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“A pandemia da Covid-19 aprofundou as vulnerabilidades do país”

Sermos atravessados por essa pandemia em um momento já tão difícil nos colocou em um lugar de aprofundamento de muitas vulnerabilidades. Nesse momento, o meu olhar para as pessoas ao meu redor passou a ter uma lente ainda mais forte da importância de suas vidas. A pandemia ainda não passou, e continua a ser ignorada pelos incompetentes governadores, ministros e presidente. Assistimos de boca aberta, lágrimas nos olhos e apunhalados pela indiferença a morte de centenas de milhares de pessoas. E o punhal da indiferença nos mata enquanto seres humanos cada dia mais um pouco, enquanto a política econômica neoliberal avança e temos nossos direitos violados, aprofundando a precariedade e vulnerabilidades de nossas vidas.

No início do ano eu já lia com muita tensão as notícias sobre o novo vírus que havia surgido na China. Sabia que algo grave estava por vir, com notícias indicando possíveis impactos socioeconômicos. Olhei para as condições financeiras na qual estávamos eu e minha parceira, uma travesti que vive com HIV, que também estava sem emprego formal, vendendo o almoço para comer a janta. Mas ainda tínhamos a possibilidade de pagar o aluguel.

Não éramos os únicos, a situação de quase todes que conhecíamos era a mesma ou até pior. A atenção para as tensões já presentes no cotidiano se aprofundou com mais uma ameaça de aumento de crises. Em fevereiro, eu e minha parceira fortalecemos mais uma vez o laço de parceria, cuidado e muita paciência. Foram meses tensos e estávamos sozinhes dentro de casa.

Vulnerabilidades escancaradas

No que concerne ao meu trabalho, assisti com um peso no coração os projetos de prevenção e promoção da saúde minguarem com o fechamento das escolas. As vulnerabilidades foram escancaradas. Nos últimos encontros presenciais vi nos olhares daquelas e daqueles estudantes o receio de mais um terremoto em suas vidas: uma pandemia que trazia expectativas – que infelizmente se realizaram – de centenas de milhares de mortos. Esses jovens são moradores e moradoras de favelas, e já diziam: a gente é quem mais vai se ferrar com isso.

Ouvi na voz de professoras queridas a força de continuar se movimentando pela garantia do direito a uma educação de qualidade, seguido do pesar de reconhecer o fracasso das políticas instituídas pelo estado para a continuidade das aulas. Os/as estudantes não estavam conseguindo acompanhar, e, ainda pior, o contato com muitos/as deles/as foi perdido.

Direitos violados

Os trabalhos de prevenção ao HIV e outras IST ficaram ainda mais difíceis nas escolas. Esse assunto não estava sendo abordado no currículo oficial com as aulas online, e a possibilidade de registro audiovisual de professores/as falando sobre esse tema em meio ao turbilhão de políticas conservadoras apenas aumentou o medo já existente de abordagem do assunto. Pois, essa violação ao direito desses jovens a uma educação sexual baseada em evidências aprofundaria ainda mais suas vulnerabilidades à AIDS.

Em outros projetos com movimentos sociais junto a jovens para trabalhar a prevenção experenciei o enfraquecimento de vínculos tão duramente trabalhados nos últimos tempos. O contato com esses jovens foi extremamente dificultado pela violação do seu direito a uma conexão de internet, além de suas vidas terem mudado de rumos em poucas semanas, sendo forçados/as a procurarem formas para ajudarem suas famílias a continuarem se alimentando e pagando suas contas. Todo o resto ficou em outros planos para depois. Mas continuamos com o trabalho, tentando fomentar a discussão sobre a importância dos direitos humanos e, principalmente, a garantia desses direitos.

Incertezas

Após sete meses sem visitar meus familiares, fui para o interior de São Paulo, carregado de uma grande tensão, um medo muito grande de poder estar levando o novo coronavírus para lá. A dinâmica de interações naquela pequena cidade é muito diferente da de São Paulo, com muitas visitas diárias de parentes e conhecidos na casa de minha mãe. No entanto, consegui me manter em isolamento durante quase duas semanas antes de entrar em contato com essas pessoas.

As minhas diversas tentativas de comunicação sobre a importância de manter distância física e usar máscara falharam miseravelmente. Por isso, me senti um péssimo trabalhador da saúde na área da prevenção.

Mas era tudo muito novo e eu não daria conta dos medos e certezas baseadas em centenas de notícias e informações falsas das mensagens de WhatsApp que apitam o dia todo nos celulares de minhas tias, por exemplo. Certezas que são baseadas na primeira reação emotiva frente a uma notícia absurda se endurecem rápido, ficam sólidas e destrutivas. Enfim, qualquer contestação é recebida com agressividade. São efeitos do fundo buraco político da ascensão neofascista no Brasil.

Sou psicólogo, trabalho com prevenção ao HIV/AIDS em escolas públicas de São Paulo através de projetos da USP. Também faço parte da Coletiva Loka de Efavirenz. Este é um breve relato sobre minha vida pessoal e profissional durante o início da pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo.