A Covid-19 agravou as situações de violação de direitos sofridos pelas pessoas que vivem com HIV, porque é profunda a desigualdade social e econômica dessas pessoas.
Por exemplo, a população trans é uma população que vive em grande parte da prostituição. Sem poder ir à rua, muitas ficaram numa situação dramática, sem comida, medicamento, sem condições de se prevenir de DSTs.
Campanhas de prevenção e setor privado
É terrível notar, com a Covid-19 a nível federal, que não temos campanha de prevenção. Aqui no Rio, quem faz a campanha de prevenção que tem mais alcance é O Globo e o Itaú. É o poder privado. O mundo dos negócios é que esta fazendo a prevenção. Isso é muito perigoso, a coordenação é deles próprios, se uma hora eles não quiserem financiar, podem falar:
“Meu negócio é banco, dinheiro, mundo financeiro, tô fazendo isso por um favor. Não quero mais colocar dinheiro nisso”, acabou a campanha de prevenção.
As pessoas ficam desbaratadas, não sabem o que fazer exatamente. Eu critico o pessoal do Leblon que vai para os bares, as pessoas de Campo Grande que não se protegem. Mas temos que nos perguntar o que o Estado tem dado para essas pessoas, onde elas estão se informando.
É na Globo pelo Drauzio Varella – não é esse o caminho. Isso mina a confiança, não trás realmente mudanças no comportamento. E usando somente o poder punitivo, se elas não sabem exatamente o que seria correto. Isso leva à violência e aos estranhamentos que estamos vendo.
Foi porque não se cuidou…
Fora a questão do ônibus cheio – acaba que se a pessoa contraiu foi porque não se cuidou. Isso é um passo para agredir direitos. Uma empresa pode demitir um funcionário que contraiu Covid-19 alegando que “pegou porque não se cuidou”. Mas fez prevenção no local de trabalho? A responsabilidade do transporte urbano com a prevenção deveria ter um posicionamento. O que a Fetranspor, Secretaria de Estado declara? Qual é a sua campanha? Não era apenas da prefeitura e sim em coletivo.
Neste momento, precisávamos primeiro de uma política de prevenção clara, não essa confusão que está aí. Isso seria fundamental, até como uma maneira de demonstrar cuidado e atenção. Ter as secretarias de estado e município e também do nível federal trabalhando de forma coordenada. Inclusão da sociedade civil nos conselhos.
São Paulo tem um conselho, mas não participa a sociedade civil. Não tem pacientes, familiares. Só empresas participam desse conselho social. E um ou dois cientistas. Aqui no Rio, na prefeitura, a gente nem sabe quem compõe. Isso resulta em bagunça como vimos nos hospitais de campanha que foram prometidos e não foram entregues, roubos, prejuízos para a sociedade. Uma preocupação com os mais vulneráveis, inclusive as pessoas historicamente vulneráveis.
Pessoas que vivem com HIV, ONGs e pressão por políticas assistencialistas
Grande parte das ONGs no campo das pessoas que vivem com HIV está sendo demandada cada vez mais para um posicionamento assistencialista de ofertar cestas básicas. O que é compreensível. A gente entende que essa demanda aumenta muito.
Mas, por outro lado, as ONGs estão muito fragilizadas. E assumir nas costas grandes tarefas de assistencialismo em médio prazo pode ser um problema institucional grave. Por falta de pessoas, de fundos. Fora um abandono de uma agenda de força política e social para mudanças, de agente de mudanças, e não somente um mitigador de problemas.
Sobre a pressão pela questão humanitária, precisamos discutir com eles que isso não deveria substituir a força política e social, capaz de manter políticas democráticas de Estado, como, por exemplo, a distribuição universal de medicamentos. Não é possível trabalhar só com ajuda humanitária, mas sim com força política para manutenção da política de Estado, que é o acesso universal. As populações vão continuar vulneráveis devido a uma crise econômica que não se recupera tão fácil. E hábitos e estilos de vida que será difícil modificar.
Pós-pandemia e filantropia
No pós-pandemia, precisaremos de uma mudança na filantropia de apoio: alianças, políticas de solidariedade entre as organizações, como projetos intersetoriais – seria muito importante.
Acho que, mais do que nunca, as políticas de solidariedade que o Betinho falou são um desafio de como vai ser a nossa habilidade – enquanto movimentos sociais e sociedade civil – de formar alianças e encontrar denominadores comuns. E ter quem apoie.
Filantropia apoia um tema como meio ambiente, gênero, educação popular. Mas talvez vá precisar de agências que financiem meio ambiente e saúde (como o Betinho deslumbrou uma hora, quando a ABIA 92 participou do Eco 92).
O que tem a AIDS a ver com Eco 92? Na época do Betinho, tinha tudo a ver. Porque as condições ambientais fomentam doenças e favorecem epidemias – elas não surgem porque um vírus simplesmente surgiu. A cultura filantrópica intersetorial ainda é pouca na questão de políticas de solidariedade; mas é essencial para mudar o que queremos mudar.
“Betinho” é uma referência ao sociólogo e defensor de direitos humanos Herbert de Souza. Betinho foi um dos articuladores da Campanha Nacional pela Reforma Agrária e tornou-se um símbolo de cidadania no Brasil ao liderar a Ação da Cidadania contra a Fomes, a Miséria e pela Vida. Em 1986, depois de saber que convivia com o vírus HIV, ajudou a fundar a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).