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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Superior Incompleto Indígena Mulher Trans

“O preço da comida subiu e eu não tinha condições financeiras para me sustentar”

Me chamo Yessica Andrés, tenho 25 anos, sou mulher trans e vivo com HIV desde meus 13 anos de idade. Sou natural de Buenos Aires,Argentina, e imigrante no Brasil há mais de 10 anos. 

Estou compartilhando o relato da minha história de vida no momento da pandemia pelo Covid-19. Gostaria de relatar como foi o impacto da notícia de estar vivendo em uma pandemia. O HIV está presente em minha vida há mais de uma década, porém jamais esperava viver essa fase de pandemia sem precedentes do Covid-19, um vírus letal. 

Eu tive medo, o pânico assolava minha rede de amizades e trabalho. Para mim, nunca foi fácil viver isolada, principalmente quando fui preparada para viver a vida e “dar a cara para bater”

Mulher trans, soropositiva: viver com HIV pra mim é estar em vulnerabilidade biológica

Por viver com HIV, eu fui expulsa de casa e cresci em abrigo no Brasil até ser maior de idade. Foram muitos “coquetéis” [remédios para conter o desenvolvimento do HIV no organismo] que consumi até chegar neste momento, em que tomo remédios em menos doses e que me ajudam a me manter viva e sem muitos efeitos colaterais. 

Viver com HIV pra mim é estar em vulnerabilidade biológica e me mantendo indetectável eu posso viver com qualidade, sempre com cuidado e atenção. Com HIV, eu já tive muitas doenças sexualmente transmissíveis e passei por tratamentos dolorosos.

Em fevereiro de 2020, eu estava trabalhando no carnaval e tive muito contato com o público geral. Na época, em Brasília/Distrito Federal, não se falava de Covid-19. A partir de março do mesmo ano, começou a efetivação de medidas enfrentamento ao novo vírus, especialmente com o isolamento social e fechamento de comércio e/ou mudanças na forma em que eram ofertados os serviços não essenciais, o que acarretou em desempregos, alterações no formato de ensino em escolas e faculdades, entre outras questões sociais.

No início da pandemia eu estava casada com um homem trans e havia muitos conflitos familiares e brigas, que se intensificaram por conta do isolamento social e da convivência mais próxima. Diante disso, eu me separei. No começo de 2021, eu me casei com um homem cisgênero soro discordante. Fizemos uma linda cerimônia de casamento civil

Pandemia: mudança de ciclos e efeitos colaterais da vacina

Nesse contexto, a pandemia afetou meus estudos. Eu sou estudante de enfermagem de nível superior e fui afastada do estágio por fazer parte do grupo de risco. O estágio na faculdade é feito em Prontos Socorros dos Hospitais Regionais de Brasília e, por isso, eu deveria atuar na linha de frente do Covid-19. Com isso, me mantive em casa, estudando de maneira remota.

Durante a pandemia, minha vida passou por vários ciclos. Alguns foram encerrados para dar lugar a outros. No início da pandemia eu estava casada com um homem trans e havia muitos conflitos familiares e brigas, que se intensificaram por conta do isolamento social e da convivência mais próxima. Diante disso, eu me separei. No começo de 2021, eu me casei com um homem cisgênero soro discordante. Fizemos uma linda cerimônia de casamento civil, em um ponto turístico de Brasília, o Museu Nacional de Brasília. 

No início de 2021, eu não tinha expectativa que tudo fosse voltar ao antigo normal, pré-pandemia. Mas veio a liberação das vacinas imunizantes para Covid-19. Tomei minha primeira dose da vacina em maio e tive vários efeitos colaterais como: febre, dor e muita tontura. Só me estabilizei depois de 21 dias. Depois disso, fiquei em casa, não saí e parei de trabalhar, pois tive medo de adoecer. 

Na época em que tomei a segunda dose da vacina, os problemas aumentaram: o preço da comida subiu e eu não tinha condições financeiras para me sustentar. 

Entrei neste coletivo para ajudar mulheres trans e demais público da comunidade LGBTQIAP+, especialmente em situação de vulnerabilidade

Tulipas do Cerrado: um movimento social de resistência contra opressões em relação às nossas vivências

Com essa situação muito difícil e diante da intensificação das vulnerabilidades, a organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado começou a entregar cestas básicas mensalmente e produtos de higiene pessoal, como forma de tentar reduzir a falta de alimento nas casas das pessoas acompanhadas pela instituição. 

Eu conheci a ONG antes da pandemia. Entrei neste coletivo para ajudar mulheres trans e demais público da comunidade LGBTQIAP+, especialmente em situação de vulnerabilidade. 

A ONG Tulipas do Cerrado forma um movimento social de resistência contra opressões em relação às nossas vivências. Ela é liderada por uma mulher muito emponderada e não deixou em nenhum momento de atender o público alvo (mulheres cis e trans, profissionais do sexo, população em situação de rua e pessoas usuárias de drogas). 

A ONG elaborou um projeto que oferece ajuda de custo e muitos cuidados, principalmente psicossocial às pessoas que estão nas ruas. É neste projeto que trabalho, atuando na área de redução de danos nas ruas.

Espero que a minha história possa levar até o coração das pessoas um pouco de luta feminina e resistência LGBTQIAP+  para que todes possam tomar os devidos cuidados e prevenções possíveis para que não passem por problemas sérios de saúde

Futuro: emprego, dinheiro e comida nas mesas a todes

Como expectativas para o futuro, desejo conquistar um bom emprego  por meio da minha qualificação profissional. Quero amizades que pratiquem o autocuidado e o cuidado com o próximo. Desejo dinheiro e comida nas mesas.  

Espero que a minha história possa levar até o coração das pessoas um pouco de luta feminina e resistência LGBTQIAP+  para que todes possam tomar os devidos cuidados e prevenções possíveis para que não passem por problemas sérios de saúde e na sociedade. 

Encerro aqui este relato agradecendo a oportunidade que tenho de ter aliados por perto e muito amor no coração. Com carinho, Yessica Andrés.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis

“Minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19”

Me chamo Maria Aparecida, porém sou mais conhecida pelo meu apelido, Iza. Sou baiana, tenho 38 anos e ensino médio completo. Trabalho como profissional do sexo há 19 anos.

Quando a pandemia começou eu estava em Goiânia/Goiás e fiquei sabendo que não poderia sair do Estado de Goiás, as rodovias estavam sendo fechadas. Contudo, eu consegui retornar para Brasília, comprei alimentos e fiquei duas semanas em quarentena. 

O tempo foi passando e as contas continuaram a chegar – água, luz e outras despesas – e o dinheiro foi acabando. Foi quando eu tive a necessidade de voltar trabalhar. As ruas, porém, estavam vazias, sem movimento, sem clientes. 

Muitos dos meus clientes fixos eram idosos, então eles sumiram com medo do Covid-19. Diante disso, tive que conquistar uma nova clientela. Com a diminuição da circulação de pedestres e queda no movimento dos comércios, meu companheiro na época deixou de vender pipoca nos semáforos. 

Infelizmente, o período de pandemia me trouxe outras perdas: minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19. Eu considerava muito a minha mãe, foi ela quem me criou, eu a amava, admirava e respeitava. Daria tudo por ela.

Eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro”

Empoderamento

Quando as pessoas voltaram a andar pelas ruas, meu companheiro começou a vender bebida alcoólica na praça e a convivência com ele ficou muito ruim, pois ele passou a beber mais bebida alcoólica e a fazer uso de outras drogas. Com isso, tivemos muitas brigas e o relacionamento foi de mal e pior.

Foi nesse período conturbado da minha vida que eu conheci a Juma Santos e a organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado. Com ela eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro e, após algumas conversas, identifiquei situações de violência em meu relacionamento que eu não podia mais tolerar. 

Antes eu pensava que a opressão era apenas em ocasiões que havia violência física, mas ao ouvir a história de vida da Juma, eu percebi que não. Então, ao ouvi-la, me senti forte, empoderada, para registrar o primeiro boletim de ocorrência contra aquele homem, que me oprimia, me xingava e quebrava as coisas dentro de casa. 

Ainda assim, continuei me relacionando com ele. Depois de alguns meses, em um momento de muita ira e surto, ele tentou queimar o apartamento onde eu morava, jogou minhas coisas no chão do apartamento, tentou explodir o botijão de gás de cozinha, correu atrás de mim. 

Ele nunca tinha chegado a esse ponto durante esses 11 anos de relacionamento. Eu tive muito medo de ele me matar. Fui até a polícia, fui acolhida e fizeram a busca por ele nos locais onde ele costumava ficar, porém não o encontraram. 

Hoje eu tenho medida protetiva contra ele e estou tentando sair desse relacionamento. Na verdade, eu saí há pouco tempo.

Acolhimento

Por fim, gostaria de acrescentar que, além de ser um coletivo que me empodera com mulher, como mãe, como trabalhadora sexual, as Tulipas do Cerrado, especialmente a Juma, tem sido meu refúgio e minha fonte de apoio. 

Nessa ONG eu sou acolhida, me tornei redutora de danos, recebo cesta básica e cesta verde mensalmente e, às vezes, é possível receber ticket alimentação e vale gás. Todo esse apoio tem me ajudado bastante.

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40 a 59 anos Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis Parda

“Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade”

Eu sou Gilmara, mais conhecida como Juma, apelido que ao longo dos anos se transformou meu nome social. E é assim que prefiro ser chamada. 

Minha história não tem nada a ver com as narrativas mostradas em novelas ou em contos de literatura. Ela vem imbuída de uma realidade incrivelmente assustadora e cativante. Como qualquer criança, também tinha meus sonhos e fantasias. Mas muito cedo, mais precisamente com dez anos, tive de lidar com situações demasiadas complexas para uma criança, como por exemplo o falecimento de minha mãe, que aconteceu durante uma de suas saídas solitárias de Alexânia, local onde morava, próximo a Brasília, cidade que ainda é meu lar.

Passei por uma série de violações de direitos por parte do Estado e tudo se apresentava como um grande obstáculo à minha frente. A mim eram negados os direitos fundamentais: à moradia, à uma boa alimentação, ao lazer, à infância, à segurança, à saúde

Situação de rua

Desde muito cedo tive que aprender a cuidar de mim e, por mais nova que fosse, já entendia a importância de continuar os estudos. Desde aquela época, eu tive a rua como lar e isso durou muitos anos. Ainda em situação de rua, frequentei a escola regularmente até conseguir completar a sexta série do ensino fundamental. Eu passava o dia na instituição, com minha pequena bolsa na qual carregava cadernos, livros, diversos lápis e objetos pessoais, meu verdadeiro “estojo de identidades”.

Morar na rua não era nada fácil, mas eu me reinventava a cada dia e posso dizer que resistência é o meu sobrenome. Passei por uma série de violações de direitos por parte do Estado e tudo se apresentava como um grande obstáculo à minha frente. A mim eram negados os direitos fundamentais: à moradia, à uma boa alimentação, ao lazer, à infância, à segurança, à saúde. Na rua, entendi o motivo pelo qual o uso de drogas se faz tão presente e todas as dores que esse uso esconde.

Posso dizer que ela [minha filha] tem sete pais, pois naquela noite chuvosa sete homens forçaram o livre acesso ao meu corpo. Na época eu tinha apenas 13 anos de idade e os homens eram policiais. Pessoas que, teoricamente, deveriam me proteger, eram os meus algozes

Uma filha, reunião de tudo que era mais bonito e sincero

Neste contexto de violações, tive minha filha, que reunia tudo de mais bonito e sincero que eu tinha dentro de mim. Posso dizer que ela tem sete pais, pois naquela noite chuvosa sete homens forçaram o livre acesso ao meu corpo. Na época eu tinha apenas 13 anos de idade e os homens eram policiais. Pessoas que, teoricamente, deveriam me proteger, eram os meus algozes. 

No ímpeto de querer propiciar um melhor ambiente para o desenvolvimento de minha filha, deixei-a com uma conhecida, com a qual sabia que poderia ofertar um contexto melhor para seu crescimento. Essa foi uma entre tantas decisões difíceis que se materializaram em meu caminho. 

Conheci o trabalho sexual e com ele todo o glamour de se sentir conhecida e bem remunerada. Mas esse período também culminou em uma face mais complexa do uso de drogas. Já estava estabelecendo uma relação problemática com esse consumo e a violência estava cada vez mais presente no meu cotidiano e na rua. 

Justamente neste momento fui presa e digo que, no meu caso, esse fato serviu para despertar em mim a vontade efetiva de mudança. Não existia nada naquele local que me empoderava e eu precisava sair dali, voltar para minha filha.

Foi pensando neste período de minha história que sinto novamente a necessidade de aprofundar meus conhecimentos por meio do ensino superior e vejo neste sonho uma excelente oportunidade para minimizar as vulnerabilidades que passei

Recomeço: trabalho com redução de danos

Ao sair do sistema prisional e, com o passar dos meses, me descobri redutora de danos, profissão que levo comigo até hoje, dezesseis anos depois. A Redução de Danos pegou minha história de vida, experiência, liderança, e sobretudo, a minha vivência com as drogas e fez daquilo um instrumento de trabalho. 

A partir daí comecei a me dedicar ao trabalho com pessoas que fazem uso de drogas. Eu exerço esse trabalho por amor e quero me aprofundar cada vez mais nele. Já com esta grande descoberta de profissão, veio a necessidade de terminar os estudos e consegui. Foi pensando neste período de minha história, que sinto novamente a necessidade de aprofundar meus conhecimentos por meio do ensino superior e vejo neste sonho uma excelente oportunidade para minimizar as vulnerabilidades que passei e uma chance de dar continuidade a outros sonhos.

Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade.(…) Eu não consigo segurar minhas lágrimas e fico agoniada ao pensar em minhas companheiras que estão em situação de rua

Chegada da pandemia e a depressão

Eu sou mãe, avó, ex moradora de rua e ex usuária de drogas. Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade. Passei a usar antidepressivos. Eu não consigo segurar minhas lágrimas e fico agoniada ao pensar em minhas companheiras que estão em situação de rua, com as mulheres que são provedoras de lares tendo que se colocar nas ruas para manter sua sobrevivência. 

Eu, em momento algum, pude me colocar em isolamento pois há um grupo grande de mulheres que são acolhidas por mim. E, apesar de estar nos cuidando desse público, tive a sorte de não me contaminar com o Covid-19. Porém, é grande o sofrimento ao ver algumas de nossas entes queridas morrerem por causa dessa pandemia.

Me nego a ocupar o espaço marginalizado que a sociedade cotidianamente me coloca

Retrato da resistência e da ressignificação de vida

Diante de tudo que aconteceu em minha história, vejo o quão difícil foi chegar aqui, mas não me vitimizo em qualquer momento. Me nego a ocupar o espaço marginalizado que a sociedade cotidianamente me coloca e busco construir um mundo melhor tanto para mim, minha filha e todos os companheiros de rua, tão silenciados pela mediocridade das políticas públicas. Vou seguir realizando meu trabalho na esperança de dias melhores.