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“A pandemia me pegou em um momento muito desafiador”

A pandemia me pegou em um momento muito desafiador. Eu havia abandonado a faculdade de Hotelaria alguns anos antes, porque eu precisava trabalhar.

A maioria das pessoas me chamam de Juli. Nasci em Salvador. Morei um tempo em Feira de Santana com minha família, mas a música trouxe o meu pai de volta para o Candeal.

Meu pai, músico, foi um dos fundadores da Timbalada. Mas a música, infelizmente, não é suficiente para sustentar as pessoas. O sonho da maioria da população que nasce no Candeal é viver de música. Mas, infelizmente, as oportunidades não chegam para todos da forma que se espera e muitos se frustram — foi o que aconteceu com o meu pai.

Houve um tempo que a única alternativa para ele foi sair do país. Dos EUA, ele mandava dinheiro para que minha mãe e eu — que chegamos a tentar ir morar com ele, mas não conseguimos, — nos mantivéssemos. Com esse dinheiro foi que compramos nossa casa. Eu não achava a minha infância estranha, mas, hoje, ao olhar para trás, eu consigo identificar coisas que passaram despercebidas.

O racismo estrutural no Brasil

Como eu tive o privilégio de crescer no Candeal, tive acesso a curso de inglês, aulas de violino e estudei em colégio particular. O dinheiro que meu pai conseguia fazer no carnaval, era destinado a pagar as mensalidades de todo o ano letivo da escola. A gente não sabia o que iria comer durante o ano, mas a escola estava paga. E era esse “bastidor” que reverberava na maneira como eu identificava e enfrentava pequenas e grandes diferenças entre mim e meus colegas, como, por exemplo, o fato de que todo mundo tinha um celular e eu não tinha — e isso gerava exclusão.

Meus colegas não me incluíam porque eu sequer sabia sobre o que eles falavam. Com 9 anos, eu pedi para que alisassem o meu cabelo porque todas as referências ao meu redor eram de cabelos lisos — tanto na família quanto na escola — e eu pensava ter algo de errado comigo e com o meu cabelo. Isso só mudou quando eu acessei a universidade e tive contato com outros questionamentos e passei a fazer reflexões sobre tudo isso que eu, antes, não percebia.

Eu me limitava muito por medo da opinião alheia. Deixava de ser quem eu era para que minhas tias, por exemplo, não falassem e nem me julgassem mal. Quando mudei para um colégio público, meus colegas marcaram de ir ao cinema. Como eu não tinha dinheiro, resolvi vender brigadeiro para conseguir.

Ainda lembro do orgulho que meu pai sentiu de mim por isso. Daí para a frente, comecei a lidar com vendas e ir vendendo outras coisas. Descobri esse gosto e talento.

Os problemas gerados pela pandemia

Eu havia abandonado a faculdade de Hotelaria alguns anos antes, porque eu precisava trabalhar. Meu pai só estava tocando em casamentos — quando tinha casamento —, recebendo R$100 por cada cerimônia… se um mês tem, em média, 4 fins de semana, ele receberia R$200 no mês se conseguisse tocar em duas festas.

Nesse ponto, eu já ganhara um irmão. O dinheiro não era suficiente. Nem o xerox da faculdade eu conseguia tirar, por isso, também, tranquei o curso. Além disso, eu, que escolhera Hotelaria por acreditar que me renderia maiores oportunidades por ter inglês fluente, já firmara a certeza de que queria mesmo Psicologia. Passei a trabalhar com vendas de suplementação alimentar.

Como já disse, eu amo vender e me sentia bem exercendo aquele ofício. Mas, por conta da pandemia, a emprese fechou.

Isso me deixou sem chão — mas, não só isso. Meus pais, há alguns anos, já estavam se desentendendo. Acontece que meu pai estava adoecendo lentamente. Ele tinha dificuldade de lidar com o fato de não conseguir manter sozinho a nossa casa e ter eu e minha mãe sendo as principais mantenedoras. Hoje, eu entendo que isso despertou nele um processo depressivo — que o fez se sentir estagnado.

Emocional abalado pela pandemia

Tentamos de tudo para ajudá-lo, mas quanto mais a gente tentava, mais ele ficava estagnado. Ele sempre bebeu, mas passou a beber cada vez mais. Eu sofria com isso, mas não dava vazão, me ocupava com o trabalho. Quando eles se separaram, isso me afetou absolutamente, porque sou muito apegada à minha família. Caí de vez… nesse momento eu iniciei um processo de depressão profunda. Não dormia nem de dia e nem de noite — só conseguia chorar.

Fazendo terapia, entendi que eu não via o meu pai como um ser humano, mas como sobre-humano — por isso, não entendia a dor dele. Quando meu pai saiu, ele não pensou em muita coisa. Eu entendo que ele não estava bem, mas ninguém estava. Todo esse peso recaiu sobre a minha mãe. Ele retornou para os Estados Unidos — onde mora até hoje — para reencontrar um irmão dele que estava lá, na tentativa de reconstruir a vida dele — ele dizia que não tinha mais nada.

Depois que ele foi embora, ele e minha mãe voltaram a conversar e reataram o relacionamento — à distância.

A partir disso, algumas coisas começaram a melhorar, inclusive, porque ele começou a mandar dinheiro. Apesar disso, eu continuava no mesmo estado. A minha maior dificuldade nesse período é que eu sou uma pessoa muito sensível. Quando eu tentava recuperar as forças, eu declinava novamente. Não conseguia constatar os fatos, as pessoas morrendo, tantas tragédias juntas. Tudo aquilo me assustava e eu só conseguia chorar. Pensava “como morre tanta gente e ninguém faz nada?”.

Já não sou a mesma de antes da pandemia

Por mais que eu evitasse assistir aos jornais, a energia parecia mais tensa e eu sentia e absorvia isso. Esse foi o start para eu buscar uma conexão com a minha espiritualidade. Parei de me voltar tanto para fora e me voltei para dentro. Foi aí que eu consegui voltar à superfície. Eu sentia como se algo estivesse me segurando até que eu me reestabelecesse.

Chegamos a viajar durante a pandemia e, ao chegar lá, descobrimos que a família toda estava doente, mas eu, minha mãe e meu irmão, não tivemos nenhum sintoma e ajudamos a cuidar deles. Eu não tive medo do vírus, mas me sentia desesperada pela quantidade de mortes. Ficava me perguntando como as pessoas estavam encarando tudo isso, principalmente quem perdera pessoas, porque era uma dor muito grande.

Já sei que não sou mais a pessoa que eu era. Não tenho como voltar… não sei sequer como estão os meus laços de amizade e nem como serão, porque assim como não sou mais a mesma pessoa, tenho certeza de que os meus amigos também não são. Não tem nem como se manter igual. Mesmo sem ter perdido alguém próximo, não tem como não se sentir “perdendo algo”.

Aprendi que nós precisamos fazer uns pelos outros. Por mais que a dor seja grande, precisamos olhar para fora, porque, talvez, a dor do outro seja ainda maior do que a nossa. Eu tenho esperança de que as pessoas melhorem, que nada do que vivemos seja esquecido.

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“Tudo o que está acontecendo já era predestinado”

Relato de Margarida Silva, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Tragédias como pandemia e vulcões que estão acontecendo no mundo, tudo já estava predestinado a acontecer, e virão, ainda, outros desastres pelo que eu sei. Logo, a solução é se prevenir e esperar, ver o que é que Deus tem pra fazer com cada um de nós, porque ninguém tá livre de nada. Só que eu não tenho medo, apesar de esperar viver mais tempo, ainda. Eu perdi uma irmã há pouco tempo, ela tinha 90 anos, nem óculos usava. Fazia até labirinto, um bordado feito em grades.  

Quando eu me casei, tinha medo de morrer e deixar os meus filhos pequenos sofrerem o que eu passei. Eu e outras irmãs passamos por isso. Hoje, quero viver até a hora que Deus achar que está bom. Embora eu tenha alguns problemas, a minha mente não foi afetada. Ao contrário, a minha mente é lúcida, tranquila. Tudo o que eu fiz, tudo o que eu consegui, foi já depois de idosa. Eu era louca para estudar, terminar meus estudos e não conseguia. Trabalhava muito, era aquela correria toda. Até que decidi fazer um concurso. Passei na Fundação Educacional, terminei o segundo grau, fiz curso de inglês, tudo depois de idosa, com 50 anos. 

Enfim, tudo o que eu consegui, hoje não preciso mais, graças a Deus. Hoje, estou só curtindo. Minha mente está boa, eu resolvo tudo sozinha. Eu vou ao banco, eu vou para todo o canto que eu tiver de ir e vou sozinha. 

Destino predestinado

Nasci em Fortaleza, no Ceará. Cheguei em Brasília em 1967, depois que meu pai faleceu. Eu e minhas irmãs ficamos desgarradas, porque ele já tinha outra família, havia casado pela segunda vez e tinha um monte de filho pequeno. Eu e minhas irmãs já éramos adultas. Fiquei em Fortaleza trabalhando com bordados para uma espanhola.

Um dia, após a morte do meu pai, cheguei de roupa preta à casa da espanhola, para trabalhar, quando ela me perguntou: “o que foi que houve? Porque você está com essa roupa?” Respondi: “é porque meu pai faleceu”. Eles se conheciam. Ela, então, me sugeriu uma viagem, dizendo que eu estava muito abatida. Eu disse que queria ir para outro canto, então ela me disse que arranjaria, mas se fosse numa casa de família.

Só queria sair dali um pouco. Queria ser enviada ao Rio ou à Bahia, porque era onde ela tinha parentes. Entretanto, o destino estava predestinado. A espanhola me enviou à Brasília com um pessoal. Eu vim e, logo em seguida, arranjei meu namorado aqui. Sei que abri caminho em Brasília para a maioria do meu povo. Hoje, eu tenho uma sobrinha formada em Relações Internacionais, com mestrado na Inglaterra, e morando na Ceilândia. Ela trabalha na ONU, aqui em Brasília. Ou seja, todo mundo que veio para minha casa, saiu bem empregado.

Racismo

Eu não tinha ninguém por mim, era só eu e Deus. Eu vim pra cá confiando em Deus, porque a família do meu marido é branca. Meu marido era loiro do olho azul e os parentes dele não gostavam de mim, por causa da minha cor. A família dele não me tolerava. Eu não sabia que o nome para isso era racismo.

Meu marido era simples demais, muito tranquilo, o mundo podia pegar fogo, e ele era o último que saía da casa, ele não tinha pressa para nada. Eu sempre fui mais agoniada, queria resolver as coisas rápido. Tanto que, uma vez, eu disse a mim mesma: eu vou fazer o concurso, nem que seja para limpar chão, eu quero.

Pra dizer a verdade, nada na vida me marcou tanto, porque eu tinha cuidado. A vida me obrigava a ter cuidado comigo mesma, porém, nunca tive medo. Nunca deixei de ir ao mercado, à farmácia ou à igreja. Alguma coisa me dizia que eu não ia pegar a Covid. Talvez, um ser tenha me dado essa luz que eu não ia ter Covid, porque eu rezava muito por mim e por eles. A minha filha, que é o meu braço direito, também não pegou Covid. Eu sempre dizia: “meu Deus, cuida da minha filha, cuida do meu filho, pois eles precisam trabalhar”.