Me reconheci como trans em 2002, entre 13 e 14 anos, quando tomei meu primeiro hormônio escondida.
Sou de Ilhéus, mas moro em Salvador desde 2014. Sou graduada em Educação Física. Tive dificuldade de conseguir emprego na área de formação, por isso, passei a atuar na área de ‘telemarketing’.
Estou envolvida no ativismo trans desde 2008. Minha relação com meu pai não é tão boa. Os pais criam expectativas sobre os filhos, de forma geral, e quando esse filho é trans (ou até mesmo cis-gay), eles acreditam que não terão netos, uma descendência. Já com a minha mãe, tenho uma relação de amizade.
Se reconhecer como uma pessoa trans
Roubava calcinhas da minha irmã, para usar e sair na rua. O que foi definitivo para eu saber que sou trans tão cedo, foi o fato de ter referências, como Roberta Close, uma mulher trans da minha cidade, que viajou para a Itália e depois retornou transformada — quando eu nem sabia o que era silicone.
A partir dessas referências, pude entender ser aquele corpo, aquela forma que eu queria assumir. Elas — mulheres trans famosas e precursoras na visibilidade — foram muito importantes para muitas se verem nelas, assim como nós somos e seremos importantes para outras. Durante o ensino médio enfrentei dificuldades com o preconceito e cheguei a evadir devido à discriminação, visto que eu era impedida de acessar o banheiro feminino, sendo a única trans da escola — tinham muitos gays.
Às vezes eu tinha que sair da escola para usar o banheiro da casa de uma colega que ficava do lado — já cheguei a urinar na roupa.
Também tive questões com o ensino de disciplina ligada à religião, que usava de práticas evangelísticas e cristãs, cujo discurso era transfóbico e não contemplava outras religiões.
Uma juventude conturbada
Voltando a falar da minha relação com a minha mãe… é muito fraternal. No início houve a não aceitação, mas as coisas mudaram, principalmente, quando me tornei a única filha – entre mais 3 mulheres e 4 homens cis – que se formou numa faculdade.
Isso é motivo de orgulho para mim, e motivo de orgulho para ela, ainda mais tendo outros filhos que se envolveram no mundo do tráfico.
Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas percebeu, na prática, que isso não era uma verdade. Por isso, costumava dizer que — “eu não lhe dava orgulho em um ponto (por ser trans ) — mas dava orgulho de outras formas”
Eu precisei tentar compreender muitas falas dela, como essa.
Entender que ela já é uma mulher de mais de 60 anos e sua formação foi outra. Eu passei a interpretar não apenas o que ela dizia, mas o que ela queria dizer. Esse acolhimento é importante, inclusive, devido ao que minha mãe já sofreu, sendo agredida e espancada pelo meu pai, em um contexto machista e de subserviência. Entretanto, ela sempre foi batalhadora… não esperava pelo meu pai, mas ia à luta, trabalhava e fazia todo o possível para trazer o sustento para a nossa casa.
As dificuldades de uma pessoa trans
Depois de um tempo eles se separaram, e nós, os filhos, ficávamos com ela. Após me formar no ensino médio, trabalhei na Secretaria de Educação.
Lá, tive meu nome social respeitado.
Experiência importante para que eu me posicionasse na faculdade, em Itabuna, quanto a preservação do nome social — eu e uma colega fomos as primeiras trans da faculdade a termos o nome social na caderneta — e, também, quanto ao uso do banheiro feminino.
Estagiando no SESI, em Ilhéus, em 2011, não era aceita como mulher trans, mas tratada como homem cis gay.
Era difícil não ter o meu nome respeitado, mas eu precisava daquele dinheiro, porque não queria ter que me prostituir, como já havia feito algumas vezes.
Em 2014, mudei para Salvador e saí do SESI, mas retornei em 2016. Foi quando eu disse que só aceitaria voltar se tivesse a minha identidade de gênero plenamente respeitada, o que me foi negado, de modo que recusei me submeter àquela condição de trabalho.
O mercado de trabalho para pessoas trans
De volta a Salvador, encarei a dificuldade de conseguir um emprego. Dizem que a culpa é da falta de formação, mas quando formamos, continuamos amargando o desemprego. Isso é cansativo… marcas, empresas e instituições que se promovem se afirmando inclusivas porque oferecem um curso, uma oficina, mas que não mudam a realidade e nem oferecem o que realmente precisamos, que é trabalho.
Passei a atuar na área de telemarketing, mas como o dinheiro só é suficiente para pagar as contas básicas, ainda faço alguns trabalhos de prostituição. Durante a pandemia de Covid-19, mantive a minha rotina de trabalho, porém, com todas as limitações impostas pelos protocolos sanitários de prevenção ao coronavírus.
Tive medo, mas não me infectei pelo vírus. Eu cheguei a sair, sim, durante o lockdown, até por uma questão de necessidade. Eu sentia urgência em aproveitar a vida, que é tão curta. Mas prezei por minha mãe, que estava em Ilhéus, em quarentena.
Não tive nenhuma perda significativa de pessoas. Apenas conhecidos distantes, o que, de alguma forma, me entristecia, mas não impactava tanto. O que realmente me impactou foi, já em 2021, ter ficado desempregada. O que garantiu o meu sustento fora os clientes que mantive enquanto garota de programa.
Os anseios do pós-pandemia
As ajudas dos projetos e iniciativas sociais, que ofereceram cestas básicas para pessoas em vulnerabilidade, incluindo pessoas trans, também foram de suma importância para eu conseguir passar por esses momentos de isolamento social.
Usei o tempo em casa para aprender a cozinhar melhor, fazer cursos online e estudar — aproveitei para assistir filmes, séries e aprendi a me cuidar mais e dar valor a minha vida.
Quero muito conseguir voltar a trabalhar e dentro da minha área de formação.
Desejo tocar projetos sociais e de ativismo que ajudem as minhas iguais, e espero o momento em que esse presidente saia do cargo, para podermos ressignificar tudo ao nosso redor, retomando políticas públicas e enfrentando o preconceito e a discriminação.