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40 a 59 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Homem Cis Prta

“Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer”

Meu nome é Lucimar, tenho 44 anos de idade e sou um homem cis negro. Hoje moro em uma casa na Ceilândia Norte-DF, cidade satélite e região periférica de Brasília. Antes, por 34 anos, morei nas ruas desta capital. 

Sai de casa aos nove anos de idade e consegui estudar somente até a 5° série do ensino fundamental: uma parte no Grande Circo Lar e outra na escola Meninos e Meninas do Parque (Brasília/Distrito Federal), onde já adulto aprendi a ler e a escrever. Por último, estudei no sistema prisional, mas ainda não consegui concluir. 

Não tive infância. Nas ruas tive que sobreviver em meio a violência e a crueldade: não havia tantos momentos para lembrar que eu era uma criança, eu precisava ser bruto, porque só assim poderia me manter vivo. 

Hoje sou um trabalhador, tenho sete filhos, sou um homem ainda sob cumprimento de pena, pois infelizmente minha vida no passado se dividiu entre o cárcere e a rua. Nesta última vez de privação da liberdade, fiquei quase sete anos em regime fechado por uma sentença de tráfico de drogas, mas eu não era traficante, nunca fui. Eu era mais um sobrevivente naquela realidade das ruas. 

Assim como todo o meu povo da rua, nos prendem como traficantes. Toda a minha trajetória nas ruas aprendi que a lei somente é aplicada a nós, principalmente em relação ao tráfico de drogas. Eu digo isso porque o povo da rua, os pobres, as pessoas pretas são a maioria nos cárceres.

Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer. Quando tinha TV, a gente acompanhava as notícias e era assustador demais. Foi muita tristeza, angústia e medo de nunca mais ver minha família, nunca mais respirar em liberdade

Pandemia na cadeia

Estes últimos anos, nesta cadeia, foram os anos mais difíceis da minha vida, principalmente os últimos cinco meses quando chegou a pandemia da COVID-19 no mundo. Eu nunca mais quero voltar para aquele lugar, nunca mais quero sofrer tanto por cometer um erro. Não existe justiça, só existe vingança ali.

Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer. Quando tinha TV, a gente acompanhava as notícias e era assustador demais. Foi muita tristeza, angústia e medo de nunca mais ver minha família, nunca mais respirar em liberdade. 

No cárcere, eu fiquei na área reservada para as pessoas com comorbidades por ser hipertenso, mas não havia cuidado. Estávamos isolados e muitas vezes quem tinha a COVID-19 não dizia que tinha por medo de ir para um lugar pior. 

Logo que a pandemia chegou, as visitas foram proibidas e nós fomos submetidos a todo tipo de violação. Todos nós temos direito à dignidade humana, mesmo quando estamos ali naquele lugar, que eu chamo de “depósito de rejeitados”, onde a sociedade não vê valor algum. 

Todo ser humano é maior do que seus erros e não temos o direito de decidir quem vive e quem morre. Em 6 de agosto de 2020 consegui obter uma progressão para o regime aberto (domiciliar) e voltei pela primeira vez para a minha casa, um lugar onde eu vi o amor por mim em cada cantinho, um lar. 

Em todas as vezes que eu vivia na prisão, eu saia sem nenhum pilar para me apoiar e seguia no ciclo rua e cadeia, mas dessa vez foi diferente. Eu encontrei o amor, tanto em minha casa como na rede de apoio que tenho hoje. 

Hoje eu não estou mais só, eu tenho minha família, meus filhos, esposa, sogra, enteado e minha netinha. Ela traz luz para minha vida, ela clareia, ela é a Clara. Eu aprendi o que é amor, eu hoje sei o que é ser amado e amar, respeitar e ser respeitado, agora me vejo realmente como um ser humano. 

Vida em família

Antes, eu não sabia o que era verdadeiramente uma vida em família. Já tive outros relacionamentos, mas eu era jovem, cabeça dura, vinha de uma realidade da brutalidade nas ruas. Eu era muito esquentado e também enfrentava muitas dificuldades para me sustentar. Minha forma de vida não era a correta, mas era a única forma que eu conhecia para sobreviver pois foi assim que eu cresci nas ruas. 

Ao vir para casa, me deparei com a minha esposa desempregada, com minhas duas filhas desempregadas, eu me perguntava o que eu faria já que eu não queria voltar para aquele lugar [cárcere]. Eu estava muito cansado de tanto sofrimento e as limitações que eu tinha, com a falta de estudos, diminuíam as possibilidades de eu arrumar um emprego e ter uma oportunidade de fazer diferente. 

Em meio a pandemia, minha esposa estava sobrevivendo com a ajuda das redes de apoio, coletivos, organizações não-governamentais e movimentos sociais. Foi nesse momento que conheci as Tulipas do Cerrado, uma organização que foi fundada por uma pessoa que hoje é uma das mais importantes em minha vida. Nunca imaginei reencontrar a Juma Santos, que foi uma menina de rua como eu, que eu conheci nas ruas. Eu não imaginava a importância que essa mulher teria em minha vida e da minha família, como suporte, acolhimento, voz forte, amiga, irmã e protetora.

Eles [trabalhadoras e trabalhadores das Tulipas e do Coletivo Aroeira] não sabem, mas me salvaram e me salvam a cada encontro. A cada semana era uma terapia nova: aprendi respeitar as minhas irmãs de caminhada, as trabalhadoras do sexo, que na rua, eu nunca tinha olhado com tanto amor. A palavra é essa (amor) e respeito!

Rede de apoio: trabalho feito por nós para nós

Hoje eu sou muito grato a Deus por ter a Juma ao meu lado. Foi através das Tulipas do Cerrado que eu fui apresentado e incluído no Coletivo Aroeira, que usa a metodologia agroflorestal e a redução de danos como ferramentas de autoconhecimento e cuidado. Ali conheci amigos(as) que eu nunca imaginei ter e mais uma vez eu pude ver o quanto o amor é capaz de salvar vidas. 

Eles [trabalhadoras e trabalhadores das Tulipas e do Coletivo Aroeira] não sabem, mas me salvaram e me salvam a cada encontro. A cada semana era uma terapia nova: aprendi respeitar as minhas irmãs de caminhada, as trabalhadoras do sexo, que na rua, eu nunca tinha olhado com tanto amor. A palavra é essa (amor) e respeito! São mães, são amigas, são guerreiras e eu não as via assim. 

Também entendi que o preconceito destrói a vida das pessoas que são usuárias de drogas e são seres capazes de fazer tudo. Mesmo sendo usuários de substâncias consideradas ilegais, não são zumbis, são meus irmãos e minhas irmãs. 

Eu não sabia a importância dessas redes, mas através desse espaço eu entendi que não é só sobre mim, o Lucimar, Mazinho, velho mar e hoje novo mar. É sobre nós! 

É necessário sempre lembrar e falar que se estou de pé é por causa das Tulipas do Cerrado e Coletivo Aroeira, pois estes lugares são meus portos seguro hoje e me ensinam ser uma pessoa melhor, além de me fazerem refletir sobre como a redução de danos é algo que precisa chegar ao nosso povo, pois só assim não seremos mais mortos e encarcerados por uma desigualdade social que nos aflige. Esse é um trabalho feito por nós e para nós.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Prta

“Nesse período eu só sabia chorar”

Sou Elza, tenho 38 anos, sou mulher cis, preta, maranhense, mãe solo de seis filhos. Possuo o ensino fundamental incompleto, sou profissional do sexo e moro há 17 anos em uma cidade no entorno do Distrito Federal.

Com a chegada da pandemia, minha vida mudou muito: tive que encontrar outras fontes de renda e, com o fechamento das escolas, minha filha mais nova, de 11 anos, teve que ficar em casa sem estudar. Foi muito difícil para ela, pois ela tinha muita vontade de voltar a frequentar a escola. 

Tive minhas preocupações e angústias. Eu vi as coisas mudarem do dia para a noite. Quando fui para Brasília trabalhar no centro de uma região administrativa [“bairro”], vi que as lojas estavam fechadas, as ruas vazias, as poucas pessoas que estavam transitando estavam usando máscaras. 

Lembro até hoje da minha primeira máscara, era do Flamengo. Aí veio o medo: usando máscara, as coisas ficaram complicadas. Não havia ninguém na rua, sem clientes, nada. Eu pensei: “O mundo está acabando e eu não estou sabendo de nada”.

O início da pandemia foi bem difícil. Não tive ajuda em nada, nem do Governo. Pelo contrário, eu recebia R$50 de bolsa família e o benefício foi cortado. Fiquei sem água e luz em casa. O gás de cozinha acabou e tive que preparar a comida à lenha no meu quintal. Às vezes, meu pai, que é aposentado, me ajudava com o pouco que tinha.

Filhos em situação de rua

Atualmente, moro apenas com minha filha mais nova. Antes da pandemia, minha filha de 16 anos morava comigo, mas se amigou com um rapaz e foi morar com ele. Posteriormente, esse rapaz foi privado de liberdade e está até hoje em situação de cárcere. 

Essa minha filha ficou um período em situação de rua. Tentei tirá-la dessa condição, me aproximar, conversar, porém, ela tentou me agredir fisicamente diversas vezes e me xingava bastante. Uma situação muito complicada. Sempre tento contato via telefone com ela, mas não tenho resposta. Fico aqui com minha preocupação.

Meu outro filho teve uma crise de saúde mental no meio desse ano (2021) e saiu de casa sem dar notícias. Ele também acabou ficando em situação de rua. Fiquei mais de um mês sem dormir, com muita preocupação, sem saber onde ele estava, como ele estava, até mesmo se estava vivo. 

Nesse período eu só sabia chorar, sem saber o que fazer. Consegui achá-lo e trazê-lo com segurança para casa, mas a crise não passava. Ele ficou um tempo internado em uma Unidade de Pronto Atendimento 24h e, posteriormente, foi atendido em um Centro de Atenção Psicossocial. Meus demais filhos moram no Maranhão com meus pais.

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto

Redes de apoio

Mesmo diante desse turbilhão, tive um grande presente em minha vida: Juma Santos. Eu a considero como minha segunda mãe. Foi a partir dela que conheci coletivos maravilhosos, como a organização não governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que é um grupo maravilhoso que tem me ajudado muito nesse período difícil na minha vida, tem cuidado de mim e da minha família. 

Conheci também a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, outra parceria maravilhosa. Assim como o Coletivo Aroeira. Com eles eu aprendi muitas coisas boas sobre agroecologia como, por exemplo, plantar, colher, fazer sabonete, extrair óleo essencial. 

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto. Me sinto muito abençoada por Deus pela oportunidade de participar desses grupos e por ter conhecido cada pessoa. 

Não consigo encontrar palavras para expressar a minha gratidão a esses grupos pelas várias formas que tem me ajudado, seja com cesta básica e cesta verde, seja com uma escuta, acolhimento, momentos de convivência, trocas de saberes com ensinamentos e aprendizados. Agradeço a Deus e a essas pessoas que chegaram em minha vida para somar e trazer luz.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Prta

“Eu não conseguia mais pagar aluguel e fui morar na rua”

Eu me chamo Bruna. Sou mulher cis preta, tenho 26 anos, mineira, resido em Planaltina, no Distrito Federal (DF), possuo ensino fundamental incompleto e sou redutora de danos.

No começo da pandemia do Covid-19, eu achava tudo maravilhoso, já que minha mãe, que trabalhava em um hospital regional pela Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (FUNAP/DF), onde surgiu a primeira vítima do Covid-19 no DF, foi afastada do serviço por ter comorbidade e fazer parte do grupo de risco.

Porém, desse dia em diante, muita coisa mudou. A pandemia se alastrou em Brasília, no Brasil e no mundo, matando milhares de pessoas. A minha vida também passou por transformações: eu não conseguia mais pagar aluguel e fui morar na rua.

Na rua, eu só aprendi coisas ruins: usei drogas, consumi muita bebida alcoólica, caí na farra. Contudo, também tive coisas boas: conheci pessoas legais. Na época em que eu estava na rua, minha mãe estava presa e isso mexeu comigo. Ela era tudo o que eu tinha para me manter firme. Eu queria visitá-la, mas não conseguia. 

“Gostaria de agradecer aos profissionais da saúde, cientistas e governantes que têm trabalhado muito para garantir a saúde e combater a pandemia. Eles têm toda a admiração e apoio desta ex-moradora de rua”

Volta por cima: apoio e trabalho para garantir o sustento da família

Foi uma fase muito difícil até eu conseguir me organizar para o retorno da minha mãe para casa. Nesse período eu conheci algumas pessoas que me deram oportunidade de trabalho, participei de alguns projetos nas Tulipas do Cerrado e no Coletivo Aroeira, que me ajudam, esclarecem minhas dúvidas.

Eu vejo que estou crescendo a cada dia, é crescimento pessoal e foi graças a essas oportunidades que hoje me sinto vitoriosa: eu pago meu aluguel, junto meu dinheiro, cuido da minha mãe e não moro mais nas ruas.

Além disso, com a ajuda de amigos que me orientaram, passei a receber a Bolsa Família, um benefício que eu não sabia que poderia ter e que tem me ajudado muito.

Sou grata a Deus e a essas pessoas, que também têm sido meu apoio para progredir na vida. Mesmo com muitas dificuldades causadas pela pandemia, eu me encontro saudável, cuidando da minha mãe, estudando e trabalhando para garantir o nosso sustento.

Por fim, gostaria de agradecer aos profissionais da saúde, cientistas e governantes que têm trabalhado muito para garantir a saúde e combater a pandemia. Eles têm toda a admiração e apoio desta ex-moradora de rua.

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40 a 59 anos Branca Ensino Fundamental Completo Mulher Cis Rio de Janeiro

“Deixa quem quiser chamar de assistencialismo. Eu digo que é uma emergência, fome tem pressa”

Gostaria de trazer uma coisa que tenho percebido nesse período de quarentena. Ativa atendendo na rua com um grupo de voluntários, o primeiro momento dessa urgência que a pandemia de Covid-19 trouxe é o enfrentamento à fome.

O que pode ser feito efetivamente nesse momento é atender. Deixa quem quiser chamar de assistencialismo. Eu digo que é uma emergência, fome tem pressa. É impossível alguém raciocinar, caminhar, com estômago vazio. Com fome. Isso para qualquer ser humano, esteja ele na cobertura ou na calçada no papelão.

Por isso, em função da pandemia, eu fundei um coletivo: Rua Solidária RJ 2020. Assim, foi preciso a gente se organizar. Em cada ação, tivemos um número diferente de voluntários. Mas, de um modo geral, a gente tem ido à rua para ações pontuais – numa média de 15 a 20 pessoas. Até porque não pode ser muito mais do que isso para não caracterizar aglomeração.

Além da fome; direitos sociais destruídos

A pandemia trouxe o agravamento da falta do que já tinha antes: a falta da política pública na saúde, na habitação. Mas o lado solidário move o projeto e todas as ações com a rua.

Lá na frente, precisamos juntar para que isso se torne mais uma pauta. Porque a saúde está destruída. A assistência social como um todo também está. Essa parte que o governo deveria estar fazendo. Deveria estar vendo habitação. As ocupações ampliaram, porque a necessidade pediu.

E fortalecer um comitê, para que ele seja implementado e, depois, possamos estar lutando por algo mais dentro dele. O Comitê Intersetorial – uma união de todas as secretarias unidas trabalhando juntas para solucionar os problemas a população de rua – será mais necessário do que nunca. Aí sim, essa luta pode se definir de forma positiva.

Solidariedade e laços da pandemia

Eu gosto sempre de falar do lado bom. A vida – principalmente nesse segmento da população de rua – que antes já e era difícil, com a Covid-19, se tornou mais.

Gostaria de deixar registrado que a luta enfrentada tem que ser histórica. Há solidariedade. Houve mobilização. Sensibilizadas pela situação atual, pessoas mudaram o modo de ser e de pensar.

Está ocorrendo um encontro de pessoas. Pessoas que antes da pandemia se desencontravam, batiam de frente. Hoje elas formam laços, caminhando na mesma ponte em função do mesmo objetivo: ajudar o mais necessitado.

Os próprios moradores de rua não se dividem mais em ponta de concentrações como costumam fazer. Eles se organizaram, se conscientizaram, a partir de quem foi levando as informações – sociedade civil, projetos e ONGs. Quero deixar isso bem claro, porque é admirável o trabalho feito por eles junto a essa população. É emocionante.

Essa força, energia, luta, empoderamento vai ficar tirando as coisas ruins. O melhor que se pode aproveitar – no bom sentido – vai vir pós-pandemia. É quando essa rua toda empoderada vai poder se juntar com outros movimentos sociais, outras frentes de luta.

Não se iludam, porque eles estão fortes e fortalecidos. 

Eu sou militante, ativista dos direitos humanos e da população nas situações de rua. Presidente fundadora do projeto Juca e do Coletivo Rua Solidária. Sou cozinheira e artesã.