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“A vacina demorou em chegar e com essa negligência muitas pessoas morreram”

Meu nome é Vilso Junior Santi, eu sou professor da Universidade Federal, coordenador do Amazoom e responsável, aqui em Roraima, por operacionalizar a coleta de depoimentos para o Memória Popular da Pandemia. 

Primeiro, é muito legal participar de uma iniciativa como essa. Acho que no contexto da pandemia, até na universidade, a gente tinha pensado em realizar alguns projetos para dar suporte, principalmente no esclarecimento das dúvidas, em relação às notícias falsas que estavam circulando sobre a pandemia. Infelizmente, por uma série de questões, a gente não conseguiu operacionalizar isso. 

Quando apareceu a oportunidade do projeto, de registrar essas memórias, também foi uma oportunidade para a gente retomar essas ideias. E tentar, de alguma forma, contribuir para o registro e discussão desse momento que a gente está vivendo, desse momento trágico que estamos vivendo.

É importante aproveitar a oportunidade para trazer os relatos a partir de Roraima. As pessoas que a gente buscou para dar esses depoimentos no projeto foram pessoas que representam o que é Roraima hoje, o que é Boa Vista hoje, o que é o Estado hoje. Quem é de Roraima talvez não se dê conta disso, ou talvez não goste de pensar nisso, mas, Roraima é um estado de migrantes, um estado indígena por excelência. A gente quis representar essas populações nos depoimentos que a gente colheu.

Buscamos falar com representantes dos povos indígenas, presentes no estadoe conseguimos obter depoimentos muito interessantes das populações indígenas e também representantes da população migrante, principalmente dos indígenas da Venezuela; dos venezuelanos em si; dos haitianos, para dar conta do que é esse contexto migrante de Roraima. 

Nós todos, praticamente, que estamos em Roraima somos migrantes! E Roraima precisa lembrar disso porque essa é a cara de Roraima! 

Projetos interrompidos na pandemia

Aproveitando o que a gente ouviu, é preciso dizer que a maioria dos relatos deixam claro que a pandemia interrompeu projetos! Muitos projetos! Projetos de vida, inclusive! 

As pessoas morreram! Várias pessoas, inclusive pessoas próximas da gente. No meu caso, a pandemia chegou “metendo o pé” na porta de alguns projetos. Um deles foi o projeto de pós-doutorado. 

Depois de ter passado oito anos, seis anos de gestão na coordenação do curso e na direção do centro aqui da UFRR, eu fui para o pós-doutorado no México. Eu viajei para o México no final de fevereiro e fiquei exatamente 30 dias no país até tudo ser fechado por conta da pandemia. Acabei ficando no México, em isolamento, até o início de agosto, quando eu consegui voltar para casa. Foi uma situação bem complicada, porque, enfim, estava em um outro país, longe das pessoas que conhecia. Estar longe de casa, das pessoas mexe com o psicológico. Comecei a questionar um monte de coisas e me revoltar, inclusive, com a situação. Eu não aguentava mais estar lá! Eu queria voltar para casa e, felizmente, isso deu certo. Consegui retornar alguns meses depois para casa e aí sim viver o resto do processo em casa. 

O governo do Estado não fez o que é o seu papel; o governo federal não fez o seu papel; o sistema de saúde não tinha capacidade para absorver e as pessoas ficaram jogadas, sem renda, sem trabalho, sem ter o que comer

Negligência do Estado

Meu retorno deu um pouco mais de tranquilidade por um lado, mas, por outro, também causou muita apreensão. Porque a gente vivia uma situação terrível em Manaus e uma situação terrível aqui em Roraima. Quem é daqui sabe que o sistema de saúde é caótico. Não é culpa da migração, é culpa sim de anos de negligência do Estado, da falta de investimento público! A pandemia deixou isso escancarado, evidente! 

Inclusive as pessoas se aproveitaram disso para superfaturar compra de respirador, por exemplo. Coisa que também demonstra um pouco do que é a cara do estado de Roraima e das pessoas que gerenciam as políticas públicas do Estado. 

O governo do Estado não fez o que é o seu papel; o governo federal não fez o seu papel; o sistema de saúde não tinha capacidade para absorver e as pessoas ficaram jogadas, sem renda, sem trabalho, sem ter o que comer. Elas precisaram ir para a rua e se contaminaram.

A vacina demorou em chegar e com essa negligência muitas pessoas morreram. Isso revolta a gente porque a gente fica imobilizada, sem saber o que fazer. 

Por mais que a gente diga que está preparado para a morte, ver alguém morrendo é horrível

Perdas na família

Meus pais moram no Rio Grande do Sul e a pandemia demorou em chegar na região onde vivem, já que são lugares isolados e com pouco trânsito de pessoas. Quando a pandemia chegou, as pessoas já tinham comprado a versão de que não era muito grave e não era muito sério. 

Porém, pouco depois, as pessoas conhecidas começaram a morrer: vizinho, tio avô, avô dos meus sobrinhos, amiga que era técnica de enfermagem, e minha tia, que chegou a ficar internada por 90 dias na UTI e não resistiu. 

No meio desse contexto, perdemos meu avô de 93 anos. Dizem os médicos que não foi por Covid-19, mas nossa família desconfia. Meu avô morreu logo depois das eleições municipais e meu avô teve contato com pessoas que viajaram para participar da votação. Agora já não tenho mais nenhum dos meus avós vivos. A geração toda se foi.

Por mais que a gente diga que está preparado para a morte, ver alguém morrendo é horrível.  Minha tia, por exemplo, não tinha doença nenhuma, não tinha complicação, não tinha histórico clínico grave. Ela não morreria agora se não fosse a pandemia e esse conjunto de negligências.

Oportunidade de contribuir

Chamo a atenção para a questão de oportunizar a chance de contribuir com o registro da Memória Popular da Pandemia, da memória das pessoas que sofreram com a pandemia. É uma oportunidade para pensar como que a gente, usando o jornalismo, pode intervir na vida das pessoas de uma maneira mais ativa para tentar construir uma realidade melhor do que essa que a gente vive. Esse é o grande sentido do que está por trás do que a gente tenta fazer.

Relato de Vilso Santi, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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“Descobri a doença da minha filha durante a pandemia”

Nesse período, minha filha de treze anos, que nunca ficou doente, começou a despertar uma febre acima de 40 graus. Logo, procurei atendimento em hospitais públicos lotados de pessoas com suspeita de Covid. Foi uma luta de dois meses, uma febre que não cedia e vários diagnósticos errados para a misteriosa doença, sendo um deles a Covid-19. 

Depois de mais um tratamento para um diagnóstico errado, ela foi encaminhada ao Centro de Especialização Infantil. Ali precisei tirar forças, não sei de onde, para enfrentar a internação da minha filha. Durante alguns dias em que ela esteve internada em uma unidade do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graac), para averiguação de câncer. Foram realizadas três biopsias e transfusão de sangue.

Ela ainda sofreu dois derrames pleural e uma pneumonia, que quase a levou de mim. Após essa batalha, finalmente chegaram ao diagnóstico correto: minha filha sofre de Lúpus, uma doença inflamatória autoimune que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos.

Hoje, ela está bem, apesar de muito inchada, devido ao tratamento da doença. Eu, enquanto mãe solo e mulher militante, me encontro muito mais forte e com muita garra para lutar contra as injustiça sociais desse país.

Militância

Sou uma mulher militante em defesa dos direitos humanos. Escolhi a educação como bandeira de luta por ter como experiência a ausência da educação, que acarreta danos na vida das pessoas que têm esse direito negado. 

É fato que ninguém esperava que fossemos viver um momento como esse em que estamos vivendo. A pandemia nos trouxe muitos desafios e um dos principais foi e está sendo nos manter vivo-as diante de todas as dificuldades, e para isso, tivemos que nos reinventar, portanto.

A princípio, enquanto movimento social, sofremos ataque por parte da prefeitura, que de uma certa forma tentou destruir o movimento de educação existente há mais de 30 anos. Foram retiradas a única ajuda de custo salarial que os educadores recebiam e a ajuda de custo dos lanches dos educandos em meio à pandemia. 

Diante disso, tivemos que travar uma luta acirrada na Câmara Municipal e no Judiciário para reverter esse ato criminoso. Por fim, ganhamos a causa na Justiça. No entanto, tudo aconteceu em um momento em que eu me sentia amedrontada. Acreditava que seria contaminada e morreria, pois o índice de contaminação e mortalidade em minha região era a mais alta e já não havia mais leitos nos hospitais.

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