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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Prta

A pandemia me machucou bastante

Quando a pandemia ainda não tinha chegado ao Brasil, eu já estava acompanhando as informações, por ser jornalista. E os dados que nós temos hoje sobre a pandemia são levantados pelo observatório de imprensa. Isso evidencia a importância desse ofício, tão atacado pelo governo vigente. Em 2019, eu atuava como assessor parlamentar de um deputado, que não se reelegeu e, por isso, fiquei desempregado.

Tenho 31 anos, nasci em Salvador, que é uma terra que eu amo, mas que não me ama. Digo isso por uma série de questões estruturais.: sou cristão, filho de pastor – mas costumo dizer que sou um cristão sem frescuras, porque eu bebo, xingo, fumo, transo e acredito em um ser que não me julga por essas questões. Tenho uma fé que, acima de tudo, acolhe e aceita as diferenças. 

Sou jornalista e, apesar de saber, me esforçar e receber feedbacks sobre a minha competência profissional, eu ainda carrego um complexo de inferioridade que me atrapalha bastante, mas que não me impede de realizar. Sou cantor, compositor, músico… também sou ativista, de vez em quando – porque ativismo não paga boleto. Desde cedo, o que me fez ser taxado como “rebelde” foi o fato de eu nunca ter aceitado a missão de ser exemplo. Eu nunca quis ser exemplo de nada – e meus pais queriam que eu fosse. 

Laços de família

Normalmente, só falo com as pessoas que tenho intimidade. Minha família era muito humilde. Lembro que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, meu pai ficou desempregado. Eu e meu irmão fomos matriculados numa escola em tempo integral, que ficava do outro lado da cidade. Acordávamos às 4 da manhã e chegávamos em casa às 20h/21h. Sem dinheiro para pagar passagem, subíamos no ônibus pela parte de trás, com o caderno dentro de um saco, e descíamos em um ponto muito distante e completávamos o trajeto até a escola caminhando.

Era um processo delicado. Na escola, me batiam e praticavam bullying comigo – em um tempo que nem se chamava de “bullying”. Aturei essas situações por algum tempo, até que um dia eu me revoltei e a introspecção se tornou violência. Passei a revidar as agressões. Apesar de gostar de estudar, eu não era estudioso, porque eu assimilava o ambiente da escola a algo parecido com uma cadeia. Ainda assim, passei a me envolver com o grêmio estudantil. 

Perdi vários anos na escola – era reflexo de eu estar tentando me encontrar em casa e me encontrar em meio aos questionamentos que a sociedade fazia sobre mim. Minha mãe faleceu em 2014, vítima de um infarto. E eu presenciei a passagem dela. Tínhamos acabado de chegar da igreja, ela tinha pregado naquele dia. Ela pregou sobre um texto que dizia:

“Deus amou o mundo de tal maneira que deu Seu Filho unigênito para que todo aquele que Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.

E nesse dia ela pereceu. E eu questiono a morte da minha mãe até hoje, porque sempre fui um ser questionador. Meu maior exemplo de fé era a minha mãe e de conduta cristã, o meu pai. A rigidez do meu pai me tornou mais introspectivo. 

Eu trabalhava no Pelourinho antes da pandemia

Eu trabalhava no Pelourinho como cinegrafista de turismo. Um amigo, que foi recrutado no colégio, pelo Gapa, para um processo de formação, me falou sobre a capacitação. Eu quis participar, mas já não havia mais vagas – mesmo assim, insisti. Após o curso, me tornei arte educador, trabalhando com música, através do hip-hop, e foi no Gapa, através das oficinas temáticas, que eu comecei a me enxergar enquanto pessoa preta, e perceber as diferenças de raça, de gênero e tudo mais que existia e ainda existe. 

Passei a estar muito mais atento aos preconceitos. Cheguei a cursar o técnico em música na UFBA e saí de lá, justamente, porque sentia que as pessoas tinham um pensamento muito elitista. Quando ingressei na faculdade de jornalismo, passei por dificuldades. Ia de bicicleta, ou tentava entrar no ônibus sem pagar, negociava com o motorista. Eu ainda não entendia muito do que se passava, mas a maneira como as pessoas me liam era consequência do racismo, dessa ideia de que o homem preto não tem sensibilidade. 

Quando namorei com uma mulher negra de traços finos, lida pela sociedade como branca. Eu, mais retinto, de cabelo crespo, traços negroides, enfrentava um tipo de preconceito, que eu nem sabia que era preconceito, quando perguntavam se eu era o segurança dela. Hoje, em outro relacionamento há 7 anos, ainda sinto essa falta dessa aceitação social. 

Do carnaval à pandemia

Como, na comunicação, eu tenho bastante possibilidades – trabalho com audiovisual, fotografia, jornalismo “convencional” e mais uma série de coisas – busquei trabalho como freelancer. Cheguei a participar da cobertura do carnaval para a Secretaria de Turismo. No penúltimo dia de carnaval eu me tranquei em casa e não saí mais – somente para o que era essencial. 

Moro com meu o irmão, mas nós sequer nos vemos. Eu passo o tempo dentro do quarto, e ele tem uma rotina de trabalho de uma média de 9h – do trabalho ele vai para a academia e quando chega, eu continuo no meu quarto. Segui isolado. A única pessoa com quem convivi durante quarentena foi a minha namorada, que, em home office, foi ficar comigo, não na minha casa, mas no meu quarto. Isso foi muito doido, porque a gente se conhecia, mas não tão intensamente – não dividindo por tanto tempo o mesmo ambiente. 

Eu sou um cara muito ativo, mas me vi mais uma vez ficando introspectivo, porque estava sem saber como lidar com essa fase de autoconhecimento, na qual eu conheci partes de mim que não gostei. Na mesma proporção em que eu desgostava da minha própria personalidade, eu passei a só olhar para mim, não conseguia enxergar a minha companheira. Estávamos afastados de tudo. 

Tive que depender do auxílio emergencial

O desemprego, que me forçou a depender do auxílio emergencial, também foi um fator de incômodo. Eram conflitos internos e externos. Cheguei a viajar quando surgiu uma proposta de trabalho a mais de mil quilômetros de Salvador e era a minha única saída – ou eu ia, ou a situação financeira ficaria ainda pior. Passei pouco mais de um mês fora e voltei. 

O meu maior medo na pandemia foi perder – tanto para o vírus quanto para os desafios da convivência – a pessoa que eu mais gosto depois de mim – a minha companheira. Foi uma fase muito difícil, de muito desentendimento. Mesmo estando no mesmo lugar, ficamos muito distantes. Não conseguíamos mais ter compreensão, cumplicidade. 

Eu venho de um processo de depressão muito grande, então, eu me cuido para não voltar a ter um pico de depressão severa. E tudo isso que passamos, me machucou bastante, porque dói viver isso com quem a gente ama. Mesmo assim, as pessoas me procuravam em casa pedindo ajuda, porque, como falei, sou ativista social – sou coidealizador do Coletivo Social Fábrica de Rimas – e sempre tentei apoiar a comunidade. 

Conseguimos pensar em estratégias, criamos a Geladeira Solidária, uma iniciativa que repercutiu na imprensa e foi copiada por instituições, até mesmo em outras cidades. Quase 800 famílias foram ajudadas por esse projeto.

O desejo de um futuro próspero após a pandemia

Eu quero conseguir construir um futuro para mim no qual eu tenha o suficiente para prosperar as pessoas que eu amo e, se eu constituir uma família, não deixar que eles passem pelo que eu passei. Infelizmente, eu acho que as pessoas sairão dessa pandemia mais egoístas.

Em compensação, penso que as pessoas se olharão mais.

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Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Mulher Cis Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“Ajudem o próximo, tem muita gente passando dificuldade”

Da forma que a gente pode, precisamos ajudar o próximo durante a pandemia da Covid-19, pois são muitos os necessitados. Eu faço parte de um movimento de moradia e ,durante os últimos meses, conseguimos ajudar cerca de novecentas famílias.

Por isso, gostaria de dizer a vocês que ajudem o seu próximo. Então, procure saber das pessoas que precisam de ajuda e doem o seu melhor. Nesses tempos é preciso nos unir para o bem de todes. Por fim, usem máscara e evitem aglomerações.

Leia mais: “Precisamos de cestas básicas durante a pandemia”

Imagem colorida de mães de pessoas puxando uma corda juntas para o relato sobre ajudar gente durante a pandemia.

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor São Paulo

“Não podemos perder mais pessoas por causa de fome e frio”

Não quero aceitar que vamos perder mais pessoas por causa de fome e frio. Em pleno dia da semana, a imagem mais dolorosa que vi em 2020: Tudo fechado e ruas lotadas, às 7 horas da manhã, na esquina da igreja Santana. Muitas pessoas, uma atrás da outra, em uma fila que não tinha fim, cruzava a esquina e descia a Cruzeiro do Sul. A maioria, composta por homens negros, aguardava por um pão e um copo de café.

Eu já tinha passado ali muitas vezes. Trabalho com a população de rua há 10 anos pelo SUS e quando saio do plantão faço sempre esse caminho. No meio da multidão muitos rostos conhecidos e de muita gente que nunca vi. 

Estava tão frio, acredito que era o dia mais frio do ano. Senti vergonha, abaixei a cabeça e passei por eles, com a sensação de impotência. Passando perto de quem estava descalço naquele frio horroroso, senti vergonha de estar calçada.

Eu sempre me revolto com o mundo, e quanto mais estudo mais a ignorância deixa de me proteger. Não aguento sentir a desigualdade social aumentar.

Solidariedade

Vejo a vulnerabilidade social como um problema de todos. Por isso, acionei alguns amigos e lá fomos nós para as ruas alguns dias depois. Daquela realidade que me assombrou, a união levou comida, roupas, cobertores, máscaras, descartáveis água, lanches e doces em uma comitiva de 5 carros Muita gente envolvida! E foi assim que conheci mais pessoas que também realizam esse trabalho, e de forma organizada. Fui até inserida em um grupo de WhatsApp, em que os coletivos e religiosos se organizam. Através de uma planilha, cada um vai anotando aonde e que horas vai fazer a ação.

Povo do axé com o povo do amém, em um único lugar, todos pelo mesmo objetivo, e no maior respeito. Essa galera não deixa na mão. Já fui buscar doação em todos os tipos de residência, mó galera diversificada, esforçada e importante. Tenho certeza que, por eles, ninguém passaria fome e frio. A galera sem teto os chamam de boca de rango, sempre envolvidos com falas de carinho e um momento de escuta prazerosa… essa galera é sem palavras, sempre correria!

Sou redutora de danos, a fome é um dano que dói, que desorienta, que desorganiza a pessoa, sei bem como é a dor da fome e por isso não consigo passar sem ver. Muitos falam que é uma fraqueza minha, “ser muito boazinha”, mas nessa pandemia utilizei todas as minhas forças. Não consegui parar nem por um dia. O cansaço bateu por diversas vezes, mas a cada dia agradeço a Xangô, que me guia, e sinto esse Axé em mim.

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Homem Cis Rio de Janeiro

“A pandemia nos trouxe uma solidariedade que estava estocada em algum lugar”

Eu já fui do escritório para o home office. Desde 15 de março é em home office que nós estamos trabalhando. E tem funcionado. Graças a Deus essa questão do trabalho não é um problema.

No início, eu fiquei com muito receio. Muito medo. Muito medo. Mas, depois, acho que… talvez eu tenha me acostumado. Me centrado mais, meditado mais. Então, fui me acalmando. O medo ainda existe para me trazer cautela, mas a fobia grande já passou.

Catadores do Bem

O projeto social Catadores do Bem começou em 2012, ali de forma bem tímida, entre amigos que reuniam verba de outros amigos para comprar cestas básicas. Nosso público, nosso pessoal, nossos assistidos, sempre foram catadores de material reciclável. Então a gente quis trazer para os catadores aqui do nosso bairro – Irajá, zona norte, subúrbio do Rio de Janeiro – uma visibilidade maior.

“Como assim você só quer me entregar uma cesta básica?”

Nós sempre os víamos catando, ali pela manhã, em dia de coleta de lixo, e íamos até eles oferecendo cesta básica. No início foi muito difícil, porque eles tinham muitas suspeitas: “como assim você só quer me entregar uma cesta básica?”, “você tem algum partido político?”, “precisa do meu CPF, RG?”. “Não preciso de nada, só vou te entregar esse papelzinho aqui, que é uma senha, e no dia tal você aparece naquele endereço que você vai ganhar uma cesta básica”.

E ao longo dos anos a gente foi criando vários vínculos, afetivos mesmo, com esses trabalhadores, e a gente foi aumentando. Lá no início a gente conseguia, sei lá, dez cestas básicas. Hoje nós atendemos 90 famílias. Esse “bum” aconteceu há uns dois, três anos atrás. A gente começou a se organizar melhor. Acho que na época a gente assistia vinte famílias. E falamos: vamos organizar isso aqui. Aí a gente se mobilizou para ter mais voluntários. Hoje a gente tem trinta voluntários por evento. Já chegou a cinquenta voluntários. Um grupo de mobilização online. Tem um site bem específico para voluntariado, que é o Atados, eles nos ajudam. A gente oferece uma vaga: “ó, a gente precisa de voluntário para essa ação, em tal lugar”. E alguém lá se inscreve e participa do projeto.

Solidariedade muito além das cestas básicas

Além das cestas básicas, que é o pilar da nossa organização, a gente oferece materiais de segurança de trabalho – capacete, luva, corda -, damos carrinhos para eles conseguirem coletar e armazenar melhor os produtos que vão coletando. A gente trás também para eles, além da visibilidade, um reconhecimento.

A gente descobriu, através de pesquisa, que os catadores de material reciclável – que a gente vê pelas ruas de toda a cidade – são responsáveis por 90% da coleta de material reciclável do Brasil. Eles são agentes ambientais totalmente desvalorizados.

E são famílias muito humildes, muitas que criaram seus filhos, seus netos na coleta. E que pela primeira vez estão sendo reconhecidos. Pela primeira vez estão sendo vistos como trabalhadores, como pessoas responsáveis. São autônomos, estão ali produzindo sua renda.

Além disso, a gente também faz encaminhamento para a pessoa tirar certidão, identidade, CPF, depois leva para o Bolsa Família, fazer cadastro. Sempre tentando levantar aquela família. A gente dá cesta básica porque a gente entende que a renda que eles tinham acabado de produzir ainda é muito curta, também por causa do preço, que é muito desvalorizado, então a gente dá esse complemento.

A gente quer que eles tenham o direito assegurado, que é o Bolsa Família. E é incrível que até hoje a gente encontra famílias que não têm o Bolsa Família.

No centro do Rio de Janeiro, que é uma cidade grande, capital, e ainda tem gente sem RG, CPF. A gente vai lá e ajuda, aí eles tiram. As crianças precisam estar na escola, então os pais dão atestado de que estão na escola, lá da Secretaria direitinho. É uma exigência nossa, e isso vai trazendo mais senso de responsabilidade para eles também.

Credibilidade

A gente conseguiu, mesmo sendo um projeto social em que você precisa fazer o depósito em uma conta que é um CPF, uma pessoa física, a credibilidade das pessoas cresceu muito com o nosso projeto. Muito, muito, muito.

Eu posso dizer que em oito anos é a primeira vez, agora, mês passado, que a gente conseguiu o apoio de uma empresa, que deu para a gente 314 cestas básicas. Isso foi um marco para a nossa história.

Eu, que sou o Caio, sou fundador do projeto e sou administrador. Eu trabalho com administração de empresas. Então para eu estar no projeto faço questão de ter transparência financeira. “Olha, esse é o nosso extrato bancário. Isso é o que aconteceu na nossa conta. O que saiu, o que entrou, é isso”. E isso fica disponível para todo mundo responder, palpitar. Que afinal a gente também não pode esquecer que é pessoa física.

Acho que até agosto isso muda, do papel de ONG, já crescemos muito, muito, muito, precisamos realmente criar um novo formato, mais profissional, mais maduro, até para que a gente consiga ter mais ajuda de empresas.

Café da manhã, gincana, oficina

Um evento que a gente faz sempre no segundo sábado do mês acontece da seguinte forma: a gente recebe os cadastrados e eles participam do café da manhã. Normalmente tem…tinha, antes da pandemia, uma gincana de empatia, de entrosamento, de voluntários, em que as pessoas assistidas tinham oficina de penteados afro, para as mulheres, os homens, se sentirem belos, se identificarem como belos mesmo, aumentar a auto estima. Oficina para crianças, para pais ficarem à vontade lá. E ao fim desse evento, que dura a manhã toda, os voluntários chegavam oito horas da manhã e vão sair uma hora da tarde. E no tempo ocorrem oficinas. Ocorriam…antes da pandemia. Isso motivou muito.

Durante a pandemia, a gente precisou mudar o formato da gincana. Se não me engano, nossa oficina foi dia 14 de março, então a gente ainda tinha acabado de entrar ali, mas aconteceu – talvez por não saber exatamente o que era aquilo – acabou acontecendo. Em abril, nós já dispensamos o café da manhã e as oficinas. Nos concentramos apenas em fazer o cadastro, revisar os dados das pessoas e entregar cestas básicas. E desde então tem sido apenas isso. Sem café da manhã. Para diminuir também o número de voluntários. A gente ainda precisa deles, mas conseguiu reduzir bastante o número de voluntários participando.

Reduziram o quilo do plástico em 50%

Em abril, eram 60 famílias. Por causa da pandemia, a gente aumentou para 90 famílias. Porque eles ficaram sem renda. Os ferro velhos estavam fechados. Os pouquíssimos que abriram reduziram o quilo do plástico em 50%. E foi só diminuindo, diminuindo. Um valor que já é muito precário foi reduzindo ainda mais.

Agora em julho a gente conseguiu dar duas cestas básicas por família. Conseguimos apoio, além de duas cestas básicas, para dar um vale alimentação, para eles irem no mercado, para eles terem autonomia de comprar o que quiser no mercado. Biscoito para criança, leite, bolo, terem essa oportunidade também, não só ficar recebendo cesta básica, eles poderem escolher. E também estamos com um projeto para em setembro entregar um cartão de renda mínima, que a gente conseguiu com o projeto Pimp My Carroça, Cataki, que também apoiam trabalhadores autônomos catadores de material reciclável. Então vai ser um cartão de R$650, acho que 67 famílias foram aprovadas para receber. Para receber foi uma triagem muito grande.

A gente faz hoje parceria com ferros velhos. Os ferros velhos indicam pessoas, seu José, dona Maria, eles vendem aqui, de fato eles são catadores. Porque ainda mais em tempos de pandemia, muita gente desempregada, muita gente realmente necessitada, se fazia passar por catador. E como a gente é muito pequeno, não somos nem uma ONG, somos um projeto de amigos ainda, a gente se concentra em catadores. Nós queremos atender catadores. Não podemos ainda talvez salvar todo mundo. Então a gente foca ali nos catadores, talvez a grande parte esteja com a gente desde o início, isso é muito significativo para a gente.

“Olha, eu não preciso mais da cesta básica, posso abrir minha vaga para alguém”

É muito bacana quando uma pessoa consegue emprego, por exemplo, e ela vem até a gente e fala “olha, eu não preciso mais da cesta básica, posso abrir minha vaga para alguém, consegui um emprego bacana, qualquer coisa, se eu precisar voltar eu volto, tudo bem”. Eles têm esse senso de importância, sabem a dificuldade que é para dar todo mês o valor necessário.

É no sábado, né, e na sexta-feira à noite a gente teme não bater, mas a gente sempre bate. Nem que seja sábado de manhã aparece algum dinheiro, bate. Para render mais o dinheiro, a gente não compra cesta básica pronta. A gente vai no Atacadão, vai no mercado de atacado, compra produtos para a nossa cesta, até porque a nossa cesta é muito diferenciada, vai ter absorvente para as mulheres, vai ter produto de higiene, hoje vai ter detergente, vai ter água sanitária, justamente para conscientizar sobre a limpeza na pandemia.

A gente percebe muita preocupação dos catadores. Todos – podemos dizer que moram em comunidades, em favelas do Rio de Janeiro – têm a preocupação, mas não entendem total o perigo que está acontecendo. Mas desde abril nós entregamos máscara para eles, então em abril receberam, maio receberam, junho receberam. Para que possam não ter só uma, que possam limpar, trocar, dar para alguém, dar para um filho, a família toda utilizar. Isso é um projeto de educação mesmo, a gente está tentando passar para eles, alertar para eles.

Mesmo sem os eventos, a gente está ali

Está todo mundo com muita saudade dos eventos que aconteciam, da alegria que acontecia. Em junho teria nosso arraia, que é uma baita festa, aluga cadeira, mesa. É uma alegria sem fim. Não vai acontecer, infelizmente. Festa de dia das mães, dia dos pais, que foram inviabilizadas pela pandemia. Mas a gente está ali.

É legal que eles percebem a nossa persistência. A gente está aqui, com voluntários, correndo risco junto com vocês. A gente faz questão de estar aqui, todo mundo se cuidar, todo mundo vir de máscara, para participar aqui é necessário estar de máscara. E acredito que a gente seja muito valorizado por eles. É um afeto, realmente um afeto, que circula ali no nosso meio. E é extremamente cativante. Os voluntários vem e ficam no projeto. A rotatividade de voluntários não é grande, isso é um sinalizador muito bacana. Alguns voluntários de mais idade não puderam participar durante esse processo de pandemia, então os mais jovens estão com a gente nessa força tarefa.

Solidariedade em dias de pandemia

Está sendo tudo diferente do que a gente planejou para este ano, mas, ao mesmo tempo, a gente conseguiu saltar de 60 para 90 famílias. Tudo isso porque a gente ficou com muito medo. “Cara, será que a renda vai diminuir?”, “Tem muita gente perdendo emprego”, “Tem muita gente sendo prejudicada, de verdade”.

Mas aconteceu totalmente o contrário. Isso eu escuto dos nossos parceiros: a solidariedade em dias de pandemia aconteceu muito e os projetos puderam crescer. As famílias que perderam emprego, e algumas que já tinham sido catadoras voltaram a ser catadoras para manter se manter. E puderam ser assistidas pelo projeto. Justamente porque a solidariedade aumentou, a arrecadação aumentou.

Fomento empresarial à solidariedade

A ajuda que as empresas nos deram agora em julho foi fundamental. A gente conseguiu dar duas cestas básicas para os nossos catadores, conseguiu dar renda que eu falei. E nós distribuímos para outros projetos. “Isso já está suficiente. O que a gente faz com isso? Quem está precisando? Quem são nossos parceiros? Há pessoas que fazem um projeto parecido com o nosso e são de confiança?”. Nós conseguimos dar 110 cestas básicas. Isso para mim é emocionante demais. A gente conseguiu fazer muito pelo projeto que eu participo, e ainda fazer muito pelo outro projeto do outro.

Como falei, até março, eu sei o que é juntar dinheiro para 110 cestas básicas. É muito dinheiro: a gente está falando de uns 4 ou 5 mil reais. Uma cesta básica da nossa qualidade, né. Porque no nosso projeto de julho nós recebemos cestas básicas, mas não tinha por exemplo itens de higiene, absorvente, que é fundamental para as mulheres, não tinha fralda, que a gente dá todo mês para as mães, item de higiene, limpeza. Então, com o dinheiro que a gente conseguiu, nós fomos lá e complementamos para que a cesta não diminua o padrão. Nós temos um padrão altíssimo de qualidade, vamos manter esse padrão.

Pós-pandemia?

O pós-pandemia ainda é uma incógnita para mim, tenho muitas suspeitas. Mas, o que eu posso observar, e quero defender, é que a pandemia nos trouxe uma solidariedade que estava estocada em algum lugar.

Por que esse dinheiro não aconteceu antes? Por que os voluntários não chegaram antes? “Então, no pós pandemia, por favor, não vai embora, que a gente vai continuar precisando de vocês”. Porque a gente não quer sair de 90 e voltar para 60 famílias. E essas 30, vão para onde? Vão fazer o que? Então é uma coisa que eu quero muito focar no projeto, que isso se mantenha.

Nós somos capazes de ser mais solidários. Nós estamos comprovando isso. Os projetos parceiros estão comprovando isso. Mesmo com toda a crise econômica que encostou em todo mundo de alguma forma, a solidariedade aumentou.

Higiene

Acho que no pós pandemia a noção de higiene vai ficar mais apurada, vai ficar mais aguçada. Então, por exemplo, água sanitária, detergente na minha cesta, não quero mais tirar. Não sei como a gente vai pagar isso, mas não quero mais tirar.

E a gente vai aprendendo muito de pouquinho em pouquinho também. Há uns dois, três anos atrás, falaram, uma mulher pediu “será que vocês podem dar absorvente?”. Falei, caramba, lógico que a gente tem que dar absorvente. Há quatro anos não tinha café da manhã. Aí a gente estava na dinâmica do cadastro, de dar a cesta, e uma mulher falou: “preciso ir embora, não como desde ontem, então não estou me sentido bem, preciso ir embora comer alguma coisa”. Cara, se a gente quer que eles fiquem aqui felizes, a gente precisa dar café da manhã para eles, óbvio. Mas passou a ser óbvio naquele momento. A gente aprendeu com eles e desde então nunca mais largou isso.

Saúde

E acho que a valorização da saúde também vai ficar muito marcante no pós pandemia, acho que eles vão valorizar muito mais quando a gente entregar luva para eles, bota de proteção para eles, porque o cuidado com o corpo, a consciência do corpo pode estar mais aguçada. Isso é uma resistência que eles têm muito grande. Queriam só o carrinho, e desvalorizavam itens de segurança. Mas agora, com o medo que eles estão, mesmo não tendo talvez a noção total, eu acredito que vão valorizar isso.

Então para mim são esses dois pontos: a valorização da saúde por parte dos catadores e uma vontade de colaborar, ser voluntário, ajudar projetos que você confie por parte toda a sociedade.

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18 a 24 anos Ceará Ensino Médio Completo Mulher Cis Prta

“As atividades do MTST nos territórios ficaram mais intensas”

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) sempre atuou nos territórios com diversas ações, fossem elas solidárias ou culturais. Em função da pandemia, essas atividades ficaram mais intensas.

Iniciamos uma vakinha online para que conseguíssemos comprar cestas básicas e produtos de higiene. Contamos também com doações de produtos, fabricamos e distribuímos máscaras, organizamos uma cozinha comunitária e realizamos sarais virtuais.  

Eu sempre fui uma militante ativa: participava de todas as atividades e, na pandemia, também não fiquei parada. Então, participei de todas as atividades, entreguei cesta básica e produtos de higiene, distribuí máscaras, organizei e apresentei quase todos os sarais.  

Antes de mais nada, fazer a distribuição de coisas tão básicas era como levar alegria para aquelas famílias.

Foto enviada por Maria Eduarda Rodrigues, em que aparecem duas pessoas com uma bandeira do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. A foto acompanha relato da Memória Popular da Pandemia sobre as atividades do MTST na como a distribuição de máscaras e cestas.

Não podíamos nos abraçar por conta da pandemia, mas nós comunicávamos através de olhares, sorrisos escondidos pelas máscaras e um “MUITO OBRIGADA!”.

É uma certeza de que não podíamos nos tocar e muito menos nos ver fisicamente, mas esses agradecimentos já enchiam o coração de esperança.  

Em conclusão, a pandemia trouxe o agravamento da falta de coisas que já tinham antes, como a falta da política pública na saúde e na habitação. Mas nada disso nos desanimou, pelo contrário, só nós deu mais motivos pra lutar. 

Leia também:

“Surgiu um convite para a cozinha comunitária. Aceitei na hora. Queria ajudar e fazer parte de algo” – Maria Antonia Rodrigues | Dona de casa – Pacatuba (PE)

“Me aproximei oferecendo o celular pra fazer o pedido do auxilio emergencial do governo” – Luciana Paiva Coronel | Professora – Porto Alegre, RS

“Deixa quem quiser chamar de assistencialismo. Eu digo que é uma emergência, fome tem pressa” – Vânia Rosa | Presidente do Coletivo Rua Solidária – São João de Meriti, RJ

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40 a 59 anos Branca Mulher Cis Pós-Graduação Completa Rio Grande do Sul

“Me aproximei oferecendo o celular para fazer o pedido de auxílio emergencial do governo”

Moro num apartamento térreo de frente. Os papeleiros vinham pegar o lixo seco. Me aproximei oferecendo o celular pra fazer o pedido do auxilio emergencial do governo.

Muitos não tinham documentos, mas pediam água para beber e lavar as mãos. Então, passei a pegar máscaras com um amigo militante e aproveitava para oferecer.

Às vezes, alguns voltavam com os documentos e eu fazia o cadastro do auxílio emergencial. Assim, passei a ter sempre pão e frios para oferecer.

A rotina dos dias da coleta seletiva tem sido sempre de visita, porque faço o acompanhamento dos pedidos, que seguem “em análise”. Criamos uma rotina de apoio. Dou álcool e máscaras sempre que posso. Conversamos enquanto lavam mãos, ou aguardamos o registro dos dados para acompanhar os pedidos.

Eles me fizeram sentir menos sozinha nessa pandemia. Precisei viajar e fui de coração apertado: como iam fazer pra lavar mãos e acompanhar pedidos de auxílio emergencial?

Quando voltei, o Luís me saudou, dizendo que sentira a minha falta. Ri, e brinquei que ficar sem beber água e de mão suja é bem pior. Ele, meio sem jeito, falou que não era só isso; que era muito bom ter alguém pra conversar.

No pós-pandemia, inverter o sentido

Um dia, quando o isolamento terminar, queria fazer o trajeto de volta às suas casas ou à rua com eles. Saber onde moram e como vivem. Inverter o sentido dos passos que os traz até minha casa para conhecer um pouco mais da cidade que não vemos e não conhecemos.

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40 a 59 anos Branca Ensino Fundamental Completo Mulher Cis Rio de Janeiro

“Deixa quem quiser chamar de assistencialismo. Eu digo que é uma emergência, fome tem pressa”

Gostaria de trazer uma coisa que tenho percebido nesse período de quarentena. Ativa atendendo na rua com um grupo de voluntários, o primeiro momento dessa urgência que a pandemia de Covid-19 trouxe é o enfrentamento à fome.

O que pode ser feito efetivamente nesse momento é atender. Deixa quem quiser chamar de assistencialismo. Eu digo que é uma emergência, fome tem pressa. É impossível alguém raciocinar, caminhar, com estômago vazio. Com fome. Isso para qualquer ser humano, esteja ele na cobertura ou na calçada no papelão.

Por isso, em função da pandemia, eu fundei um coletivo: Rua Solidária RJ 2020. Assim, foi preciso a gente se organizar. Em cada ação, tivemos um número diferente de voluntários. Mas, de um modo geral, a gente tem ido à rua para ações pontuais – numa média de 15 a 20 pessoas. Até porque não pode ser muito mais do que isso para não caracterizar aglomeração.

Além da fome; direitos sociais destruídos

A pandemia trouxe o agravamento da falta do que já tinha antes: a falta da política pública na saúde, na habitação. Mas o lado solidário move o projeto e todas as ações com a rua.

Lá na frente, precisamos juntar para que isso se torne mais uma pauta. Porque a saúde está destruída. A assistência social como um todo também está. Essa parte que o governo deveria estar fazendo. Deveria estar vendo habitação. As ocupações ampliaram, porque a necessidade pediu.

E fortalecer um comitê, para que ele seja implementado e, depois, possamos estar lutando por algo mais dentro dele. O Comitê Intersetorial – uma união de todas as secretarias unidas trabalhando juntas para solucionar os problemas a população de rua – será mais necessário do que nunca. Aí sim, essa luta pode se definir de forma positiva.

Solidariedade e laços da pandemia

Eu gosto sempre de falar do lado bom. A vida – principalmente nesse segmento da população de rua – que antes já e era difícil, com a Covid-19, se tornou mais.

Gostaria de deixar registrado que a luta enfrentada tem que ser histórica. Há solidariedade. Houve mobilização. Sensibilizadas pela situação atual, pessoas mudaram o modo de ser e de pensar.

Está ocorrendo um encontro de pessoas. Pessoas que antes da pandemia se desencontravam, batiam de frente. Hoje elas formam laços, caminhando na mesma ponte em função do mesmo objetivo: ajudar o mais necessitado.

Os próprios moradores de rua não se dividem mais em ponta de concentrações como costumam fazer. Eles se organizaram, se conscientizaram, a partir de quem foi levando as informações – sociedade civil, projetos e ONGs. Quero deixar isso bem claro, porque é admirável o trabalho feito por eles junto a essa população. É emocionante.

Essa força, energia, luta, empoderamento vai ficar tirando as coisas ruins. O melhor que se pode aproveitar – no bom sentido – vai vir pós-pandemia. É quando essa rua toda empoderada vai poder se juntar com outros movimentos sociais, outras frentes de luta.

Não se iludam, porque eles estão fortes e fortalecidos. 

Eu sou militante, ativista dos direitos humanos e da população nas situações de rua. Presidente fundadora do projeto Juca e do Coletivo Rua Solidária. Sou cozinheira e artesã.