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“O que fazer com a comunidade do terreiro, que confia em nós?”

Em março, eu soube que o Brasil estava em pandemia.  Foi um susto para todo mundo. As pessoas começaram a ter sintomas de depressão e nossas comunidades de terreiro começaram a se perguntar:

Como vamos fazer? Vamos esquentar Cavungo ou vamos acalmar Cavungo? Vamos esquentar Obaluaê ou vamos esfriar Obaluaê?

Existiam essas discussões nos grupos. E nada mais que nós pensávamos era simplesmente a gente ter equilíbrio em nossas mentes e voltar para as nossas tradições, para nossos conhecimentos. E isso tem nos provado, porque, até o presente momento, nós não temos remédio eficaz contra a Covid-19.

Então, eu vejo que o melhor remédio nesse momento tem sido recorrer às nossas zonas de mata, aos espaços que não tenham aglomerações de pessoas estranhas a nós, ou pessoas que estejam contaminadas.

Não existe esse pensamento de a gente criar um preconceito, uma discriminação contra quem está com o novo coronavírus. Mas é um momento para as pessoas que estão com Covid-19 terem um cuidado consigo e com as pessoas que estão por perto. Também tem que estar um sentimento de troca e de afetividade. É um cuidado com nossos corpos, para que a gente não tombe. Porque basta de a gente tombar!

A gente já tombou historicamente nos navios negreiros; pela colonização; pela colonialidade do poder, encabeçado por Portugal e as potências europeias, que a gente sabe: não só europeias como potências daqui. Portugal nos escravizou, Portugal nos matou.

A pandemia vem desde o período da colonização do continente africano

Desde o começo, quando vou falar alguma coisa, digo que a pandemia não começou de agora; que esta pandemia nasce desde o período da colonização do continente africano, da colonização da África. Ali, a gente entra em uma colonização histórica; a gente entra em uma necropolítica, a política da morte. É o que tem sido colocado aos nossos corpos.

A gente foi morta. E tem sido morta cotidianamente pelas forças policiais brasileiras. A gente também sabe que tem, dentro das forças policiais, pessoas engajadas no combate ao racismo institucional, ao racismo histórico que sofremos nas instituições públicas.

Quando a gente fala que a polícia foi feita para defender brancos, é isto, justamente. A exemplo da Bahia: a polícia, apesar de ter um corpo policial que é negro, é ensinada a defender um corpo branco. Então é preciso que a gente repense cada dia mais, enquanto comunidades, quais os nossos papéis em defesa dos nossos povos. E cabe a nós, enquanto cientistas sociais – da antropologia, da química, da física, da matemática -, dar educação. 

Redes sociais, povos de terreiro e comunidades tradicionais

É dos saberes e fazeres tradicionais que a gente pensa o que esses momentos de pré-pandemia, pandemia e pós-pandemia nos trarão de impactos no pós-pandemia. Inclusive, na disseminação das redes sociais. O contato continuará a ser muito pelas redes sociais. O que já era antes.

A gente precisa mais do que utilizar essas tecnologias: precisa ver até que ponto essas tecnologias estão favorecendo as nossas comunidades e povos de terreiro. Se essas tecnologias são um vigia do colonizador para nos capturar, ou se elas são um mecanismo de defesa nosso enquanto comunidades tradicionais.

Sempre que eu ouço companheiros, parentes e indígenas, nos é colocado, pelos mais velhos, que a gente não use as tecnologias de forma a esquecer a mente no jogo; acessar o WhatsApp de forma supérflua. É preciso que a gente use o aparelho celular, todo esse aparato tecnológico, para defesa das nossas comunidades, para denunciar os atos de racismo, de intolerância, de perseguição que nós estamos sofrendo.

É importante que a gente sempre esteja atento a essa discussão do racismo dentro, inclusive, deste momento de pandemia. Neste momento, nós, da comunidade Caxuté, por estarmos na zona rural, é importante usar a palavra sororidade, não sei se especificamente neste momento, mas para nós homens negros, índigenas. Não utilizamos de cartão de crédito para oferecer libertação e cura ao coronavírus, como muito pastores de televisão.

Foi muito estranho o começo da pandemia, aquela sensação de que todo mundo ia morrer, pois víamos a mídia, como por ela estávamos sendo alertados. Com a Globo divulgando em grande massa aqui no Brasil, sempre falando da Itália, da China.

Sentimento de insegurança – o que fazer com a comunidade do terreiro, que confia em nós?

De repente, foi o Brasil. E o governo não ajudou em nada. Na gente, aquele sentimento de insegurança. Foi um momento de terror dentro das casas, do terreiro, e dentro das comunidades tradicionais, porque também somos humanos. A gente tem sede, a gente tem fome. A gente é humana, a gente tem sentimentos. As pessoas ficaram nervosas, isso tudo abala o sistema nervoso, tanto do homem como da mulher, e a gente vê as crianças desesperadas. Foram muitos noticiários a respeito do coronavírus, especialistas falando que muita gente iria morrer, pois o vírus é letal.

A gente sabe dos assintomáticos, e cada corpo e cada organismo responde diferentemente. Utilizamos saberes tradicionais, xaropes tradicionais. E nós temos sempre tentado ficar em isolamento social. O que fazer com a comunidade do terreiro, que confia em nós? Sempre ficamos muito tranquilos, pois não agimos como as potências evangélicas do país, que prometem isso e aquilo para a salvação e para a cura. Não utilizamos de cartão de crédito para oferecer libertação e cura ao coronavírus, como muito pastores de televisão.

Quando os terreiros de candomblé começaram a tocar, nós também denunciamos nas redes sociais. Porque no terreiro de candomblé, infelizmente, também temos pessoas que acreditam no desgoverno do presidente Bolsonaro. Logo, o charlatanismo nos persegue; persegue também o Brasil.

A cura

Vemos as pessoas prometendo a cura. A cura nada mais é do que uma cura que vem do nossos corpos, que vem das nossas tradições, que vem pelo afeto; que precisa vir pela ciência. Não há oposição à ciência, mas defendemos sempre que a ela tem que andar com muito respeito com as comunidades tradicionais, pois é lá que buscamos nossos medicamentos, nossas vacinas. Se não fossem nossas folhas, nossas rochas, nossa terra; se não é o ar, o sol, a lua, a gente não tem medicamentos. Assim, precisamos que a ciência aprenda a respeitar as comunidades tradicionais e esses saberes que são repassados a nós.

No pós-pandemia será preciso que a gente se reinvente; é preciso que nossos dogmas sejam repensados.

A normalidade no pós-pandemia, de ensinamento, vem do começo da pandemia: fechamos a comunidade; há pessoas que estão morrendo, jovens estão morrendo. Não poderíamos negar isto ao nosso povo. Fechamos as portas e começamos a ver alternativas. Como o Caboclo sempre diz: “a gente precisa plantar para comer; a gente precisa plantar para sobreviver.” Assim começamos a viver com o que tínhamos na comunidade rural.

O que é normal?

Não acreditamos que voltará à normalidade, pois, o que é normal? Por não ter uma deficiência física, eu sou normal? Por eu não ter um problema psiquiátrico, eu não sou normal? O que não é normal para mim, não é normal para você. A homossexualidade é normal para a comunidade LGBT, mas pode não ser normal para a comunidade hetero. E essa normalidade heteronormativa pode não ser normal para nós que não compartilhamos do mesmo pensamento, já que não podemos permitir um sistema tão sexista, tão misógino, tão homofóbico. Não podemos deixar que essa forma de dominação dos nossos corpos, da nossa vida,  tome conta. A gente não pode deixar as ideologias fascistas tomarem conta da nossa nação. E essa é uma responsabilidade nossa enquanto povo preto; é uma realidade nossa enquanto povos indígenas.

Sempre dizemos na comunidade Caxuté: “Força e resistência. Levante o dedo, pois, se levantarem o dedo para nós, vamos dizer que Marielle existe; que Mãe Bárbara existe; que Mãe Stella existe…”. Queremos falar e temos o direito de falar.

Esse dedo também simboliza o Ogó de Exu; esse dedo sinaliza que é pontiagudo e precisamos, de diversas formas, fissurar esse poder que está aqui, a gente precisa quebrar os muros da colonialidade do poder. A gente não volta a ser normal, coisa nenhuma. Eu, enquanto sacerdote, tenho que me reinventar nesse momento. Então, no pós-pandemia, será preciso que a gente se reinvente; é preciso que nossos dogmas sejam repensados. Nós não podemos ser intocáveis, a gente é humano. Nós somos povos indígenas, somos povos pretos e negros aqui no Brasil.

Que a gente recorra a saberes tradicionais

É preciso que nesse momento de pandemia a gente recorra a nossos saberes tradicionais. Que  agente faça as nossas rezas. Quem não souber o que falar, clame à força que acreditar; pegue quarana, pegue arruda, pegue folhas que você já conhece, boas para rezar. Reze sua casa, sua família. Porque da mesma forma que cada um faz as suas orações, nós temos nossas liturgias.

É preciso que os filhos da casa, do terreiro, das comunidades tradicionais prestem cultos aos nossos ancestrais, às nossas divindades. Do contrário, começamos a potencializar um sentimento de depressão, potencializar o que o colonizador nos diz: que somos fracos.

E, neste momento, de quem é fraco e de quem é forte… Jesus, Oxalá, Lembá e Tupã estão com a responsabilidade de curar o seu povo; ou de matar. Não existe essa força do bem; não existe essa força do mal. Existem dualidades que o cristianismo não permite e que a gente reafirma. Não existe uma religião que seja melhor do que a outra, sem medir forças. É um vírus que atinge a todos, mas principalmente ao nosso povo preto, aos nossos povos indígenas. A gente paga impostos e precisa que os impostos voltem como distribuição de renda.  

“Leva a urucubaca para o lado de lá…”