Em meados de agosto de 2021, após mais de um ano de pandemia, em um Hospital de Campanha referência em atendimento à Covid-19, um menino de 17 anos deu entrada no hospital em estado grave.
Durante todo o período de internamento, as equipes assistenciais trabalhavam de maneira triste.
Estavam fragilizadas pela mãe, que sofria, tristes pelo jovem, entubado com poucas chances de sobrevida, tristes pela pouca estrutura psíquica que essa família tinha para lidar com a situação e, desolados pelo agravamento da pandemia de Covid-19.
Acolhimento em meio à Covid-19
Em minha função como psicóloga, acolhia a família, e tentava auxiliar os pais a criarem estratégias internas para lidar com o sofrimento.
Ao final da terceira semana, o quadro clínico de Covid-19 se agravou, fazendo com que a equipe médica tivesse que alertar à família. Naquelas condições, haveria poucas chances para o paciente resistir.
Infelizmente e por alguma razão, a comunicação emitida sobre risco iminente do paciente não resistir, não chegou à família, que acabou por realizar a visita um tempo depois do comunicado.
Por coincidência, a chegada à recepção para comunicar a visita acabou acontecendo no mesmo momento em que o jovem evoluiu para óbito, devido ao agravamento da pandemia.
Não deu tempo. Ao serem direcionados para a sala de acolhimento, a angústia se instalou por todo o hospital.
“Por favor, não façam isso comigo”
Assim que entrei na sala, direcionei-me para o lado da mãe, que estava acompanhada da assistente social e do médico.
A mãe estava com os olhos marejados. Dizia em um tom de súplica: “por favor, não façam isso comigo”.
O médico iniciou o seu discurso retomando as últimas 24h e finaliza sua fala comunicando o falecimento aos pais.
“A dor da perda não tinha uma forma exata de ser expressada, eram gritos, olhares, lágrimas e pedidos de que disséssemos que era mentira.”
Mais uma vítima da Covid-19
Mais de 1 hora se passou até que conseguimos orientar os próximos passos e encaminhar a mãe ao atendimento em uma unidade básica de saúde.
Ao fechar a porta, lágrimas da equipe se despencaram; sofrimento pela dor da mãe; desgaste emocional após o atendimento de tantas histórias semelhantes.
A morte não pede licença, não avisa, não tem piedade, não espera uma expressão de afeto e nem um último adeus, ela aparece e muda toda uma história. Aproveitemos o hoje, o agora
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Sim, momentos trágicos, mas também de resiliência e de experiências nunca vividas.
Amizades eternizadas, projetos iniciados e abortados, de lágrimas, sorrisos mascarados, apertos de mãos escondidos e tapinhas nas costas, quando a vontade era dar um baita abraço naquele pai que perdeu o filho, naquela colega de trabalho exausta, ou nos palhaços que tiveram que se ausentar e sobre os quais as crianças perguntavam repetidamente.
Este desabafo é apenas para abrir um diálogo sobre nós, profissionais da saúde, que tivemos nossas vidas reviradas, esculhambadas e arriscadas diariamente durante esse momento histórico.
Hoje, estamos mais esperançosos com a vitória da ciência.
O cuidado continua, o trabalho também. Por isso, decidi dar uma oportunidade ao leitor curioso (modesta, eu?) que, durante esse período, ouviu e viu tudo de fora de um hospital. E dar um raio de esperança aos que não tiveram a mesma sorte.
Aos que estiveram internados como pacientes, aos que sofreram feridas que ainda não estão cicatrizadas, mas que podem se interessar pelo lado humano, pela mão-de-obra, pelo funcionalismo, pelo profissional que protagonizou (e ainda se encontra na linha de frente), de lados opostos ou não, na luta contra a Covid-19.
“Meu querido paciente obeso”
Sou fisioterapeuta do Hospital Infantil Waldemar Monastier (Campo Largo-PR), e minha vida virou de cabeça para baixo. Os filhos em casa (aulas on-line, sério isso?), sem ajuda da família ou de amigos pois, inicialmente, o medo de transmissão gerou um isolamento social intenso e, ainda por cima, trabalhando na linha de frente.
Maridão no pós-operatório de cirurgia de reconstrução da articulação interfalangeana da mão (essa é outra história) trabalhando de home office, falta d’água, máquina de lavar quebrada, e blá blá blá. Tudo que qualquer mulher adoraria, só que não.
A resiliência se faz necessária
Pelo menos não estava desempregada. Isso foi um alento ao qual tentei me agarrar inicialmente, porque a vontade de chorar era avassaladora. Bem, no hospital, os casos começaram a surgir lentamente, mas os protocolos foram criados e nós nos esforçamos muito para aprender a colocar em prática todas as mudanças que o vírus trouxe na maneira de atender, nos quartos, enfermarias e nas UTIs.
A precaução beirava quase ao absurdo que nunca usei tanto álcool em minha vida (minha intenção foi gerar uma interpretação dúbia!). Os EPIs (equipamentos de proteção individual) estavam escassos na UTI, pois todos resolveram ler no Google que a máscara N95 era a única que prevenia contra a Covid-19, além de a matéria-prima vir da China, país que ainda estava com o surto em larga escala.
Então, entre idas e vindas o atendi: G.B.N., nove anos. Um rapazinho obeso, prostrado, em máscara de oxigênio, que estava internado na enfermaria.
Um cara peculiar?
Ele era peculiar, parecia apresentar um leve atraso no desenvolvimento cognitivo e respirava com dificuldade, mas era uma simpatia. Usei toda a paramentação necessária conforme o protocolo, mas tinha certeza que era uma crise de asma típica.
Apesar de ter esse pressentimento, recolhi-me à minha insignificância e continuei com meus atendimentos até que, em um belo dia, encontro outro paciente em seu quarto.
Toda alegre, corro para perguntar aos colegas se ele havia recebido alta hospitalar, mas meu desespero foi ouvir que ele fora transferido para a UTI pediátrica devido ao agravamento do quadro. Sim, era Covid-19. Estava entubado, apresentando alterações respiratórias e cardíacas graves.
Nessas horas nós nos confrontamos com várias questões morais e éticas, mas canalizei minha energia na possibilidade de que ele sairia dessa. Eu disse à mãe dele, no último atendimento, que ele estava melhorando. O que foi que eu fiz? Após dias na UTI, ele melhorou, e encontrei-o na enfermaria.
Ele estava muito animado, incrivelmente falante e um pouco confuso devido à medicação, porém, ainda ofegante, perguntou várias vezes o meu nome. Realizamos uma partida de futebol no quarto, com uma bexiga de luva improvisada.
Amparo, fé, e resiliência
Lembrei-me dos ensinamentos do Grupo Nariz Solidário, que trouxe sempre ludicidade e alegria aos nossos corredores, tendo que se reinventar em meio ao caos, deixando seus vídeos ali na TV, leito a leito.
O olhar de satisfação da mãe era excepcional e fiquei muito contente ao vê-lo respirando bem em “ar ambiente”. Ao fim do atendimento, após perguntar novamente o meu nome, ele me pediu um abraço.
Fiquei paralisada, toda paramentada, vendo aquele cara gentil e sorridente parado na minha frente, ainda no período de precaução, e não tive dúvidas. Abracei-o com força, despedi-me e segui meus atendimentos, conforme o protocolo.
Quando o veria de novo?
“Um carinho precavido em meio a pandemia”
Somos capazes de fazer a diferença na vida dos que nos rodeiam quando nos desarmamos do egocentrismo, nos colocando no lugar do outro. Com um pequeno gesto, um olhar carinhoso, uma postura cordial, temos a chance de ser mais do que apenas coadjuvante de histórias remotas, para nos tornarmos sujeitos atuantes de novos momentos.
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Eu sou a Ana Pereira e tenho 26 anos. Eu sou da etnia Wapichana e nasci na Guiana Inglesa. Vim ao Brasil quando tinha cinco anos com minha mãe, depois que meu pai morreu, em busca de uma vida melhor.
Eu estudei na Tabalascada, onde aprendi a falar português, já que eu falava inglês. Hoje em dia eu falo português, mas esqueci o ingles, é engraçado.
Quando a pandemia chegou, eu já estava desempregada há três ano e ficou muito mais difícil encontrar trabalho. Com a pandemia, eu não conseguia arranjar emprego por não poder sair. Isso prejudicou a minha vida e a dos meus filhos.Tudo parou: trabalho, estudos.
Fiz faxina, fiz outros trabalhos pontuais para sobreviver. Meu marido pegou Covid e ficou desempregado. Ninguém queria contratá-lo por medo de se contagiar e então a situação ficou ainda mais difícil.
O que nos ajudou foi a alimentação que a Escola distribuiu. Não tinha tudo o que queríamos, mas não faltou o pão de cada dia na mesa.
Momento crítico
O pior dia da pandemia foi quando minha sogra morreu. Ela era uma segunda mãe para mim. Era ela que me ajudava com tudo. Ela ajudava todas as pessoas que chegavam pedindo ajuda em sua casa. Ela era muito guerreira.
Nunca pensei que um dia pudesse passar por isso. Minha sogra era uma ótima pessoa. Ela sempre falava para eu não desistir de procurar emprego e morreu no mesmo dia em que eu consegui um trabalho. Foi muito difícil. Ela não estava com a gente para comemorar.
Eu e o meu marido estamos tentando levar a vida, já que minha sogra sempre dizia que a vida continua, que não podemos parar. E é por isso que eu vou tomar a segunda dose da vacina e falo para todo mundo se vacinar. Afinal, temos que nos prevenir!
Relato de Ana Pereira, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Eu me chamo Renata, tenho 37 anos e sou mulher trans. Sou natural do Tocantins, trabalho como cabeleireira, faxineira e realizo outras atividades para complementar a renda. Também sou estudante de enfermagem, nível médio.
Antes da pandemia, eu trabalhava como profissional do sexo. Porém, durante a pandemia, encontrei dificuldades, já que vários clientes “desapareceram”, o que me prejudicou bastante.
Esse cenário me fez começar a estudar o curso técnico em enfermagem para futuramente ter um complemento na minha profissão. Tenho vontade de fazer faculdade de estética, mas atualmente sobrevivo de ajuda com doações de alimentos e realizando trabalhos como diarista, cabeleireira ou levando pets para passear. Essa é a forma que encontrei para conseguir melhorar essa fase ruim e poder me sustentar, pagar aluguel e outras contas, bem como cuidar dos meus cachorros.
Com Covid-19 e sem contar com ajuda de ninguém
Por morar sozinha, tive a pior experiência quando peguei Covid-19, em setembro de 2021. Eu tive que “me virar”, já que pude contar com a ajuda de ninguém próximo, nem mesmo para de vizinho. Tive vários sintomas como febre, dor de cabeça, dores no corpo inteiro, diarreia, vômitos, tontura e calafrios. Esses sintomas duraram três dias.
Nesse período, fui a uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Lá fui bem recebida pela equipe de saúde, especialmente pela médica que me acolheu e me acalmou dizendo que ficaria tudo bem. Ela receitou os remédios e eu retornei para casa.
Após alguns dias, eu voltei à UBS consulta, pois estava com alguns desconfortos respiratórios. Com isso, a médica pediu um exame de raio-x do meu pulmão e constatou que não havia alterações, que “meus pulmões estavam limpos”.
Eu tive muito medo, mesmo com as duas doses da vacina. Nesse período, fiquei duas semanas sem trabalhar, mas já estou na ativa novamente. Fico feliz por estar viva e também por não ter perdido ninguém da minha família por Covid-19. Ter pego o vírus me ensinou que tenho que me cuidar mais e colocar minha saúde em primeiro lugar.
Eu sou Gilmara, mais conhecida como Juma, apelido que ao longo dos anos se transformou meu nome social. E é assim que prefiro ser chamada.
Minha história não tem nada a ver com as narrativas mostradas em novelas ou em contos de literatura. Ela vem imbuída de uma realidade incrivelmente assustadora e cativante. Como qualquer criança, também tinha meus sonhos e fantasias. Mas muito cedo, mais precisamente com dez anos, tive de lidar com situações demasiadas complexas para uma criança, como por exemplo o falecimento de minha mãe, que aconteceu durante uma de suas saídas solitárias de Alexânia, local onde morava, próximo a Brasília, cidade que ainda é meu lar.
Passei por uma série de violações de direitos por parte do Estado e tudo se apresentava como um grande obstáculo à minha frente. A mim eram negados os direitos fundamentais: à moradia, à uma boa alimentação, ao lazer, à infância, à segurança, à saúde
Situação de rua
Desde muito cedo tive que aprender a cuidar de mim e, por mais nova que fosse, já entendia a importância de continuar os estudos. Desde aquela época, eu tive a rua como lar e isso durou muitos anos. Ainda em situação de rua, frequentei a escola regularmente até conseguir completar a sexta série do ensino fundamental. Eu passava o dia na instituição, com minha pequena bolsa na qual carregava cadernos, livros, diversos lápis e objetos pessoais, meu verdadeiro “estojo de identidades”.
Morar na rua não era nada fácil, mas eu me reinventava a cada dia e posso dizer que resistência é o meu sobrenome. Passei por uma série de violações de direitos por parte do Estado e tudo se apresentava como um grande obstáculo à minha frente. A mim eram negados os direitos fundamentais: à moradia, à uma boa alimentação, ao lazer, à infância, à segurança, à saúde. Na rua, entendi o motivo pelo qual o uso de drogas se faz tão presente e todas as dores que esse uso esconde.
Posso dizer que ela [minha filha] tem sete pais, pois naquela noite chuvosa sete homens forçaram o livre acesso ao meu corpo. Na época eu tinha apenas 13 anos de idade e os homens eram policiais. Pessoas que, teoricamente, deveriam me proteger, eram os meus algozes
Uma filha, reunião de tudo que era mais bonito e sincero
Neste contexto de violações, tive minha filha, que reunia tudo de mais bonito e sincero que eu tinha dentro de mim. Posso dizer que ela tem sete pais, pois naquela noite chuvosa sete homens forçaram o livre acesso ao meu corpo. Na época eu tinha apenas 13 anos de idade e os homens eram policiais. Pessoas que, teoricamente, deveriam me proteger, eram os meus algozes.
No ímpeto de querer propiciar um melhor ambiente para o desenvolvimento de minha filha, deixei-a com uma conhecida, com a qual sabia que poderia ofertar um contexto melhor para seu crescimento. Essa foi uma entre tantas decisões difíceis que se materializaram em meu caminho.
Conheci o trabalho sexual e com ele todo o glamour de se sentir conhecida e bem remunerada. Mas esse período também culminou em uma face mais complexa do uso de drogas. Já estava estabelecendo uma relação problemática com esse consumo e a violência estava cada vez mais presente no meu cotidiano e na rua.
Justamente neste momento fui presa e digo que, no meu caso, esse fato serviu para despertar em mim a vontade efetiva de mudança. Não existia nada naquele local que me empoderava e eu precisava sair dali, voltar para minha filha.
Foi pensando neste período de minha história que sinto novamente a necessidade de aprofundar meus conhecimentos por meio do ensino superior e vejo neste sonho uma excelente oportunidade para minimizar as vulnerabilidades que passei
Recomeço: trabalho com redução de danos
Ao sair do sistema prisional e, com o passar dos meses, me descobri redutora de danos, profissão que levo comigo até hoje, dezesseis anos depois. A Redução de Danos pegou minha história de vida, experiência, liderança, e sobretudo, a minha vivência com as drogas e fez daquilo um instrumento de trabalho.
A partir daí comecei a me dedicar ao trabalho com pessoas que fazem uso de drogas. Eu exerço esse trabalho por amor e quero me aprofundar cada vez mais nele. Já com esta grande descoberta de profissão, veio a necessidade de terminar os estudos e consegui. Foi pensando neste período de minha história, que sinto novamente a necessidade de aprofundar meus conhecimentos por meio do ensino superior e vejo neste sonho uma excelente oportunidade para minimizar as vulnerabilidades que passei e uma chance de dar continuidade a outros sonhos.
Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade.(…) Eu não consigo segurar minhas lágrimas e fico agoniada ao pensar em minhas companheiras que estão em situação de rua
Chegada da pandemia e a depressão
Eu sou mãe, avó, ex moradora de rua e ex usuária de drogas. Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade. Passei a usar antidepressivos. Eu não consigo segurar minhas lágrimas e fico agoniada ao pensar em minhas companheiras que estão em situação de rua, com as mulheres que são provedoras de lares tendo que se colocar nas ruas para manter sua sobrevivência.
Eu, em momento algum, pude me colocar em isolamento pois há um grupo grande de mulheres que são acolhidas por mim. E, apesar de estar nos cuidando desse público, tive a sorte de não me contaminar com o Covid-19. Porém, é grande o sofrimento ao ver algumas de nossas entes queridas morrerem por causa dessa pandemia.
Me nego a ocupar o espaço marginalizado que a sociedade cotidianamente me coloca
Retrato da resistência e da ressignificação de vida
Diante de tudo que aconteceu em minha história, vejo o quão difícil foi chegar aqui, mas não me vitimizo em qualquer momento. Me nego a ocupar o espaço marginalizado que a sociedade cotidianamente me coloca e busco construir um mundo melhor tanto para mim, minha filha e todos os companheiros de rua, tão silenciados pela mediocridade das políticas públicas. Vou seguir realizando meu trabalho na esperança de dias melhores.
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