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Encontrei amparo em Deus

Eu converso muito com Deus. Apesar de todas as tristezas que tive, e todas as dores que passei, acredito que Deus é a essência da vida. Independentemente de ser mulher trans, Ele é uma fortaleza, que me concedeu a cura.

Meu nome é Lorrany, tenho 40 anos, e minha história de vida é bem atribulada. Pai e irmão policiais civis — e o desejo, era que eu também me tornasse policial.

Uma crianção dolorosa

Tive uma criação extremamente rígida e machista. Já percebiam que eu era diferente.

Além disso, as diversas religiões cristãs que estavam no meu contexto — da Assembleia de Deus até Adventista do Sétimo Dia e Testemunha de Jeová — também eram usadas na tentativa de exercer controle sobre a minha forma de existir.

Meus irmãos jogavam futebol – um deles, em quem eu achava que deveria me inspirar, chegou a ser profissional – e sempre ouviam “piadinhas” dos amigos relacionadas a mim.

Por isso, me agrediam em casa. Recebia murros e pontapés. Minha família não aceitava as minhas diferenças e o meu jeito de ser. Eu via meu pai brigar com minha mãe por minha causa, a ponto de dizer-lhe — “escolha: ou o seu filho, ou eu”.

A fuga

 Aos 16 anos, fugi de casa. Fui morar em uma palafita na periferia com um, já falecido — assassinado —, colega gay.

Após o ocorrido, liguei para minha a mãe, desesperada. Ela me disse para procurar uma casa, que ela se responsabilizaria pelo pagamento do aluguel.

Ela me apoiou em todos os momentos e, até me ajudou a mobiliar a casa e me sustentar.

Com 24 anos, já tendo o corpo que eu sempre quis ter, e terminado precocemente o segundo grau, decidi voltar aos estudos.

Em meio a tudo isso, eu ainda estava vivendo um outro drama: o de ter problemas devido ao silicone em que havia colocado em meu corpo. Cheguei a ficar 4 anos em uma cadeira de rodas, e mais 3 anos usando muleta.

Minha mãe me deu todo o suporte. Neste percurso, me envolvi com outros homens, até conhecer um rapaz de São Paulo. Ele me disse precisar ir embora da cidade, com isso, eu abri as portas da minha casa para ele.

Deus sempre oferece o melhor caminho

Ele era sócio de uma rede de lojas. Usou o meu nome para seus próprios negócios e, acabei contraindo as dívidas que ele tinha, que eram muitas — a ponto de cerca de cinco rapazes chegarem a perseguir e, quase matar ele, que fugiu de volta para São Paulo e deixou tudo comigo.

Comecei a trabalhar com essa loja, pagar as dívidas e investir. Comprei outras duas casas, construí uma nova vida, comecei a faculdade — de enfermagem — e fiz a minha vida mudar.

Por causa do meu curso na faculdade, passei a estagiar em hospitais. Durante a pandemia, eu estive atuando na linha de frente do combate à Covid-19. A minha vida sempre foi urgente.

Meu contexto sempre foi de perigo. A morte sempre esteve perto, à espreita.

Enquanto, para muitas pessoas, o vírus apresentou uma realidade distópica, para mim, ele era só mais um risco. Um entre os tantos que eu corri, corro e supero.

Não tive medo. Fui “jogada” dentro de um hospital de campanha com pacientes infectados pelo coronavírus e, em vez de ter medo, eu entendi ser uma oportunidade para que eu, mulher trans, tão excluída e preterida no mercado de trabalho, pudesse ter alguma experiência e aprendizado.

Isso revela as desigualdades que são um abismo entre nós. Algo que para uns é novo e assustador, para outros, é o triste cotidiano.

Os planos de Deus

Era a minha primeira experiência de trabalho. Eu vi pessoas morrendo na minha frente, muitas pessoas, e aquilo me impactou, — mas não a ponto de me amedrontar e paralisar. Eu não me abstive de sair, e seguir a vida.

Sempre senti precisar viver tudo o que quisesse, logo. Principalmente diante dos riscos.

A minha saúde mental dependia disso. Vi colegas sucumbirem também por demandas mentais — e eu, prezei pelo que necessitava. Não consegui fazer quarentena. Fui diagnosticada com Covid-19, tive febre alta, perdi o paladar, mas nem nesse momento, eu senti medo.

Mantive distância das pessoas e as avisei do meu diagnóstico. Só temi por minha mãe. Ela é uma amiga para mim.

Nós brincávamos, dançávamos e conversávamos. Dei todo suporte a ela, tanto que, devido aos meus estímulos — colocando-lhe medo, por exemplo, ela parou de fumar.

Foi possível me manter durante esses tempos, morando só, porque recebi bolsas dos estágios voluntários, além de ter recebido cestas básicas. Meu pai morreu durante a pandemia. Ele contraiu coronavírus, mas foi um câncer de garganta que o levou. Ele nem sequer falava comigo, mas pediu para eu ver o seu exame.

Naquele momento eu disse-lhe: “se eu te fiz algum mal, e fui uma pessoa ruim, me perdoe”.

Ele disse estar muito orgulhoso de mim.

O que mais quero, é viver.

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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Prefiro não informar

Foi um dos dias mais importantes da pandemia

Trabalho com vendas e automóveis, em uma rotina muito intensa e que durante toda a pandemia sofreu uma grande instabilidade, o que impactou diretamente em minha vida.

Precisei de muita resiliência para conseguir continuar caminhando. Outro trabalho que realizo, de forma voluntária, porém muito profissional, é como palhaça, em hospitais, através da ONG Nariz Solidário.

Ficamos envoltos naquele imenso presente. Foi um dos dias mais importantes da pandemia.

É algo que sempre me ajudou a me perceber e perceber o outro de maneira singular e potente. Algo que também, devido à pandemia, foi amplamente afetado, já que as intervenções presenciais deixaram de acontecer.

Dias de acolhimento

Após longos meses parados, mas não tão parados assim, pois estivemos em constante estudo remotamente, — tivemos a oportunidade de retornar aos hospitais no mês de outubro de 2021, para uma ação de Dia das Crianças.

Tive ansiedade, calafrios, e um certo receio de estar ali mais uma vez, — mas agarrei novamente a oportunidade desse retorno tão importante para mim, e para aquelas crianças, seus familiares, e profissionais da saúde.

Para o retorno, o Nariz Solidário criou um jogo único no Brasil, para ressignificar a experiência hospitalar — uma espécie de jogo de cartas com elementos hospitalares como, por exemplo, luva que vira polvo, máscara que vira paraquedas, seringa que vira saxofone, e muito mais.

O dia finalmente chegou

Ali no Hospital Infantil Waldemar Monastier em Campo Largo, onde foi realizada a ação, estávamos em três pessoas: eu, com minha palhaça Jupira, meu amigo, palhaço Frutuoso e o Edu, da ONG.

A cada passo que, íamos evoluindo nos corredores, fomos notando que era uma visita diferente.

De longe, os olhares se abriam por trás das máscaras, curiosos — crianças acompanhadas de seus pais, pequenos pacientes obtendo sua alta médica, e, outros dando entrada no hospital.

Recepções calorosas foram nos envolvendo leito a leito, dentre pacientes, familiares, e funcionários de todas as áreas do hospital.

Ficamos envoltos naquele imenso presente. Foi um dos dias mais importantes para mim depois que começou a pandemia.

Em dias de olhar profundo

Em um dos encontros que realizamos, acabamo-nos por entrar em um quarto com quatro pequenas crianças acompanhadas de suas mães, que nos receberam com um grande sorriso.

Neste momento, enquanto eu e o Frutuoso fazíamos nossa aproximação sutil, segura e ‘palhacística’ – pares de olhos iam nos buscando e nos seguindo; olhos frágeis e ingênuos, mas também, muito fortes por conseguirem superar aqueles momentos.

Utilizamos uma língua muito conhecida pelos nenéns, o “Nenenêis”. As mães falam outra língua, a do “Mamanês”. Nesse papo poliglota fomos saindo, deixamos o jogo, mais uma frase em “Nenenêis”, e até aprendemos mais algumas em “Mamanês”.

Nesses encontros os olhos nos explodem por fora e nos implodem por dentro, algo que não se mensura no peito. Trouxe-me lembranças de uma infância cheia de amor, mas talvez, pouco explorada.

A importância dos acompanhantes para dias difíceis

Pude perceber como podemos estar tão rodeados de pessoas, mas tão sozinhas ao mesmo tempo, precisando de alguém como companhia. Percebi isso em um quarto com uma pré-adolescente, que estava muito triste. Havia passado há poucos minutos por um procedimento e estava naquele momento tão frágil, sem ter alguém do seu universo próximo.

Dias de acolhimento e 'palhaçaria' no Hospital

Ao entrar no quarto, sentimos a frieza da solidão em nosso paladar. Vi-me diante de um paradoxo gigante: o pensamento, a proposição ou o argumento que contraria os princípios   básicos e gerais que costumam orientar o pensamento humano, ou desafiam a opinião concebida, a crença ordinária e compartilhada pela maioria das pessoas do que é estar, “antes só, do que mal acompanhado”

Se tem algo que, aprendemos com essa pandemia, é olhar para o próximo com mais empatia. Ver muitas pessoas passando necessidade, ou em situações inimagináveis, mexe com nossa sensibilidade e com a vontade de oferecer ajuda a quem precisa.

Pequenas atitudes, como a doação de tempo, podem fazer toda a diferença para quem está em dificuldades.

Levarei comigo a percepção e a necessidade de estarmos mais juntos, estarmos mais ali, ao lado ou do lado, mais aqui, ao lado de mim mesma também, presente a qualquer momento e, considerando as necessidades do outro, e a minha, sendo ele próximo, ou não.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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18 a 24 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Eu também adoeci

Sou psicóloga residente em um programa de Saúde da Família, e também adoeci.

Atuo em um núcleo de Atenção Primária em Saúde: a UBS, o querido “postinho”. Nesse espaço, atuo com os usuários do SUS que são encaminhados à avaliação e atendimentos psicológicos breves, além de realizar encaminhamentos a outros serviços da rede.

Dei início à residência e à minha prática profissional em sua totalidade em 2021, já em um contexto pandêmico.

Passei 8h diárias, escutando a dor e acolhendo o sofrimento.

Após alguns dias atuando na UBS, em um momento de maiores restrições sanitárias, houve importantes mudanças no meu processo de trabalho: minha atuação se restringiu aos teleatendimentos.

Durante alguns meses, passei 8h diárias, seis dias por semana, escutando a dor e acolhendo o sofrimento individual, atravessado pelo contexto da pandemia.

Fui tomada pela angústia e, por fim, eu também adoeci. E como poderia ter sido diferente? A dor do isolamento social, da saudade, das restrições no repertório de vida, da morte, das implicações financeiras, políticas e sociais… Todas me atravessaram. Foram tempos nebulosos, duvidei da minha própria capacidade de (re)existir.

Um sono patológico que tomava conta dos meus dias, um pedido de socorro. Meu corpo e minha mente tinham adoecidos.

Só-depois

Afastei-me de coisas que considero importantes, como o trabalho com o Nariz Solidário, em que, inclusive, atuava em prol do incentivo ao cuidado da saúde mental. Hoje, olho para tudo isso e percebo o quanto fui capaz de superar, de reinvestir no mundo, de estar retomando projetos, apesar de ainda não ter compreendido totalmente minhas reações frente a esse período. Mas não tenho pressa.

Freud tem um conceito muito interessante para isso: “nachträglich”, palavra alemã que não possui tradução literal, mas implica uma ideia: só-depois.

Tem coisas que só vêm depois.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Trans Paraná

Vítima da Covid-19

Em meados de agosto de 2021, após mais de um ano de pandemia, em um Hospital de Campanha referência em atendimento à Covid-19, um menino de 17 anos deu entrada no hospital em estado grave.

Durante todo o período de internamento, as equipes assistenciais trabalhavam de maneira triste.

Estavam fragilizadas pela mãe, que sofria, tristes pelo jovem, entubado com poucas chances de sobrevida, tristes pela pouca estrutura psíquica que essa família tinha para lidar com a situação e, desolados pelo agravamento da pandemia de Covid-19.

Acolhimento em meio à Covid-19

Em minha função como psicóloga, acolhia a família, e tentava auxiliar os pais a criarem estratégias internas para lidar com o sofrimento.

Ao final da terceira semana, o quadro clínico de Covid-19 se agravou, fazendo com que a equipe médica tivesse que alertar à família. Naquelas condições, haveria poucas chances para o paciente resistir.

Infelizmente e por alguma razão, a comunicação emitida sobre risco iminente do paciente não resistir, não chegou à família, que acabou por realizar a visita um tempo depois do comunicado.

Por coincidência, a chegada à recepção para comunicar a visita acabou acontecendo no mesmo momento em que o jovem evoluiu para óbito, devido ao agravamento da pandemia.

Não deu tempo. Ao serem direcionados para a sala de acolhimento, a angústia se instalou por todo o hospital.

“Por favor, não façam isso comigo”

Assim que entrei na sala, direcionei-me para o lado da mãe, que estava acompanhada da assistente social e do médico.

A mãe estava com os olhos marejados. Dizia em um tom de súplica: “por favor, não façam isso comigo”.

O médico iniciou o seu discurso retomando as últimas 24h e finaliza sua fala comunicando o falecimento aos pais.

“A dor da perda não tinha uma forma exata de ser expressada, eram gritos, olhares, lágrimas e pedidos de que disséssemos que era mentira.”

Mais uma vítima da Covid-19

Mais de 1 hora se passou até que conseguimos orientar os próximos passos e encaminhar a mãe ao atendimento em uma unidade básica de saúde.

Ao fechar a porta, lágrimas da equipe se despencaram; sofrimento pela dor da mãe; desgaste emocional após o atendimento de tantas histórias semelhantes.

A morte não pede licença, não avisa, não tem piedade, não espera uma expressão de afeto e nem um último adeus, ela aparece e muda toda uma história. Aproveitemos o hoje, o agora


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia