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Uma gravidez pandêmica

A constatação de que estaríamos isolados por conta de uma pandemia, me chocou. No meu caso, em dobro, pois descobri uma gravidez inesperada.

Estou no Nariz Solidário desde fevereiro de 2016. Caí de paraquedas e fui acolhida de uma maneira tão única, como nunca pensei que seria em um grupo.

Gravidez, Nariz Solidário e pandemia

Antes de entrar, passei por muitos perrengues pessoais, enfrentei a depressão, a ansiedade e a bulimia.

O Nariz Solidário teve um papel super importante durante a minha recuperação.

Hoje eu digo que, graças ao Nariz Solidário, eu sou uma pessoa muito mais evoluída, com autoestima e empatia, e sei que pude passar por essa pandemia com muito mais leveza por conta disso.

Uma gravidez solitária

Passar por todo esse momento isolada foi bem complicado. Tive de me afastar do trabalho por ser grupo de risco; deixei de ter a presença dos meus pais, familiares e amigos.

 Ter uma gravidez e ganhar um “bebê pandêmico” não foi fácil. Nos primeiros dias tivemos de ser somente eu, meu noivo, e nosso filho. Era tudo novo para nós três, e mal sabíamos ser só o começo de diversos altos e baixos.

 Minha irmã teve um bebê quatro dias antes de eu ganhar o meu. Foram meses distantes e sem poder ter o convívio entre os primos.

Agora, eles podem ter mais contato, sendo lindo observar a alegria de ambos quando se veem. Quando acabou a licença maternidade, voltei ao trabalho, mas pedi para sair em dois dias, pois o Nicolas, nosso filho, ainda era um bebê de apenas quatro meses.

 Para a minha sorte, sempre tivemos uma boa rede de apoio, e a empresa do meu noivo vai bem.

 Consigo participar de vários aspectos na vida do bebê que eu perderia se precisasse ficar longe dele durante o dia.

Depois da gravidez, tive que reaprender a ser

Tive que reaprender a ficar em casa, e nesse aspecto, vem o papel crucial que o voluntariado me proporciona: conseguir usar a arte para poder levar a vida de maneira mais leve.

Consigo usar a música, e os ensinamentos ‘palhacísticos’, diariamente com meu filho. A arte da palhaçaria tornou nossos dias mais leves e alegres.

Gostaria de agradecer imensamente por fazer parte desta família. Se não fosse pela ONG, não sei como teria passado por todo esse período de gravidez pandêmica.

Claro que, não poder participar presencialmente, me gerou um impacto por não poder estar nos hospitais.

Saber que teríamos um retorno e estaríamos mais fortes do que nunca, me dava ânimo para prosseguir e lembrar de que logo, minha palhaça estaria levando o seu jeito único, de impactar as pessoas.

Esperança

Hoje, com a esperança de que logo voltaremos ao normal, percebo que a pandemia serviu de muitos aprendizados a todos. Infelizmente, perdemos meu sogro, e tantas outras pessoas para essa doença.

 Agora, nos resta seguir, e nos reinventarmos mais a cada dia, sem perder a esperança.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Branca Homem Cis Paraná Pós-Graduação Completa

A saudade de visitar era maior que o risco

Com a pandemia, a saudade das visitas e dos olhares dos pacientes era grande.

Sou perito contador e advogado, funções que mesmo antes da pandemia já possuíam a característica de ser um trabalho solitário.

 Durante esse isolamento, o trabalho  foi me consumindo e, se tornando, uma das únicas atividades do meu dia.

A saudade de visitar crescia

Por outro lado, crescia em mim a vontade de poder estar em contato com pessoas, e poder contribuir, de alguma forma, com um trabalho solidário.

Eu já realizava esse trabalho em um ONG, atuando como palhaço em hospitais. Porém, como voltar aos hospitais nesse momento, se eles eram o olho do furacão?

A esperança de poder visitar

Por mais que ainda hoje não tenhamos uma data prevista para o fim desse momento delicado em que vivemos, nunca deixei de acreditar que esse período conturbado da pandemia, fosse acabar.

A ONG continuou firme com os seus objetivos e, em parceria com os hospitais, encontrou uma forma de continuar presente na rotina dos pacientes.

 Algo que, antes, era realizado presencialmente pelos voluntários da ONG, passou a ser feito de forma remota, com o auxílio de um robô, que era guiado por um assistente do hospital até os quartos dos pacientes.

A partir disso, conseguimos continuar a interagir com um dos nossos principais públicos-alvo.

Adeus, saudade

A atividade fim da ONG não deixou de ser cumprida, mas agora a forma era bem diferente.

Durante esse período, tive o prazer de acompanhar o crescimento de diversos amigos que lhe tomaram essa missão, e a desempenharam incrivelmente.

Eles realmente fizeram a diferença nesse período, tão inusitado. Eu, por outro lado, não consegui embarcar nessa mesma onda, mas o desejo de continuar atuando como palhaço não diminuiu nem um pouco.

A pandemia ainda não acabou, e precisamos continuar com todos os cuidados e protocolos de proteção, mas já conseguimos ver uma luz no final do túnel.

O tempo continuou passando dia após dia, por vezes, de forma bem lenta, e a esperança de voltar a atuar nos hospitais parecia algo muito distante.

Foi então que, de repente, li em nosso grupo de mensagens, que teríamos a oportunidade de voltar a estar presentes em um dos nossos hospitais parceiros.

Na hora, o coração acelerou muito, acompanhado de uma sensação de desespero só por lembrar que eu não estava em dia com os meus estudos da palhaçaria.

Isso tudo foi agravado, pois, o evento aconteceria no local onde estou lotado como voluntário (meu querido Hospital do Idoso).

Ao ler a postagem, tomei ciência de que o evento para o qual fomos convidados, ocorreria durante a semana, em horário comercial, o que diminui a quantidade de voluntários disponíveis.

Apesar de continuar ativo na ONG ajudando em rotinas administrativas, a vontade de voltar a visitar era absurda.

A maioria das conversas em tempos de pandemia, giram em torno de um só assunto: será que já estamos seguros para voltar a nos encontrar?

A saudade e o reencontro

O evento foi realizado no auditório do hospital, e contou com a presença de diversas pessoas, sendo nossa função, recepcionar esses participantes.

Assim que coloquei os pés no hospital, as lembranças dos diversos momentos ali vividos começaram a visitar a minha memória.

É incrível como aquilo que nos faz bem, volta com uma força gigantesca e nos motiva.

No início da preparação, as mãos estavam trêmulas pela falta de prática em arrumar o figurino, fazendo a preparação demorar muito mais do que o normal.

Foi importantíssimo poder contar com a ajuda dos dois parceiros nessa preparação. Enfim, depois do figurino pronto, fomos recepcionar nossos participantes.

A energia que o palhaço carrega dentro de si, é algo incrível. Ela contagia a quase todos por onde passa. É maravilhoso conseguir olhar nos olhos das pessoas e sentir o carinho transbordar.

“Esse período de reclusão nos ensinou muitas coisas, e penso que, uma das principais, é o fato de percebemos que humanos gostam, e precisam, estar com outros humanos.”

A receptividade dos participantes foi espetacular, e mesmo que os jogos e a dupla não tenham apresentado a sua melhor performance, o resultado foi muito bom.

Depois de um bom tempo interagindo com os participantes, finalizamos nossa atuação entregando o auditório para a palestrante principal.

Eu pensava que já tínhamos terminado a nossa participação, quando recebemos mais um convite.

Matando a saudade na ala do hospital

Agora a missão era visitar todas as alas do hospital, convidando os colaboradores a participarem do evento que estava acontecendo, um evento muito importante que trazia várias técnicas que auxiliavam no gerenciamento da dor.

Não preciso nem dizer que aceitamos de pronto. Voltar a entrar nas alas, trouxe-me um misto de emoções, tais como saudade, alegria e euforia.

Durante os caminhos percorridos, foi inevitável olhar para determinados quartos procurando por pacientes que, por diversas vezes, visitamos. Infelizmente ou felizmente, não consegui encontrar ninguém que já conhecia.

Mas também estava curioso para reencontrar a equipe de enfermagem que sempre me recebeu com sorrisos maravilhosos.

Assim que chegamos ao primeiro posto de enfermagem, o astral subiu para as alturas.

Fomos recebidos com muita euforia e a alegria foi se espalhando por todo o ambiente.

De forma natural e harmoniosa, gradualmente, fomos nos comunicando, brincando. Era como se o tempo não tivesse passado.

Após visitar vários postos de enfermagem, com muita interação, nos despedimos, e fomos ao Centro de Terapia Intensiva.

O reencontro na CTI

O Centro de Terapia Intensiva é um local de cuidados especiais, onde, geralmente, os pacientes ficam por um longo tempo, apenas com a companhia da equipe hospitalar.

Nem sempre é possível termos contato com esses pacientes, seja devido ao seu estado de saúde, pois vários estão desacordados, seja por inspirarem cuidados muito especiais, sem que a aproximação seja possível.

Nessa nossa visita, ao adentrarmos o CTI com todas as precauções possíveis, fomos direto ao posto de enfermagem convidar os colaboradores, e fomos mais uma vez recebidos com sorrisos e com muito carinho.

A grande surpresa veio quando eu já estava saindo. Ao me despedir dos colaboradores, quando me virei para sair do CTI, meu olhar cruzou com uma paciente que estava acamada em um dos leitos.

 A conexão dos olhares foi instantânea. Naquele momento, a minha conexão com o meu parceiro de visita se quebrou e me concentrei naquele olhar. Ela me olhava de um jeito tão especial que me prendia em seu olhar.

Não tinha como não retribuir aquele sorriso e aquele olhar. O reflexo foi imediato e, mesmo estando a uma certa distância física, comecei a retribuir com olhares e gestos de carinho.

Novamente, pude comprovar que a palavra e a fala, não são as únicas formas que temos para nos comunicarmos.

Não sei precisar exatamente o tempo que essa conexão durou, mas tenho a certeza de que as trocas de olhares e os gestos de carinho que trocamos alimentaram nossos corações e tornaram nosso dia mais alegre.

E que saudade que estávamos desse reencontro

O tempo de duração não foi grande, mas a intensidade foi gigantesca. Despedi-me dela com vontade de continuar ali por mais tempo, mas meu parceiro de visita já estava saindo e não podia deixá-lo mais sozinho.

E foi assim que me despedi e retomei a minha visita. No fim, embora a visita não tivesse o objetivo de interagir com os pacientes, acabei me conectando com vários.

Sei que ainda não há previsão de retorno da visitação aos pacientes, mas essa pequena visita me fez sentir, mais uma vez, o quanto é bom poder atuar como palhaço no ambiente hospitalar.

Agora, é retomar as minhas rotinas de estudos da palhaçaria e esperar que, em breve, eu possa voltar à rotina de visitas.

Agradeço aos meus parceiros de visita, ao Hospital do Idoso Zilda Arns, por nos proporcionar esse momento, e agradeço especialmente a todas as pessoas que interagiram conosco com tanto amor e carinho.  


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Branca Homem Cis Pós-Graduação Completa Rio de Janeiro

“A Covid-19 agravou violações de direitos sofridas pelas pessoas que vivem com HIV”

A Covid-19 agravou as situações de violação de direitos sofridos pelas pessoas que vivem com HIV, porque é profunda a desigualdade social e econômica dessas pessoas.

Por exemplo, a população trans é uma população que vive em grande parte da prostituição. Sem poder ir à rua, muitas ficaram numa situação dramática, sem comida, medicamento, sem condições de se prevenir de DSTs.

Campanhas de prevenção e setor privado

É terrível notar, com a Covid-19 a nível federal, que não temos campanha de prevenção. Aqui no Rio, quem faz a campanha de prevenção que tem mais alcance é O Globo e o Itaú. É o poder privado. O mundo dos negócios é que esta fazendo a prevenção. Isso é muito perigoso, a coordenação é deles próprios, se uma hora eles não quiserem financiar, podem falar:

“Meu negócio é banco, dinheiro, mundo financeiro, tô fazendo isso por um favor. Não quero mais colocar dinheiro nisso”, acabou a campanha de prevenção.

As pessoas ficam desbaratadas, não sabem o que fazer exatamente. Eu critico o pessoal do Leblon que vai para os bares, as pessoas de Campo Grande que não se protegem. Mas temos que nos perguntar o que o Estado tem dado para essas pessoas, onde elas estão se informando.

É na Globo pelo Drauzio Varella – não é esse o caminho. Isso mina a confiança, não trás realmente mudanças no comportamento. E usando somente o poder punitivo, se elas não sabem exatamente o que seria correto. Isso leva à violência e aos estranhamentos que estamos vendo.

Foi porque não se cuidou…

Fora a questão do ônibus cheio – acaba que se a pessoa contraiu foi porque não se cuidou. Isso é um passo para agredir direitos. Uma empresa pode demitir um funcionário que contraiu Covid-19 alegando que “pegou porque não se cuidou”. Mas fez prevenção no local de trabalho? A responsabilidade do transporte urbano com a prevenção deveria ter um posicionamento. O que a Fetranspor, Secretaria de Estado declara? Qual é a sua campanha? Não era apenas da prefeitura e sim em coletivo. 

Neste momento, precisávamos primeiro de uma política de prevenção clara, não essa confusão que está aí. Isso seria fundamental, até como uma maneira de demonstrar cuidado e atenção. Ter as secretarias de estado e município e também do nível federal trabalhando de forma coordenada. Inclusão da sociedade civil nos conselhos.

São Paulo tem um conselho, mas não participa a sociedade civil. Não tem pacientes, familiares. Só empresas participam desse conselho social. E um ou dois cientistas. Aqui no Rio, na prefeitura, a gente nem sabe quem compõe. Isso resulta em bagunça como vimos nos hospitais de campanha que foram prometidos e não foram entregues, roubos, prejuízos para a sociedade. Uma preocupação com os mais vulneráveis, inclusive as pessoas historicamente vulneráveis.

Pessoas que vivem com HIV, ONGs e pressão por políticas assistencialistas

Grande parte das ONGs no campo das pessoas que vivem com HIV está sendo demandada cada vez mais para um posicionamento assistencialista de ofertar cestas básicas. O que é compreensível. A gente entende que essa demanda aumenta muito.

Mas, por outro lado, as ONGs estão muito fragilizadas. E assumir nas costas grandes tarefas de assistencialismo em médio prazo pode ser um problema institucional grave. Por falta de pessoas, de fundos. Fora um abandono de uma agenda de força política e social para mudanças, de agente de mudanças, e não somente um mitigador de problemas.

Sobre a pressão pela questão humanitária, precisamos discutir com eles que isso não deveria substituir a força política e social, capaz de manter políticas democráticas de Estado, como, por exemplo, a distribuição universal de medicamentos. Não é possível trabalhar só com ajuda humanitária, mas sim com força política para manutenção da política de Estado, que é o acesso universal. As populações vão continuar vulneráveis devido a uma crise econômica que não se recupera tão fácil. E hábitos e estilos de vida que será difícil modificar.  

Pós-pandemia e filantropia

No pós-pandemia, precisaremos de uma mudança na filantropia de apoio: alianças, políticas de solidariedade entre as organizações, como projetos intersetoriais – seria muito importante.

Acho que, mais do que nunca, as políticas de solidariedade que o Betinho falou são um desafio de como vai ser a nossa habilidade – enquanto movimentos sociais e sociedade civil – de formar alianças e encontrar denominadores comuns. E ter quem apoie.

Filantropia apoia um tema como meio ambiente, gênero, educação popular. Mas talvez vá precisar de agências que financiem meio ambiente e saúde (como o Betinho deslumbrou uma hora, quando a ABIA 92 participou do Eco 92).

O que tem a AIDS a ver com Eco 92? Na época do Betinho, tinha tudo a ver. Porque as condições ambientais fomentam doenças e favorecem epidemias – elas não surgem porque um vírus simplesmente surgiu. A cultura filantrópica intersetorial ainda é pouca na questão de políticas de solidariedade; mas é essencial para mudar o que queremos mudar. 

“Betinho” é uma referência ao sociólogo e defensor de direitos humanos Herbert de Souza. Betinho foi um dos articuladores da Campanha Nacional pela Reforma Agrária e tornou-se um símbolo de cidadania no Brasil ao liderar a Ação da Cidadania contra a Fomes, a Miséria e pela Vida. Em 1986, depois de saber que convivia com o vírus HIV, ajudou a fundar a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).