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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta

Foi assim, nessa fase, que me deparei com a pandemia

Eu tenho 23 anos. Curso Bacharelado Interdisciplinar em Artes desde 2017 e teria me formado em 2020, se não fosse a pandemia. Passei a maior parte da minha vida em Cajazeiras.

Meus pais são separados. Minha mãe criou a mim e meu irmão. Ela é empregada doméstica e sempre trabalhou em casas situadas em bairro considerados nobres, como Rio Vermelho e Barra, para onde eu ia com ela — já que ela me matriculou em colégios públicos próximos à área em que trabalhava. Assim, saíamos juntos, e, depois que a minha aula terminava, eu ficava com ela até que fosse liberada do serviço e voltássemos para casa.

Sempre existiram algumas questões que me afastavam da minha família. Meu pai, ausente, morando em outra cidade, só nos ajudava quando conseguia algum trabalho. Meu irmão, usuário de drogas, se envolveu com o tráfico e chegou a ser preso. Minha mãe conseguiu um advogado para libertá-lo. Questões como essas geraram um afastamento familiar. Mas minha mãe sempre trabalhou para colocar comida na mesa e nos dar o mínimo.

Os abismos da realidade

Éramos vulneráveis e nem tínhamos essa consciência. O mais doido de tudo isso era que enquanto eu vivenciava essa realidade em casa — e convivia nos colégios com colegas, na maioria pretos, como eu, que vinham de um contexto similar —, na casa dos patrões da minha mãe eu percebia outra categoria de arranjo familiar. Era completamente desigual. Eu experienciava um “não-lugar”. Não me sentia pertencente a nenhum dos mundos.

Em Cajazeiras ou no colégio, eu tinha pouco tempo, e no trabalho da minha mãe, eu sabia que não fazia parte daquele lugar. Esses trânsitos me impediam de criar vínculos e relações estáveis, duradouras. Eu era bem introvertido.

Sou gay e minha mãe age com indiferença, como se não soubesse.

Sempre fui a pessoa mais escura da minha família. Eu sabia que muito do que eu passava na vida era, primeiro, por conta da minha cor, e também, por perceberem minha sexualidade dissidente.

A desigualdade é anterior à pandemia

Eu ainda era uma criança quando já me preocupava em, quando comprar o pão para a família que a minha mãe trabalhava, não parecer ou ser confundido com um delinquente, por exemplo. Eu pensava desde as roupas que usaria, que não estivessem minimamente rasgadas, até a maneira como andaria. A neta da patroa da minha mãe tinha a minha idade e era com ela (e com os amigos e familiares dela) que eu tinha algum tempo para brincar, de vez em quando. E, obviamente, existia um contraste gritante… sofrendo violências que, pela pouca idade, eu nem sequer percebia na época, sendo excluído de algumas brincadeiras.

Era um recorte de classe, mas que, principalmente no Brasil, está intrinsecamente ligado ao recorte de raça. O subconsciente e inconsciente coletivo de que preto é pobre e branco é rico. E as pessoas ao meu redor acreditavam que eu deveria enxergar naquele lugar uma oportunidade de transformação — apesar das violências. Eu era visto como um exemplo, principalmente porque, comparado ao meu irmão — que apontavam como alguém que “deu errado” — eu era alguém em que se podia depositar alguma confiança de que “daria certo”.

Isso era extremamente incômodo para mim, porque eu não queria ocupar esse lugar de expectativas. Fiz o possível para me esquivar dessa perspectiva. Até por tentar enxergar meu irmão de forma mais humana e, sem desresponsabilizar ele, entender os contextos e perceber quais as responsabilidades dele, do Estado, da família, da sociedade. Enquanto isso, fui tomando consciência, cada vez mais, sobre a minha raça e sexualidade.

A chegada da pandemia

Por conta da universidade, primeiro, fui morar com um casal de amigos, no Alto das Pombas. Envolvi-me bastante com o movimento estudantil, e essa foi a maior oportunidade de fazer coisas novas, que eu tinha vontade. Além disso, a fazer parte de um coletivo de teatro, e nele, eu estava atuando. Em 2019, eu sentia que a minha vida estava fluindo bem e eu estava dando conta de tudo, até comecei um namoro.

Quando ainda só ouvíamos os rumores e não sabíamos a dimensão de tudo que viveríamos, fomos vivendo normalmente e deixando para ver como seria quando chegasse aqui. Até aí, eu estava muito conectado às pessoas.

A cada passo que eu dava no campus da universidade, eu falava com alguém. Eram muitas relações. O distanciamento social me impactou. E os amigos, com quem eu morava viajaram… passei 7 meses sozinho, recebendo visitas apenas do meu namorado. Foi uma época meio louca, porque era preciso se preparar tecnologicamente, porque era através da tecnologia que se manteriam as relações.

Houve muita briga no meu curso por questões administrativas e afins. Eu temi muito por minha mãe. Eu não estava com ela, mas ela ainda trabalhava na casa das pessoas de classe média. Ela chegou a ficar um tempo parada, mas depois retornou. E não tem como não pontuar que a primeira pessoa a morrer por Covid no Brasil foi uma empregada doméstica. Ela ficou bem.

Não perdi familiares, mas vizinhos e conhecidos faleceram.

Uma possível esperança para o pós-pandemia?

O que mais me dava medo dessa pandemia era essa ideia de uma “coisa invisível” que, em algum momento, poderia pegar em mim. E aí tinha toda aquela paranoia, limpando tudo, separando as roupas que eram usadas e tudo mais. Hoje eu avalio que foi ótimo estar só — não completamente só, porque, como disse, via meu namorado aos fins de semana. Mas penso que se eu estivesse com mais alguém em casa… acredito que ficaria louco.

A pior parte da pandemia era estar em espaços virtuais nos quais eu não me sentia contemplado, não tinha tanto acesso e o medo dessa ameaça iminente, o que me gerou crises de ansiedade. Fiquei bloqueado para o choro, as lágrimas não vinham.

E um momento muito difícil foi a morte do meu namorado — que não foi por Covid — sobre a qual eu ainda nem consigo elaborar.

A sensação que eu tenho é de que a vida parou. Tudo ficou estagnado em algum lugar, paralisado, esperando o momento de reiniciar. Agora, espero que eu consiga retomar tudo de onde parei. Quero muito conseguir tirar do passado para o presente tudo o que eu iniciei, e precisei pausar. Mas, por enquanto, tanto individual quanto coletivamente, não existe alegria, estamos longe de estar bem.

 Espero sairmos dessa preparados e com forças para encarar coisas piores.

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“A invisibilidade é um lugar feito por uma sociedade capitalista e racista”

A invisibilidade não é um poder dos super heróis. A invisibilidade é o lugar que uma sociedade capitalista e racista, coloca os seus. Seu Ubirajara estava na rua do Casa Viva, quando avistou algumas pessoas com cestas básicas. Seu Ubirajara foi em casa, colocou a sua melhor roupa e foi pedir a sua cesta básica. Ele disse assim: vim buscar a minha cesta!  

Parecia uma criança que se arruma para ir a uma festa e pegar sua sacola de docinhos. Respondi: “o senhor é avô de algum aluno do projeto? Pois as cestas são distribuídas para os inscritos nesta lista.” Ele respondeu: “mas, por favor, olhe para este velho que está muito necessitado.”

Assim como seu Ubirajara, muitos outros estão dentro de casa, sem alimento, sem quem cuide, sem quem os apoie, desse modo. 

A invisibilidade é um plano concebido desde a colonização

Com a pandemia da Covid-19, acentuaram–se as desigualdades sociais do nosso país, empurrando cada vez mais seus cidadãos para as margens dos direitos e privilégios. Nesta sociedade, a invisibilidade é determinada pelo endereço, CEP, origem e cor da pele. Seguindo os paradigmas dado à essas condições, que associadas ao nível de escolaridade, idade, condição física e mental, os colocam em um lugar do esquecimento e coisificação, portanto. 

Um plano concebido desde a colonização e acirrado nesses dias de pandemia, o desprezo, distanciamento, desemprego, a fome e o adoecimento estão presente no cotidiano de muitos brasileiros. 

O invisível dos invisíveis, estão nas ruas em busca de um mínimo de dignidade para as suas vidas. A solidariedade dos guetos e favelas é que promove ainda a esperança nos corações. No final da distribuição, chamamos o Seu Ubirajara que foi feliz da vida com o alimento para a sua casa.  

Os moradores de favela são invisíveis ao sistema! Mas dentro da favela, o invisível dos invisíveis tem nome, tem endereço e é visível! 

Vítima da invisibilidade

Este relato se deu em junho de 2020 em plena pandemia. Histórias não deixavam de chegar com sofrimentos e dores do abandono e desespero. Hoje, dezembro de 2020, estou cansada ao ver que os números de infectados e de mortos beiram ao de início da pandemia do Brasil em maio. 

Chega a triste notícia da morte do seu Ubirajara. 

Como sempre sozinho,  foi descoberto pela vizinha que sentiu a falta de ver o basculante do pequeno cômodo se abrir. Triste! Seu corpo ficou inerte dois dias dentro daquele quarto quente.

As diversas manifestações dos vizinhos que lamentavam a morte do seu “Bira” e a ausência de um familiar para assinar o documento para que ele não fosse enterrado como indigente. 

Por conseguinte, foi necessário acionar com a defensoria pública para que o serviço funerário fosse autorizado entrar na favela para a remoção do corpo, porque foram diversas as razões para as negativas em atender as demandas da situação. Empecilhos para um último ato de caridade para uma vida. 

Se seu “Bira” morreu por Covid-19, não sei. Mas sei que foi vítima antes, durante e depois (se há o depois), de abandono e da invisibilidade dos nossos idosos e do nosso povo tão sofrido.  

Das mulheres que estão nas faxinas, nos meios de transportes lotados em busca do alimento para suas famílias. Dos homens desempregados e dos jovens entregadores que enfrentam o preconceito estabelecido pela sociedade cruel e nefasta, que mata nossos jovens e as nossas crianças. Impedindo uma geração de riqueza e sonhos!

Por isso, estou impactada, indignada e sofrida com uma expectativa que muito ainda vamos ver. Se o Covid 19 deixar! 

“Janelas da Conectividade”

Em dias de pandemia da Covid-19, o distanciamento e o isolamento social são determinantes para o não adoecimento. Assim mesmo, somos convidados diariamente a entrar e/ou participar de várias salas virtuais. Pois, salas coloridas, salas embranquecidas, salas floridas, salas com belos quadros ou apenas salas com belas estantes repletas de livros. 

Com novos hábitos incorporados ao cotidiano, a conectividade virtual ganhou novas funções promovendo encontros, reuniões e uma comunicação desafiadora em aprender a ouvir, esperar a sua vez de fala e de escuta. 

Salas com diversas janelas que interagem e trocam saberes, conhecimentos, afetos e sonhos. Sim! As Janelas da Conectividade, que na vida real e cotidiana da favela ainda se mantêm fechadas e ou cobertas com lonas e plásticos; abafando o ambiente e escondendo os diversos dramas das diversas formas das violências de exclusão e desigualdades sociais.

Entrega de cestas básicas na favela

Com um plástico amarelo na janela e um quarto difícil de circular, o encontrei sentado a beira da cama desiludido com tanto abandono. Quando chamamos pelo seu nome, ele não acostumado a receber visitas, ficou surpreso ao nos ver a porta de sua casa. Então, com dificuldade ele se levantou e disse: Vocês são aqueles jovens da Escola de Música? E logo esboçou um sorriso discreto, seguido de um soluço em uma voz embargada e agradecida por receber uma cesta de alimento, carinho e afeto.” 

Sim! Foi “esta a reação de alguém que em meio à tantas conectividades ainda se encontra no isolamento de sempre” – este fato nos foi relatado por jovens em momento de entrega das cestas básicas nas ruas da favela. As Janelas da Conectividade não se fecha para os jovens! Sempre ansiosos às novas descobertas, vasculham a Internet de um modo voraz em busca de novos conhecimentos, novos relacionamentos e aventuras. 

Sim, aventuras! Mas o que dizer de um jovenzinho que, em plena pandemia, adoece de modo a paralisar a sua vida? Onde a janela é o aparelho de celular que o leva as diversas memórias de uma vida que ele precisará se reabilitar? “Mas e a pandemia? Não tenho onde me tratar neste momento. O que será de mim? Sim! O que será?” 

É o que indaga o menino à sua mãe, que muito aflita vem nos contar a triste sorte do menino e que com lágrima nos olhos recebe a sua cesta de alimentos e volta para sua casa revigorada e esperançosa por dias melhores. 

Por fim, que possamos aprende nessa pandemia, em que as Janelas da Conectividade, estão para além das salas virtuais.