fui dispensada do serviço, pois o restaurante fechou as portas e passou a funcionar na modalidade de delivery.

Menos vendas, mais contas

Retornei para Brasília, onde eu já tinha morado em outro momento, para trabalhar com vendas nas ruas como ambulante com meu companheiro. O lucro não era tão ruim, dava para sobreviver. 

Em Brasília, vivia com minha família em uma casa de aluguel. Escolhi sair de Anápolis porque lá possui um órgão do governo que retira os vendedores das ruas da cidade e, por isso, quase não dá para viver dessa atividade no município. Em Brasília existe a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (AGEFIS), órgão similar ao que tem em Anápolis, porém os vendedores ambulantes se ajudam e evitam o recolhimento das mercadorias. “Todos correm juntos!” quando a AGEFIS chega.

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos.

Contas a pagar

Com o passar dos meses as coisas ficaram mais complicadas. As contas eram muitas: aluguel, água, energia, prestação do apartamento, alimentação, transporte e outras despesas. Com isso, voltei a realizar o trabalho sexual e meu companheiro, devido a baixa nas vendas nas ruas, começou a mexer com coisas ilícitas. 

Na época eu estava com dois meses de gravidez de gêmeos, porém, algumas semanas depois eu tive aborto espontâneo.Com a vinda para Brasília, meus filhos ficaram sem vaga nas escolas. Todos ficaram em casa, estressados, entediados e com os estudos prejudicados. Nesse período, eles começaram acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial Infantil e passaram a tomar remédios controlados.

Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada da casa onde morávamos. Apenas meu companheiro estava trabalhando e eu estava de resguardo por conta do abortamento.

Naquele período tão difícil, me aproximei da organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que nos ajudou, a mim e à minha família, com doação de cestas básicas, ajuda de custo quando participava de projetos, remédios, roupas e tantas outras coisas. 

Ainda assim, ainda tínhamos gastos, dívidas, frete de mudança para pagar, quatro filhos para sustentar e só recebíamos um auxílio. Com isso, meu companheiro continuou a atuar com coisas ilícitas e, um tempo depois, ele foi preso e me deixou sozinha. 

Redes de apoio

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos. Nessa época minha mãe passou a morar comigo. Ela usa marcapasso e não possui renda, mas tem me ajudado a cuidar das crianças.

As ruas estavam e continuam muito vazias, sem clientes. Quase não estou dando conta de pagar as contas. Alguns coletivos dos quais eu faço parte tem me ajudado bastante, como as Tulipas do Cerrado, Coletivo Aroeira e a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas. Com esses grupos eu tenho tido suporte, cuidados com a saúde mental e física, alimentação, ajuda jurídica com meu parceiro que ainda está privado de liberdade e me auxiliam a conquistar meus sonhos e atingir meus objetivos. 

Essas redes ajudam a reduzir os danos na vida das pessoas que estão em situações complicadas, como eu. Hoje eu consigo sobreviver, trabalhar, aprender, ensinar, etc. graças às pessoas que compõem essas redes. Posso afirmar que atualmente tenho uma família imensa no Distrito Federal, com quem posso contar a qualquer momento.

“Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito”

Pandemia: Como iremos sobreviver?

A pandemia ainda me traz medo e tristeza. Mesmo com tantas batalhas, o que mais me preocupa é viver sem ter a certeza do amanhã, sem saber se estarei aqui com meus filhos, medo de pegar Covid-19. 

Peço misericórdia a Deus! Perdi muitos amigos e clientes para o Covid-19 e não quero que isso aconteça comigo ou algum membro de minha família. Por fim, trago um apelo. O auxílio que recebo do governo e os ganhos financeiros com meu trabalho não dá para pagar com tranquilidade as despesas do mês, porque está tudo muito caro, os preços estão abusivos. 

Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito. Emprego? Ninguém nos dá oportunidade. Ai de nós se não tivermos uma Juma Santos em nossas vidas. Ela é a minha segunda mãe, que cuida, acolhe e ajuda.

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18 a 24 anos Distrito Federal Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Parda

“Na pandemia fiquei desempregada e agora sobrevivo de bicos”

Meu nome é Letícia e tenho 21 anos. Sou mulher cis, parda, lésbica e residente da Ceilândia/Distrito Federal. 

Antes do início da pandemia, trabalhava formalmente e estava me licenciando em geografia. Durante a pandemia, fiquei desempregada e, por motivos principalmente financeiros, precisei trancar a faculdade. 

Durante a pandemia,  tive que me inserir no trabalho informal, no qual fiquei trabalhando por um ano, tendo muitas dificuldades.

A pandemia e o isolamento social para mim foram processos difíceis, que dificultaram as relações, especialmente a convivência dentro de casa. 

Atualmente estou desempregada e sobrevivo de “bicos”, sem contar com o apoio financeiro de ninguém. Estou em busca de me reinserir no mercado de trabalho e na tentativa de voltar a estudar. 

Busco minha independência financeira e em breve ser professora de geografia. Espero que tudo isso acabe, que as pessoas voltem a ter suas vidas como eram antes da pandemia, liberdade e seu sustento. 

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40 a 59 anos Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis Parda

“Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade”

Eu sou Gilmara, mais conhecida como Juma, apelido que ao longo dos anos se transformou meu nome social. E é assim que prefiro ser chamada. 

Minha história não tem nada a ver com as narrativas mostradas em novelas ou em contos de literatura. Ela vem imbuída de uma realidade incrivelmente assustadora e cativante. Como qualquer criança, também tinha meus sonhos e fantasias. Mas muito cedo, mais precisamente com dez anos, tive de lidar com situações demasiadas complexas para uma criança, como por exemplo o falecimento de minha mãe, que aconteceu durante uma de suas saídas solitárias de Alexânia, local onde morava, próximo a Brasília, cidade que ainda é meu lar.

Passei por uma série de violações de direitos por parte do Estado e tudo se apresentava como um grande obstáculo à minha frente. A mim eram negados os direitos fundamentais: à moradia, à uma boa alimentação, ao lazer, à infância, à segurança, à saúde

Situação de rua

Desde muito cedo tive que aprender a cuidar de mim e, por mais nova que fosse, já entendia a importância de continuar os estudos. Desde aquela época, eu tive a rua como lar e isso durou muitos anos. Ainda em situação de rua, frequentei a escola regularmente até conseguir completar a sexta série do ensino fundamental. Eu passava o dia na instituição, com minha pequena bolsa na qual carregava cadernos, livros, diversos lápis e objetos pessoais, meu verdadeiro “estojo de identidades”.

Morar na rua não era nada fácil, mas eu me reinventava a cada dia e posso dizer que resistência é o meu sobrenome. Passei por uma série de violações de direitos por parte do Estado e tudo se apresentava como um grande obstáculo à minha frente. A mim eram negados os direitos fundamentais: à moradia, à uma boa alimentação, ao lazer, à infância, à segurança, à saúde. Na rua, entendi o motivo pelo qual o uso de drogas se faz tão presente e todas as dores que esse uso esconde.

Posso dizer que ela [minha filha] tem sete pais, pois naquela noite chuvosa sete homens forçaram o livre acesso ao meu corpo. Na época eu tinha apenas 13 anos de idade e os homens eram policiais. Pessoas que, teoricamente, deveriam me proteger, eram os meus algozes

Uma filha, reunião de tudo que era mais bonito e sincero

Neste contexto de violações, tive minha filha, que reunia tudo de mais bonito e sincero que eu tinha dentro de mim. Posso dizer que ela tem sete pais, pois naquela noite chuvosa sete homens forçaram o livre acesso ao meu corpo. Na época eu tinha apenas 13 anos de idade e os homens eram policiais. Pessoas que, teoricamente, deveriam me proteger, eram os meus algozes. 

No ímpeto de querer propiciar um melhor ambiente para o desenvolvimento de minha filha, deixei-a com uma conhecida, com a qual sabia que poderia ofertar um contexto melhor para seu crescimento. Essa foi uma entre tantas decisões difíceis que se materializaram em meu caminho. 

Conheci o trabalho sexual e com ele todo o glamour de se sentir conhecida e bem remunerada. Mas esse período também culminou em uma face mais complexa do uso de drogas. Já estava estabelecendo uma relação problemática com esse consumo e a violência estava cada vez mais presente no meu cotidiano e na rua. 

Justamente neste momento fui presa e digo que, no meu caso, esse fato serviu para despertar em mim a vontade efetiva de mudança. Não existia nada naquele local que me empoderava e eu precisava sair dali, voltar para minha filha.

Foi pensando neste período de minha história que sinto novamente a necessidade de aprofundar meus conhecimentos por meio do ensino superior e vejo neste sonho uma excelente oportunidade para minimizar as vulnerabilidades que passei

Recomeço: trabalho com redução de danos

Ao sair do sistema prisional e, com o passar dos meses, me descobri redutora de danos, profissão que levo comigo até hoje, dezesseis anos depois. A Redução de Danos pegou minha história de vida, experiência, liderança, e sobretudo, a minha vivência com as drogas e fez daquilo um instrumento de trabalho. 

A partir daí comecei a me dedicar ao trabalho com pessoas que fazem uso de drogas. Eu exerço esse trabalho por amor e quero me aprofundar cada vez mais nele. Já com esta grande descoberta de profissão, veio a necessidade de terminar os estudos e consegui. Foi pensando neste período de minha história, que sinto novamente a necessidade de aprofundar meus conhecimentos por meio do ensino superior e vejo neste sonho uma excelente oportunidade para minimizar as vulnerabilidades que passei e uma chance de dar continuidade a outros sonhos.

Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade.(…) Eu não consigo segurar minhas lágrimas e fico agoniada ao pensar em minhas companheiras que estão em situação de rua

Chegada da pandemia e a depressão

Eu sou mãe, avó, ex moradora de rua e ex usuária de drogas. Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade. Passei a usar antidepressivos. Eu não consigo segurar minhas lágrimas e fico agoniada ao pensar em minhas companheiras que estão em situação de rua, com as mulheres que são provedoras de lares tendo que se colocar nas ruas para manter sua sobrevivência. 

Eu, em momento algum, pude me colocar em isolamento pois há um grupo grande de mulheres que são acolhidas por mim. E, apesar de estar nos cuidando desse público, tive a sorte de não me contaminar com o Covid-19. Porém, é grande o sofrimento ao ver algumas de nossas entes queridas morrerem por causa dessa pandemia.

Me nego a ocupar o espaço marginalizado que a sociedade cotidianamente me coloca

Retrato da resistência e da ressignificação de vida

Diante de tudo que aconteceu em minha história, vejo o quão difícil foi chegar aqui, mas não me vitimizo em qualquer momento. Me nego a ocupar o espaço marginalizado que a sociedade cotidianamente me coloca e busco construir um mundo melhor tanto para mim, minha filha e todos os companheiros de rua, tão silenciados pela mediocridade das políticas públicas. Vou seguir realizando meu trabalho na esperança de dias melhores.

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25 a 39 anos Distrito Federal Parda Pós-Graduação Completa

“Na pandemia, a Tulipas do Cerrado começou a distribuir alimentos e produtos a grupos em vulnerabilidade social”

Sou Victória, mulher cis parda, tenho 26 anos, sou enfermeira, especialista em saúde mental, álcool e outras drogas, e redutora de danos voluntária na organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado desde 2019. Resido em Ceilândia, periferia do Distrito Federal e irei fazer o relato a partir dos impactos que a pandemia trouxe à ONG.

Antes da pandemia, a ONG Tulipas do Cerrado realizava ações de redução de danos nas ruas, em territórios vulneráveis, com foco nas pessoas em situação de rua, profissionais do sexo e população LGBTQIAP+. Além disso, a organização estava se inserindo nos ambientes de festas, com a oferta de acolhimento e atendimento às pessoas que estavam sob efeito de álcool e outras drogas, bem como realizava ações de redução de danos (oferta de água, frutas, informações de saúde) para o público que frequentavam as festas. 

A Tulipas do Cerrado também realizava cursos, seminários e oficinas em volta das temáticas: redução de danos; guerra às drogas; trabalho sexual; cuidado à população em situação de rua; atenção à saúde da comunidade LGBTQIAP+

Pandemia: ações na rua deram lugar a atendimento psicossocial e arrecadação de alimentos

Porém, com o surgimento da pandemia do novo Coronavírus e as medidas de enfrentamento focadas no distanciamento social e na quarentena, a instituição ficou dois meses fora das ruas, o principal local das ações. Nesse período, realizamos mobilização pelas redes sociais para adquirir doações de roupas, produtos de higiene pessoal, alimentos não perecíveis, cestas básicas e água, para que pudéssemos entregar em domicílio esses insumos para as pessoas que estavam sendo acompanhadas pela ONG. 

Ainda naquele tempo fora das ruas, a organização passou a oferecer atendimento psicossocial online. A ONG conta com uma equipe multiprofissional voluntária de profissionais da saúde que tem experiência em cuidado em saúde mental na perspectiva psicossocial e de redução de danos, da qual eu faço parte. Essa atividade tinha os objetivos de dar suporte e escuta qualificada às pessoas que estavam em sofrimento mental e em situações de agudização de quadros de ansiedade e/ou depressão causadas pelo impacto da pandemia (isolamento, pobreza, insegurança, mortes…). Esse trabalho envolvia também o encaminhamento dessas pessoas para a Rede de Atenção Psicossocial do Distrito Federal e Entorno, para dar continuidade no cuidado e acessar outros profissionais, como psiquiatra e terapeuta ocupacional.

Doações

Em meados de abril de 2020, a Tulipas do Cerrado começou a distribuir doações de alimentos, roupas, máscaras e álcool em gel a grupos de trabalhadoras sexuais cis e transgênero, chefes de família, que estavam em vulnerabilidade social decorrente da pandemia. A entrega de cestas básicas, cesta verde e ticket alimentação ocorrem mensalmente com a ajuda de múltiplos parceiros da rede.

Em 2020 e 2021, a Tulipas do Cerrado participou de editais que possibilitaram a implementação de projetos voltados a prevenção do Covid-19, redução de danos e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, com foco na população em situação de rua e trabalhadoras sexuais. 

Com os recursos financeiros adquiridos, foi possível: custear medicamentos para alívio de sintomas do Covid-19 às mulheres assistidas pela instituição; pagar gás de cozinha para as que não tinham condição de obter por conta própria; e oferecer ajuda de custo àquelas que estava indo aos territórios para realizar as atividades do projeto.

Atualmente, as atividades da Tulipas do Cerrado têm sido possíveis com a ajuda de outras organizações e coletivos, bem como com o financiamento de projetos. Mesmo que nossas atividades estejam aquém do que projetamos antes do surgimento da pandemia, creio que estejamos realizando da melhor forma que tem sido possível e, apesar das dificuldades, temos conseguido reduzir os danos sociais e de saúde e provocar melhorias na qualidade de vida das pessoas que são acompanhadas pela ONG.