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40 a 59 anos Branca Ensino Superior Incompleto Homem Cis Rio de Janeiro

“Apesar de ter triplicada a demanda de pedidos, o aplicativo diminuiu o valor das corridas para os motoboys”

Sou músico (batuqueiro) e há dois anos trabalho como motoboy por meio de aplicativo. Quando começou a pandemia, eu tinha acabado de pegar caxumba e, por conta disso, acabei ficando isolado por duas semanas. Durante esse isolamento, foi me consumindo a dúvida de trabalhar, ou não, por causa do medo de pegar Covid-19. Por outro lado, crescia em mim a vontade de poder contribuir com uma mobilização solidária que crescia em muitos lugares.

Resolvi ir para a rua

Nesse começo, com o grande alarde da pandemia e o fechamento praticamente total da cidade, pipocavam estórias de pessoas que ajudavam outras. Elas se mobilizavam para entregar quentinhas, máscaras e faziam compras para pessoas em isolamento. Essas pessoas tentavam, de alguma forma, ajudar outras que não trabalhavam, ou do grupo de risco.

Apesar da minha namorada, na época, me oferecer ajuda financeira para eu não precisar trabalhar, resolvi ir para a rua. Em parte porque eu queria sair para rodar e não depender financeiramente dela, e em parte porque eu queria participar dessa mobilização solidária.

Quando me senti recuperado da caxumba, coloquei um anúncio numa rede social dizendo que faria fretes grátis para ajudar pessoas que precisassem. Comecei a rodar nos aplicativos que já trabalhava antes, tentando tomar os cuidados recomendados, mas torcendo para que, caso eu pegasse esse vírus, não tivesse complicações sérias. No fim, o anúncio que coloquei me rendeu vários contatos de fretes particulares. Mas somente um ou dois fretes beneficentes.

Ruas vazias

Confesso que o que mais me marcou foi andar pelas ruas do Rio de Janeiro totalmente vazias. Não havia ônibus ou carros (um dos maiores perigos para os motoqueiros), nem transeuntes – nada. 

Em várias horas rodando, eu mal cruzava com outro motoqueiro, pois estavam todos em “pleno vapor” fazendo entregas por aí. O Rio era uma verdadeira cidade fantasma e, por isso, andar de moto era uma maravilha. Não havia sinais fechados, “mão” certa de trânsito nas ruas, calçadas ou esquinas.

Não existiam limites para andar de moto, uma liberdade para transitar que eu nunca tinha experimentado. Gostaria de ter filmado algumas tardes em que eu passava por bairros, que são normalmente cheios, totalmente vazios, sem ver uma pessoa, carro ou qualquer sinal de vida nas ruas. 

Foi estranho e maravilhoso. Eu só tinha contato com pessoas quando eu entrava em alguma porta de estabelecimento para pegar o pedido e depois no prédio, para entregá-lo. 

Aplicativo desvalorizou trabalhadores 

Outra coisa bem marcante foi a política extremamente agressiva e desumana de um aplicativo em que trabalho. Apesar de ter triplicada a demanda de pedidos, a empresa diminuiu o valor das corridas para os motoboys, que estavam de fato se expondo ao risco. O aplicativo ainda aumentou o percentual da cobrança nos pedidos dos restaurantes (que não tinham para onde fugir) de 22,5% para 27,5%, incrementando exponencialmente seus lucros.

Isso evidenciou ainda mais a desvalorização por parte das empresas, e algumas vezes também dos clientes, de quem está de frente, botando a cara. Não que isso seja uma novidade para mim, mas justamente naquele momento em que supostamente existia uma consciência e um esforço coletivo para superar a pandemia, essa política adquirira um ar particularmente nefasto.

No fim, embora não tenha feito nenhum teste, acho que provavelmente peguei Covid-19 em algum momento, porque a exposição era muito grande.

Mas não sei se por sorte de não ter contraído a doença ou por sorte dela não afetar meu organismo mais agressivamente, até hoje estou vivo e não tive nenhum sintoma.

Depois, quando já estava tudo mais ou menos aberto e a vida andava a uns 50 a 70% normal, um motoboy de um dos grupos de WhatsApp que eu faço parte morreu de Covid-19. Seu nome era Felipe e, ironicamente, era um dos poucos que se posicionavam a favor do isolamento e me dava suporte nas discussões políticas do grupo contra as imbecilidades do Bolsonaro.

Eu não o conhecia pessoalmente, mas foi marcante. Porque já naquela hora eu achava que todos que estavam se expondo como eu, provavelmente já tinham sido infectados. E, se não morreram até então, já deveriam estar imunizados. Isso colocou em dúvida a certeza que eu tinha de já estar fora de perigo.

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25 a 39 anos Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“A gente foi se adaptando a novos hábitos durante a pandemia”

Foi muito difícil me armar nessa pandemia aí em que vivemos. Pensei tanta coisa, inclusive que a qualquer momento ficaria doente. Pensei em meus filhos aqui em casa. Pelo menos deu para trabalhar, caí para dentro das entregas, e trampei de entregador em uma pizzaria.

O que vinha para entrega, tava agarrando. Fiquei desesperado, tenho três filhos em casa. Não sabe se vai ter trabalho, tava tudo fechado, no começo ficou com pique de que ia fechar, não ia ter nada…

Enfim, foi aquilo, fui me adaptando, me preveni, passo bastante álcool em gel na mão, lavo bem as mãos, deixo sempre o sapato fora de casa. Fazendo coisas assim que a gente não fazia todos os dias, agora tem que se adaptar a esses hábitos, pois tenho três filhos em casa. São dias difíceis e não desejo isso para ninguém. 

Muita gente morreu. Alguns familiares, alguns amigos, pegaram essa parada aí. Momentos assim são assustadores mesmo. Mas agora está dando para controlar, tem trabalho ainda, né? Tomara que agora não feche tudo de novo. Tomara que não venha o pior, que até então tá dando para levar.

Mas tem muita gente morrendo ainda. Tem que se prevenir nessa pandemia, tem que se cuidar, lavar bem as mãos. Toda hora. Tem que ser chato mesmo, toda hora tem que estar vendo as crianças, limpando eles, limpando as coisas com álcool, lavando bem o chão, nunca entrar em casa direto da rua com os sapatos. É assim, novos hábitos de viver. Novas coisas.

A gente foi se adaptando aí.