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25 a 39 anos Ensino Superior Completo Mulher Trans Pará Parda

Queremos o expurgo da Covid-19

No primeiro ano da pandemia de Covid-19, eu passei algumas problemáticas relacionadas à moradia, já que eu residia no espaço cultural Das Liliths .

Eu sou Xan Marçall, uma kaaboka amazônida de Belém do Pará. Resido em Salvador há 15 anos. Sou travesti, filha de uma mulher branca carioca e de um pai preto e kaaboko da Amazônia.

Tenho 35 anos e vivo com HIV há 6 anos. Atuo como professora de Arte e Teatro na educação básica, trabalhando com crianças e adolescentes com métodos de criação colaborativa.

Faço parte de um coletivo de teatro em Salvador chamado Das Liliths, e juntes, realizamos um trabalho pioneiro nas artes, por meio da busca de histórias LGBTQIA+ ancestrais no processo de construção identitária do Brasil.

Ir para Salvador foi uma forma de tentar uma vida menos difícil do que a que vivia em Belém, sobretudo, porque a realidade amazônica, sendo eu, também, filha da periferia, me colocava frente a muitas adversidades.

O primeiro ano de Covid-19

Com o fechamento dos comércios e a não realização de atividades artísticas e culturais presenciais, não tivemos como gerar renda e fomos obrigadas a entregar o espaço. Assim, me deparei com alguns dilemas.

 Estive, inclusive, adoentada nesse período.

Encontramos uma nova moradia.

Nesta residência eu tive 19 dias de tranquilidade, até receber um aviso de evacuação emergencial do imóvel. A residência estava situada em uma região de alto risco de desabamento.

Fui para casa de um amigo que me hospedou durante 1 mês. Depois disso, audaciosamente, eu retornei para a casa que estava sob risco de desabamento e, passei a viver lá durante o ano de 2020 — acreditando que ela não ia desabar.

Não desabou!

Recebi cestas básicas, algo que me tranquilizou e me permitiu dar atenção a outros setores da minha vida. No entanto, o atendimento básico de saúde voltado à minha vivência positiva foi totalmente negligenciado.

HIV e negligência em meio à Covid-19

Minhas consultas essenciais foram interrompidas, como infectologista, clínico geral, dentista e exames ambulatoriais. Além disso, me prescreveram uma receita para eu poder pegar medicamentos e enfiar ‘goela baixo’, sem nenhum acompanhamento médico.

No fim de 2020, eu voltei para Belém para realizar um trabalho — a previsão era ficar apenas 15 dias e já vai completar 1 ano que estou no Pará.

Neste meio tempo, muitas coisas aconteceram, e o ano de 2021 foi envolto em problemas familiares e abandono de tratamento por falta de orientação. Tudo por conta de burocracias e falta de informação básica no sistema de saúde — que não é compartilhada.

Nesse turbilhão todo, pensei que ia surtar, embora, estivesse um pouco mais segura financeiramente, por estar na casa da minha família. Entretanto, os outros problemas ainda me alcançavam e afetavam.

Por fim, consegui resolver a minha situação e retomar meu tratamento — que teve intervalos de não adesão — e, então, fui compreendendo que não aderir ao tratamento é algo muito sério, mas que também não pode ser resumido a questões rasas, pois envolvem muitas camadas.

“Existem, sim, casos de pessoas que abandonam o tratamento porque não querem, e outras, que não conseguem aderir por falta de dinheiro, saúde mental, tempo de deslocamento, negligência no acompanhamento, informações obscuras e má qualidade de alimentação.”

HIV, Covid e outras questões…

O ano se encerra, e eu estou tomando as rédeas da minha cabeça, pensando que, nessa pandemia de Covid-19, além do expurgo desse vírus, queremos e reivindicamos também a cura da AIDS, que já tem 40 anos — e segue em curso.

Sigo, remediada, com uma quantidade química tóxica em meu organismo. Lutando, resistindo e esperançando por dias melhores.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Médio Incompleto Homem Cis Prta

De todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior

Praticamente, de todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior. No final de 2019, começamos a trabalhar na praia, alugando piscinas, e fomos morar juntos, dividindo aluguel com a minha mãe.

Chamo-me Heberti, tenho 25 anos, sou ator e estudante Teatro na UFBA.

Estou presente na militância partidária do movimento estudantil, trabalho com o Secretário de Cultura do PT, e sou Diretor da União Estadual dos Estudantes da Bahia.

Uma infância de relacionamentos difíceis

Meus pais se separaram quando eu tinha apenas 14 anos. Os desafios da minha história começam antes mesmo de eu nascer: um “golpe da barriga” ao contrário.

Meu pai descobriu que minha mãe pensava em se separar dele e, então, ele decidiu furar o preservativo, pois sabia que, em 1995, uma mulher preta, solteira e grávida, enfrentaria diversos dilemas.

Quando ela descobriu a gravidez, comunicou-lhe, que, rindo, disse que já sabia que isso aconteceria, que era proposital, — e deu certo. Ela se manteve casada com ele.

Nunca fui o filho favorito, desejado. Sempre fui uma criança afeminada e tímida.

Expressava meus sentimentos abertamente. A primeira violência homofóbica de que tenho lembrança de ter sofrido foi, ainda, aos 6 anos, quando, na rua, meu pai me agarrou pelo braço e gritou: “fale como homem”.

A partir desse dia me tornei ainda mais calado e atento a esse tipo de agressão. As outras crianças me batiam, me trancavam no banheiro da escola, e os adultos faziam “piadas”.

A escola e a descoberta da sorologia

Desenvolvi um trauma com a escola. O período do Ensino Médio foi mais tranquilo.

Descobri a minha sorologia em dezembro de 2016, enquanto participava de um evento com o Gapa.

Eu já realizava estudos sobre HIV/AIDS há cerca de um ano. Naquele dia, usando meu figurino de apresentação para aquela ocasião, “inventei” de fazer a testagem.

Deu positivo.

Peguei a minha mochila, saí do evento sem que ninguém visse, fiz o exame comprobatório e retornei. Lá, contei para uma colaboradora do Gapa de confiança.

O meu mundo só não caiu porque eu já tinha informações suficientes para entender que, aquele diagnóstico, não seria o meu fim.

Consegui resolver tudo muito rápido. Em uma semana eu já iniciara o tratamento, e estava tomando a medicação.

Fiz tudo sozinho, sem contar para ninguém. A primeira pessoa da minha família para quem contei foi a minha irmã mais nova, sendo minha cúmplice em tudo, porque eu precisava que alguém tivesse ciência caso, algum efeito colateral dos remédios, me acometesse.

O que também me manteve mais tranquilo, na época do descobrimento, foi o fato de estar namorando um garoto mais novo, com quem eu ainda não tinha me relacionado sexualmente.

 Após seis meses, eu já estava indetectável. O tratamento foi muito tranquilo.

Sempre fui extremamente agitado, do tipo de pessoa que acumula demandas e faz mil coisas simultaneamente. Passava o dia na rua e ficava extremamente sobrecarregado. Mas não eram apenas as demandas do cotidiano que me sugavam, — além de não ser tão simples lidar com o diagnóstico, pois havia uma rotina nova a ser incorporada.

Eu também perdia muita energia com as minhas relações interpessoais, principalmente as românticas.

Desgastes emocionais

Tive alguns parceiros muito problemáticos. Eu tinha muitas crises de ansiedade, crises depressivas. Cheguei a tentar suicídio, ingerindo diversos remédios, inclusive, os antirretrovirais.

Passei três dias internados, fazendo lavagem. Foi este o momento em que toda a minha família soube da minha sorologia.

Depois de 2017, as coisas se tornaram mais tranquilas, eu comecei a ter noção de que precisava equilibrar tudo o que eu fazia, porque seria impossível dar atenção a tudo que eu me propunha.

Não conseguiria abraçar o mundo.

Relacionamentos tóxicos

Em 2019, eu iniciei um relacionamento. Eu só decidi namorar essa pessoa, pois, eu era tratado como um deus na terra. Ele agia como se tivesse conquistado a pessoa mais perfeita do mundo.

Ninguém nunca havia me tratado assim. Eu passei uma boa parte da infância, sozinho, apanhando de outras crianças na rua e sofrendo humilhações do meu pai em casa. Ver alguém me tratar daquela forma me parecia interessante.

Estive preso em um relacionamento abusivo

Ele começou a me manipular, exigia que eu vivesse para ele, porque “ele vivia para mim”. Uma obsessão.

A manipulação era tamanha, que ele chegava a me chantagear para mantermos relações sexuais com outras pessoas, ao mesmo tempo.

Em meio ao caos, ele também se descobriu soropositivo. Como eu era obrigado a manter relações sexuais sem preservativo, eu fui reinfectado.

Ele já tinha até invadido o meu quarto com uma faca, após uma discussão.

Desenvolvi insônia.

Eu tinha medo de dormir, de ser atacado, chegava a passar mais de 48h acordado, e precisei passar a tomar medicamentos para dormir. E não apenas para dormir, mas para conter as crises de ansiedade, que foram se tornando mais comuns.

Não foi fácil, mas consegui me livrar desse relacionamento.

Eu fiquei o tempo todo em casa, com ele.

Quando consegui, enfim, me libertar, também senti uma necessidade muito grande de sair de casa. Por isso, acabei descumprindo a quarentena. Durante a pandemia, eu precisei encontrar formas de trabalhar, como a arte, e comecei a postar monólogos, nas redes sociais.

Com relação ao meu tratamento, moro perto do Hospital das Clínicas, onde eu sou acompanhado. Então, não enfrentei grandes dificuldades. Eles passaram a liberar remédios para dois, até três meses.

Em um relacionamento com a solitude

Hoje, eu vivo um novo relacionamento. Todas as minhas relações sempre foram acolhidas pela minha família, e me sinto privilegiado nesse aspecto. A minha relação com a minha mãe é ótima, mesmo sendo evangélica. Não existe distância entre nós.

Ainda estou me curando dos traumas.

Mas a minha relação com meu pai não é boa. Eu, nem sequer, o chamo “pai”, ou o considero como tal, — todos sabem que me refiro a ele quando digo “o outro”. Apenas cumpro as minhas obrigações sociais como “filho”.

Agora, que ele está extremamente doente, preciso ir ao hospital e ajudar. Eu vou, mas faço apenas o que preciso.

Eu espero que quando a pandemia acabar, eu possa voltar à rotina, retomando contatos com tudo e todos que deixei de acessar desde dezembro de 2019, — como as salas de ensaio, os teatros e as pessoas.

Enquanto isso não acontece, vou vivendo essa realidade com o maior aprendizado, até então, que tem sido lidar, não com a solidão, mas com a solitude.

 Aprendi a ficar comigo.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Superior Incompleto Indígena Mulher Trans

“O preço da comida subiu e eu não tinha condições financeiras para me sustentar”

Me chamo Yessica Andrés, tenho 25 anos, sou mulher trans e vivo com HIV desde meus 13 anos de idade. Sou natural de Buenos Aires,Argentina, e imigrante no Brasil há mais de 10 anos. 

Estou compartilhando o relato da minha história de vida no momento da pandemia pelo Covid-19. Gostaria de relatar como foi o impacto da notícia de estar vivendo em uma pandemia. O HIV está presente em minha vida há mais de uma década, porém jamais esperava viver essa fase de pandemia sem precedentes do Covid-19, um vírus letal. 

Eu tive medo, o pânico assolava minha rede de amizades e trabalho. Para mim, nunca foi fácil viver isolada, principalmente quando fui preparada para viver a vida e “dar a cara para bater”

Mulher trans, soropositiva: viver com HIV pra mim é estar em vulnerabilidade biológica

Por viver com HIV, eu fui expulsa de casa e cresci em abrigo no Brasil até ser maior de idade. Foram muitos “coquetéis” [remédios para conter o desenvolvimento do HIV no organismo] que consumi até chegar neste momento, em que tomo remédios em menos doses e que me ajudam a me manter viva e sem muitos efeitos colaterais. 

Viver com HIV pra mim é estar em vulnerabilidade biológica e me mantendo indetectável eu posso viver com qualidade, sempre com cuidado e atenção. Com HIV, eu já tive muitas doenças sexualmente transmissíveis e passei por tratamentos dolorosos.

Em fevereiro de 2020, eu estava trabalhando no carnaval e tive muito contato com o público geral. Na época, em Brasília/Distrito Federal, não se falava de Covid-19. A partir de março do mesmo ano, começou a efetivação de medidas enfrentamento ao novo vírus, especialmente com o isolamento social e fechamento de comércio e/ou mudanças na forma em que eram ofertados os serviços não essenciais, o que acarretou em desempregos, alterações no formato de ensino em escolas e faculdades, entre outras questões sociais.

No início da pandemia eu estava casada com um homem trans e havia muitos conflitos familiares e brigas, que se intensificaram por conta do isolamento social e da convivência mais próxima. Diante disso, eu me separei. No começo de 2021, eu me casei com um homem cisgênero soro discordante. Fizemos uma linda cerimônia de casamento civil

Pandemia: mudança de ciclos e efeitos colaterais da vacina

Nesse contexto, a pandemia afetou meus estudos. Eu sou estudante de enfermagem de nível superior e fui afastada do estágio por fazer parte do grupo de risco. O estágio na faculdade é feito em Prontos Socorros dos Hospitais Regionais de Brasília e, por isso, eu deveria atuar na linha de frente do Covid-19. Com isso, me mantive em casa, estudando de maneira remota.

Durante a pandemia, minha vida passou por vários ciclos. Alguns foram encerrados para dar lugar a outros. No início da pandemia eu estava casada com um homem trans e havia muitos conflitos familiares e brigas, que se intensificaram por conta do isolamento social e da convivência mais próxima. Diante disso, eu me separei. No começo de 2021, eu me casei com um homem cisgênero soro discordante. Fizemos uma linda cerimônia de casamento civil, em um ponto turístico de Brasília, o Museu Nacional de Brasília. 

No início de 2021, eu não tinha expectativa que tudo fosse voltar ao antigo normal, pré-pandemia. Mas veio a liberação das vacinas imunizantes para Covid-19. Tomei minha primeira dose da vacina em maio e tive vários efeitos colaterais como: febre, dor e muita tontura. Só me estabilizei depois de 21 dias. Depois disso, fiquei em casa, não saí e parei de trabalhar, pois tive medo de adoecer. 

Na época em que tomei a segunda dose da vacina, os problemas aumentaram: o preço da comida subiu e eu não tinha condições financeiras para me sustentar. 

Entrei neste coletivo para ajudar mulheres trans e demais público da comunidade LGBTQIAP+, especialmente em situação de vulnerabilidade

Tulipas do Cerrado: um movimento social de resistência contra opressões em relação às nossas vivências

Com essa situação muito difícil e diante da intensificação das vulnerabilidades, a organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado começou a entregar cestas básicas mensalmente e produtos de higiene pessoal, como forma de tentar reduzir a falta de alimento nas casas das pessoas acompanhadas pela instituição. 

Eu conheci a ONG antes da pandemia. Entrei neste coletivo para ajudar mulheres trans e demais público da comunidade LGBTQIAP+, especialmente em situação de vulnerabilidade. 

A ONG Tulipas do Cerrado forma um movimento social de resistência contra opressões em relação às nossas vivências. Ela é liderada por uma mulher muito emponderada e não deixou em nenhum momento de atender o público alvo (mulheres cis e trans, profissionais do sexo, população em situação de rua e pessoas usuárias de drogas). 

A ONG elaborou um projeto que oferece ajuda de custo e muitos cuidados, principalmente psicossocial às pessoas que estão nas ruas. É neste projeto que trabalho, atuando na área de redução de danos nas ruas.

Espero que a minha história possa levar até o coração das pessoas um pouco de luta feminina e resistência LGBTQIAP+  para que todes possam tomar os devidos cuidados e prevenções possíveis para que não passem por problemas sérios de saúde

Futuro: emprego, dinheiro e comida nas mesas a todes

Como expectativas para o futuro, desejo conquistar um bom emprego  por meio da minha qualificação profissional. Quero amizades que pratiquem o autocuidado e o cuidado com o próximo. Desejo dinheiro e comida nas mesas.  

Espero que a minha história possa levar até o coração das pessoas um pouco de luta feminina e resistência LGBTQIAP+  para que todes possam tomar os devidos cuidados e prevenções possíveis para que não passem por problemas sérios de saúde e na sociedade. 

Encerro aqui este relato agradecendo a oportunidade que tenho de ter aliados por perto e muito amor no coração. Com carinho, Yessica Andrés.