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40 a 59 anos Distrito Federal Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Não frequentei a escola Parda Raça/Cor

“Soube de um rapaz que perdeu seis pessoas da família”

Relato de Nilza Soares, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

No começo da pandemia foi difícil, porque a doença nos pegou de surpresa. Muitas pessoas se viram paralisadas diante da notícia.  No começo, no dia 5 de fevereiro, contraí a Covid. Passei por esse processo, assim como minhas irmãs. Meus pais, graças a Deus, não pegaram a doença, pelo fato de eles estarem afastados e não precisarem sair para trabalhar. A gente que trabalha fora, precisa se deslocar de um local para outro. Dessa forma, acabei contraindo o vírus.

Foi um processo difícil de quinze dias que, realmente, não tem explicação. Mas, graças a Deus, a gente conseguiu passar. Meus filhos não contraíram a Covid, acredito que nem o meu esposo tenha pego, porque, segundo os médicos, se pegou não foi o caso de ser internado. Neste caso, o organismo dele teria reagido muito bem. 

Neste momento, milhares de pessoas no Brasil e no mundo inteiro perderam familiares. Ainda bem, não perdemos nenhum familiar ou pessoas conhecidas. Nada que a gente esteja sabendo até agora. Aliás, perdemos a esposa de um primo meu, muito jovem. Ela faleceu aos 26 anos. Graças a Deus, todos que estão aqui já passaram por esse processo. Algumas das minhas irmãs também contraíram, por trabalharem fora. 

“Tem dias que parece que vou paralisar”

Quando tudo estava um caos, a gente tinha que manter a calma, ter paciência e tranquilidade, porque tudo passa. De um jeito ou de outro, tudo vai passar. Eu fiquei com sequelas após a Covid: dores no corpo, começam nas costas e vão se movimentando. Tem dias que parece que vou paralisar. É horrível. Só sabe quem já passou por esse processo.

Voltei a trabalhar normalmente, e minha expectativa é que virão dias melhores pela frente. Se cheguei até aqui, com certeza é porque virão dias melhores. Essa é minha expectativa. Eu sobrevivi a uma doença pela qual muitas pessoas não conseguiram passar. Quantas pessoas próximas perderam parentes, entes queridos, ou até a família inteira? 

Teve um caso  de uma pessoa que trabalha com a gente. Ela é secretária e perdeu o tio, a tia, dois sobrinhos. Eles foram para Maceió e acabaram sendo internados. Dois dias depois, foram entubados e não retornaram.  Soube do caso de outro rapaz que perdeu seis pessoas da mesma família.  

“Minha família me deu forças nesses tempos sombrios”

Então, quando a gente ouve tudo isso que acontece ao nosso redor, e sabe que estamos passando pelo processo, é importante confiar em Deus e acreditar que tudo vai ficar bem. É manter a serenidade, a calma, porque tudo é um processo. Um processo no qual a gente tá vivendo, e por ser algo que é geral, que o mundo inteiro está passando, não adianta a gente entrar em pânico, a gente tem que manter a calma. E acreditar que se há países como a China, a Itália, e outros que se recuperaram, onde a sociedade já leva uma vida normal, para a gente aqui no Brasil não será diferente.  

Essa doença trouxe um grande caos, porque os preços dos alimentos e do combustível aumentaram muito. Muitas pessoas haviam parado de trabalhar. Muitas fábricas, empresas e lojas foram fechadas. Atualmente, as coisas já estão normalizando. Para o mês de novembro está previsto a gente não usar mais máscaras, mesmo assim a gente tem restrições. É que a pandemia não acabou. O vírus ainda está aí e precisamos nos precaver, sempre mantendo a calma.

Quando se tem uma crença, uma fé, ajuda bastante a passar por essa situação. Conto também com a ajuda e colaboração de meus filhos, esposo, netos, porque eles não saíram de casa durante a pandemia. Lógico, tive todos os cuidados necessários também. Ficava em meu quarto e a cada semana, meus filhos e netos faziam os exames para detecção da Covid. Os testes sempre atestavam negativo. Dessa forma , fiquei mais tranquila com a família por perto para a gente superar essa barra juntos. Assim é mais fácil.

   

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40 a 59 anos Distrito Federal Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Não frequentei a escola Prta Raça/Cor

“Não tive Covid, mas perdi amigas, amigos e vizinhos para a doença”

Relato de Eliete dos Santos, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Não tive Covid, nem minha família, mas eu perdi muitos amigos, amigas, vizinhos que morreram com Covid, e a gente sofreu muito porque essa doença é um caso sério. Só Deus que pode explicar pra gente. O sofrimento foi muito e para muitas pessoas. Foram muitas perdas e em muitos países no mundo inteiro. Então, não é porque eu não tive Covid, nem minha família, que a gente não sofreu. Eu sofri muito. 

Sou nordestina de Bom Jesus do Gurguéia, no Piauí. Vim para cá trabalhar para os outros. Minha mãe me deixou aqui para trabalhar na casa dos outros. Naquele tempo, era tempo de você ganhar roupa, ganhar calçados,  comida, e trabalhar para as pessoas. Eu vim muito nova. 

O que mais me marcou na pandemia foi ver o sofrimento das pessoas e estar com uma pessoa em um dia, e no outro receber a notícia de que ela estava internada. Quando menos esperava, ficava sabendo da morte da pessoa. De quê? Covid. Então, isso me marcou muito, tanto é que eu não gosto nem de falar porque já me dói o coração, pois sou uma pessoa como açúcar, tudo me desmancha. Essa doença é muito ruim, só Deus quem explica porque ela veio, porque está espalhada no mundo inteiro.

“Estou aprendendo a ler e escrever”

Atualmente, estou feliz porque, graças a Deus, encontrei uma associação, para aprender a ler. Pedi à minha tia para que eu aprendesse a ler e escrever. Porque muitos falam que não sei ler e não entendo nada, que pego os ônibus errados. Quando penso que estou chegando à Brasília, estou chegando à Planaltina. Quando penso que estou chegando em um lugar, estou chegando em outro. Mas, hoje, estou feliz, porque aprendi a fazer meu nome, e nem isso eu sabia.

Graças a Deus tenho o apoio das meninas da associação, da minha tia, da minha professora, que amo de coração, porque ela tem paciência comigo, para me explicar, para me entender. Graças à Deus,  eu quero, eu posso e eu sou. Agora, sou empresária. No entanto, muita gente olhava para mim e pensava: coitadinha, analfabeta e se diz empresária. Então, eu perguntei se elas já viram uma empresária de maquiagem ser analfabeta. As meninas disseram que não, e eu disse que eu era uma. Eu quero, eu posso e eu sou. 

Tem gente apostando nos meus sonhos

A única riqueza que eu tenho é aquele lá de cima. Sou feliz, porque tenho o senhor Jesus comigo, com nós, com todos. Sou maravilhada com o senhor Jesus. Para mim não existe tristeza. E sei, tem gente apostando nos meus sonhos, tem gente apostando em mim. Pois, Lula não sabia ler. Ele veio a aprender depois que ele foi Presidente da República, porque pagou professor particular. Por que eu não posso aprender, não posso ser uma empresária? 

Primeiro vem a saúde, as forças, a força que Deus dá todos os dias para nós vencermos, e ter as mãozinhas para trabalhar. E a primeira vez que vi na minha vida, a tia me falou que eu tinha sido escolhida para maquiar alguém. Então fiquei surpresa, e a professora me respondeu dizendo que estava no curso para aprender a maquiar alguém.

Estou muito feliz. Não tenho explicação de tudo. Não sei ler, não tenho cartão,  não tenho renda, não quero receber benefício do governo, eu quero conseguir as coisas com minhas mãos, as que Deus me deu, pois eu aprendi, já sou uma empresária.  Eu já sou uma empresária e vou mostrar para muitos como uma analfabeta pode. 

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“Finalmente, o poema que escrevi em 2016 se deixou reescrever”

Chove restos de noite
No rosto cinza da manhã
E a grande máquina estrangula o Xingú
Meus olhos abrem a custo
De desgosto
Ipês apagam sóis amarelos, roxos
Penso na volta grande do rio
Como numa canoa voadora
O menino Juruna pensaria não estivesse barrada a infância
Chove e a floresta povoa de fantasmas essa manhã
Mais dura que a piçarra amontoada na margem morta do rio estrangulado.

Paulo Vieira, Rio Xingu, novembro do ano da peste.

Sobre o monstro e a peste

Em 2016, recém-chegado à Altamira para o emprego de professor de literatura para jovens que vivem nos rios e nas florestas da região, deparei com a Usina que eu apenas conhecia pelas denúncias, sempre muito bem embasadas, no Jornal Pessoal do meu amigo Lúcio Flávio Pinto.

Escrevi o poema “no dia que vi o monstro” de chofre quando vi, naquela manhã chuvosa, a barragem, primeiro pela janela do carro e depois pelo retrovisor. Mas o poema ainda não me contentava, lutei com ele a luta vã, como queria Drummond, e nada. Os anos se passaram e abandonei a luta, derrotado.

Fenecendo em meio a perdas pessoais

Quando a peste chegou à Altamira, em março de 2020, pude me trancafiar em casa, e aqui vivi uma outra face da doença, aquela de quem não se contamina com o vírus mas vai definhando um pouco a cada dia ao ver pelas telas o país morrer física e simbolicamente.

Escrever poesia vai por um caminho tortuoso, nada que se consiga explicar com retórica. E não existe solução fácil, nem hora perfeita. Assim aconteceu.

Eu, aqui fenecendo já há mais de meio ano, perdido em meio a tantas perdas pessoais, numa recente manhã, ao ver que Daniela me pedia gentilmente um poema para este site, lembrei daquele de 2016, procurei e achei os versos malcriados e, finalmente, o poema se deixou reescrever.