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“Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer”

Lucimar Marques dos Santos passou parte da pandemia na cadeia. Em seu relato ele conta como era sua vida antes de ser preso e a importância da rede de apoio.

Meu nome é Lucimar, tenho 44 anos de idade e sou um homem cis negro. Hoje moro em uma casa na Ceilândia Norte-DF, cidade satélite e região periférica de Brasília. Antes, por 34 anos, morei nas ruas desta capital. 

Sai de casa aos nove anos de idade e consegui estudar somente até a 5° série do ensino fundamental: uma parte no Grande Circo Lar e outra na escola Meninos e Meninas do Parque (Brasília/Distrito Federal), onde já adulto aprendi a ler e a escrever. Por último, estudei no sistema prisional, mas ainda não consegui concluir. 

Não tive infância. Nas ruas tive que sobreviver em meio a violência e a crueldade: não havia tantos momentos para lembrar que eu era uma criança, eu precisava ser bruto, porque só assim poderia me manter vivo. 

Hoje sou um trabalhador, tenho sete filhos, sou um homem ainda sob cumprimento de pena, pois infelizmente minha vida no passado se dividiu entre o cárcere e a rua. Nesta última vez de privação da liberdade, fiquei quase sete anos em regime fechado por uma sentença de tráfico de drogas, mas eu não era traficante, nunca fui. Eu era mais um sobrevivente naquela realidade das ruas. 

Assim como todo o meu povo da rua, nos prendem como traficantes. Toda a minha trajetória nas ruas aprendi que a lei somente é aplicada a nós, principalmente em relação ao tráfico de drogas. Eu digo isso porque o povo da rua, os pobres, as pessoas pretas são a maioria nos cárceres.

Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer. Quando tinha TV, a gente acompanhava as notícias e era assustador demais. Foi muita tristeza, angústia e medo de nunca mais ver minha família, nunca mais respirar em liberdade

Pandemia na cadeia

Estes últimos anos, nesta cadeia, foram os anos mais difíceis da minha vida, principalmente os últimos cinco meses quando chegou a pandemia da COVID-19 no mundo. Eu nunca mais quero voltar para aquele lugar, nunca mais quero sofrer tanto por cometer um erro. Não existe justiça, só existe vingança ali.

Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer. Quando tinha TV, a gente acompanhava as notícias e era assustador demais. Foi muita tristeza, angústia e medo de nunca mais ver minha família, nunca mais respirar em liberdade. 

No cárcere, eu fiquei na área reservada para as pessoas com comorbidades por ser hipertenso, mas não havia cuidado. Estávamos isolados e muitas vezes quem tinha a COVID-19 não dizia que tinha por medo de ir para um lugar pior. 

Logo que a pandemia chegou, as visitas foram proibidas e nós fomos submetidos a todo tipo de violação. Todos nós temos direito à dignidade humana, mesmo quando estamos ali naquele lugar, que eu chamo de “depósito de rejeitados”, onde a sociedade não vê valor algum. 

Todo ser humano é maior do que seus erros e não temos o direito de decidir quem vive e quem morre. Em 6 de agosto de 2020 consegui obter uma progressão para o regime aberto (domiciliar) e voltei pela primeira vez para a minha casa, um lugar onde eu vi o amor por mim em cada cantinho, um lar. 

Em todas as vezes que eu vivia na prisão, eu saia sem nenhum pilar para me apoiar e seguia no ciclo rua e cadeia, mas dessa vez foi diferente. Eu encontrei o amor, tanto em minha casa como na rede de apoio que tenho hoje. 

Hoje eu não estou mais só, eu tenho minha família, meus filhos, esposa, sogra, enteado e minha netinha. Ela traz luz para minha vida, ela clareia, ela é a Clara. Eu aprendi o que é amor, eu hoje sei o que é ser amado e amar, respeitar e ser respeitado, agora me vejo realmente como um ser humano. 

Vida em família

Antes, eu não sabia o que era verdadeiramente uma vida em família. Já tive outros relacionamentos, mas eu era jovem, cabeça dura, vinha de uma realidade da brutalidade nas ruas. Eu era muito esquentado e também enfrentava muitas dificuldades para me sustentar. Minha forma de vida não era a correta, mas era a única forma que eu conhecia para sobreviver pois foi assim que eu cresci nas ruas. 

Ao vir para casa, me deparei com a minha esposa desempregada, com minhas duas filhas desempregadas, eu me perguntava o que eu faria já que eu não queria voltar para aquele lugar [cárcere]. Eu estava muito cansado de tanto sofrimento e as limitações que eu tinha, com a falta de estudos, diminuíam as possibilidades de eu arrumar um emprego e ter uma oportunidade de fazer diferente. 

Em meio a pandemia, minha esposa estava sobrevivendo com a ajuda das redes de apoio, coletivos, organizações não-governamentais e movimentos sociais. Foi nesse momento que conheci as Tulipas do Cerrado, uma organização que foi fundada por uma pessoa que hoje é uma das mais importantes em minha vida. Nunca imaginei reencontrar a Juma Santos, que foi uma menina de rua como eu, que eu conheci nas ruas. Eu não imaginava a importância que essa mulher teria em minha vida e da minha família, como suporte, acolhimento, voz forte, amiga, irmã e protetora.

Eles [trabalhadoras e trabalhadores das Tulipas e do Coletivo Aroeira] não sabem, mas me salvaram e me salvam a cada encontro. A cada semana era uma terapia nova: aprendi respeitar as minhas irmãs de caminhada, as trabalhadoras do sexo, que na rua, eu nunca tinha olhado com tanto amor. A palavra é essa (amor) e respeito!

Rede de apoio: trabalho feito por nós para nós

Hoje eu sou muito grato a Deus por ter a Juma ao meu lado. Foi através das Tulipas do Cerrado que eu fui apresentado e incluído no Coletivo Aroeira, que usa a metodologia agroflorestal e a redução de danos como ferramentas de autoconhecimento e cuidado. Ali conheci amigos(as) que eu nunca imaginei ter e mais uma vez eu pude ver o quanto o amor é capaz de salvar vidas. 

Eles [trabalhadoras e trabalhadores das Tulipas e do Coletivo Aroeira] não sabem, mas me salvaram e me salvam a cada encontro. A cada semana era uma terapia nova: aprendi respeitar as minhas irmãs de caminhada, as trabalhadoras do sexo, que na rua, eu nunca tinha olhado com tanto amor. A palavra é essa (amor) e respeito! São mães, são amigas, são guerreiras e eu não as via assim. 

Também entendi que o preconceito destrói a vida das pessoas que são usuárias de drogas e são seres capazes de fazer tudo. Mesmo sendo usuários de substâncias consideradas ilegais, não são zumbis, são meus irmãos e minhas irmãs. 

Eu não sabia a importância dessas redes, mas através desse espaço eu entendi que não é só sobre mim, o Lucimar, Mazinho, velho mar e hoje novo mar. É sobre nós! 

É necessário sempre lembrar e falar que se estou de pé é por causa das Tulipas do Cerrado e Coletivo Aroeira, pois estes lugares são meus portos seguro hoje e me ensinam ser uma pessoa melhor, além de me fazerem refletir sobre como a redução de danos é algo que precisa chegar ao nosso povo, pois só assim não seremos mais mortos e encarcerados por uma desigualdade social que nos aflige. Esse é um trabalho feito por nós e para nós.

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