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18 a 24 anos Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis Prta

“A pandemia me trouxe muito medo, mas me trouxe a esperança”

Meu nome é Sendy. Tenho 22 anos, sou goiana, mulher preta e lésbica. Sou usuária de drogas, filha de moradores de rua, moro em casa alugada na Ceilândia, periferia do Distrito Federal.

Alguns meses antes de começar a pandemia, minha vida estava começando a se alinhar financeiramente, mas, com a chegada do vírus e o distanciamento social, eu acabei sendo dispensada do trabalho. 

Perdi minha mãe muito nova, infelizmente e, com isso, tive muitas responsabilidades desde cedo. Eu e meus irmãos ajudávamos minha avó nos serviços e responsabilidades em casa. Uma das nossas principais responsabilidades era cuidá-la. Minha avó tinha depressão devido ao imenso sofrimento que teve diante das tentativas de tirar minha mãe das drogas e da rua. Infelizmente, essa história acabou em desastre: minha mãe foi assassinada em 2014. 

Na época, eu não conhecia meu pai e com a morte da minha mãe, passei a ter medo de não poder conhecê-lo e esse medo só aumentava com o passar dos anos. Em 2016, minha madrasta encontrou minha irmã e eu pelas redes socias. Ela falou sobre a realidade em que vivia e que meu pai estava privado de liberdade. 

Em 2017, minha avó faleceu. Com isso, eu e minha irmã tivemos que morar com minha madrasta. Moramos juntas de 2017 a 2019, ano em que tentei morar sozinha. Porém, com a pandemia, tive dificuldade em me manter e voltei a morar com elas.

Quando a pandemia começou, em 2020, os riscos do vírus dentro do sistema prisional eram grandes. Por isso, após alguns meses, o meu pai estava em casa morando com a gente. Todos estávamos muito felizes, mas com o vírus circulando e o isolamento social, tivemos que passar a maioria do tempo dentro de casa e com o passar dos meses a convivência foi se tornando complicada. 

A saúde mental de todos estava abalada com tantas dificuldades: dificuldades de pagar as contas em dia; dificuldade de uma fonte de renda fixa…O pouco que conseguíamos receber era para pagar as contas de casa e essa situação ficou assim por um período.

A cada encontro eu aprendo algo com todos, todas e todes. Acredito que da mesma forma aprendem comigo também. É sempre uma troca de experiência e saberes.

Dias melhores virão

Nessa época, a minha madrasta conheceu uma organização não governamental (ONG) Tulipas do Cerrado. Eu sempre via uma alegria muito grande quando minha madrasta falava sobre as Tulipas do Cerrado. Ela sempre me falava que era uma rede de acolhimento entre mulheres, que eu deveria conhecer também. 

Com o passar do tempo, elas começaram a fazer seus encontros de convivência e de autocuidado, seguindo as recomendações de segurança dos Órgãos de Saúde para prevenir a infecção pelo vírus da Covid-19. 

Em um dado momento, decidi participar de um desses momentos. Essa escolha mudou muito a minha vida, positivamente. A cada dia que eu estava junto com as Tulipas, eu tive crescimento pessoal, comecei a ter mais empatia com o outro, olhar para tudo e para todos de uma forma diferente da que eu estava acostumada, estive aberta a entender um pouco da realidade de todas as pessoas assistidas pela ONG: trabalhadoras sexuais, mulheres trans, pessoa em situação de rua, usuários de Drogas, demais pessoas da comunidade LGBTQIAP+. 

A cada encontro eu aprendo algo com todos, todas e todes. Acredito que da mesma forma aprendem comigo também. É sempre uma troca de experiência e saberes. Há alguns meses, estive na minha primeira formação em redução de danos e dali em diante fiquei mais interessada em querer estar mais perto e em ajudar no cuidado de pessoas que conheceram e estiveram junto da minha mãe, na rua.

Hoje faço parte de projetos voltados para o cuidado na perspectiva da redução de danos junto à ONG Tulipas do Cerrado e ao Coletivo Aroeira. O Aroeira trabalha com redução de danos e Agroecologia Urbana. A cada dia me encontro mais nessa caminhada. 

São esses projetos que me ajudam financeiramente para eu conseguir pagar meu aluguel. Como eu tinha dito, a convivência na casa  com meu pai e minha madrasta não estava boa. Conversamos e foi decidido que era melhor eu e minha irmã morarmos juntas em outra casa, pois a situação não estava boa pra ninguém. 

São esses projetos dos quais eu faço parte que me ajudam financeiramente. Posso afirmar que meu ingresso nesses projetos mudou bastante a minha vida. Eles me trouxeram uma melhora pessoal. 

A pandemia me trouxe muito medo de tudo, mas ao mesmo tempo me trouxe a esperança de acreditar que dias melhores virão e que é nisso que temos que acreditar. 

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Prta

“Entendo a frase de Clarice Lispector que diz: ‘Brasília, uma prisão ao ar livre’ pois quando caminho no centro percebo que ressoa a dor”

Meu nome é Eveline, mas desde sempre me chamam de Vivi. Nunca entendi, pois não é um apelido derivado do meu nome, mas hoje sei que a Vivi viveu tantas coisas, vivi e estou VIVA, superando as estatísticas.

Tenho nível superior incompleto, cursando Direito. Vim de um lugar de privilégios, mas hoje ocupo o lugar da não existência, onde os nossos direitos são chamados de benefícios, onde o que foi reservado como resolução para nossos problemas foi o direito penal.

Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre

Vida na rua: uma prisão ao ar livre

Eu moro em Brasília, mas sou nordestina de corpo e alma. Nasci em Teresina (PI), a capital verde do Brasil. Fui atravessada ainda menina nesta mudança de lá para o Distrito Federal. Minha mãe não tinha mais condições de ficar em Teresina, por causa de um processo muito doloroso de separação com meu pai e eu, que era a filha mais nova, tive que vir com ela.

Hoje, depois de muitos anos, entendo a frase de Clarice Lispector que diz: “Brasília, uma prisão ao ar livre!” pois quando caminho no centro da capital, percebo que ressoa a dor. Sou mulher usuária de crack em processo de resistência e enfrentamento há oito anos. 

Não utilizo a palavra limpa porque ela é higienista e nos coloca num lugar de seres imundos, sem humanidade e que é de extrema crueldade. Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre.Sou uma mulher preta. Eu não sabia que era preta, mas descobri num processo também de muita dor. Sou preta! Sou uma mulher periférica e hoje moro em Ceilândia Norte, onde – segundo o rap Cirurgia Moral, grupo que narra a realidade do nosso cotidiano aqui de baixo, “os versos do reino da morte ditam a sorte, nossa vida já é escassa em Ceilândia Norte”, onde o corre da sobrevivência é duro, onde é comum acordar e dormir pensando no que fazer para não deixar filho, neto, enteado e todos os que estão em torno de nossa vida à mercê da sorte, onde as mulheres resistem.

O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana

Vida na rua e no cárcere: cultura punitivista e proibicionista

Eu saí da rua em 2015, meu companheiro de vida e caminhada havia sido privado de liberdade e eu precisa dar suporte a ele, que é um homem negro, pobre e saiu de casa aos nove anos de idade. Foram 34 anos de rua, rua e grades e vice e versa. 

Viver o cárcere foi outra dor extrema. Crescemos dentro de uma cultura punitivista e proibicionista, que faz controle de corpos por meio de uma política de miséria, da qual a guerra e as drogas fazem parte. Todo o tempo que meu esposo ficou naquele lugar, eu fui a chefe de família, a mãe, a avó, a madrasta. 

Passei por um câncer no colo do útero e a cada dia surgia uma nova dificuldade. O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana. O que chega para sociedade não é a realidade, nem do processo penal e muito menos da execução da pena. Mas eu somente compreendi isso quando vivi. 

Foram tempos difíceis. Ali meu melhor amigo e parceiro de vida estava submetido a todo tipo de violação. Não só ele como todas as pessoas privadas de liberdade neste país, principalmente as mulheres, que são abandonadas pela sociedade machista e patriarcal. Antes de tudo a sociedade nos pune por sermos mulheres. 

No sistema prisional, nós, familiares, somos também aprisionados e eu estava mesmo adoentada, me virando para poder suprir as necessidades da minha família, me alimentar, ter onde morar, não perecer. Eu fazia faxina, cozinhava para eventos, fazia trabalhos freelancer, de domingo a domingo incessantemente.

São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito

Luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista

Em 2019 eu cheguei no limite de minha sanidade mental e fui acolhida pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento. Foi nesse espaço que eu senti a potência dos movimentos sociais. Eu não sabia como funcionava e somente acreditei que existia um lugar para familias de pessoas privadas de liberdade e sobreviventes do sistema prisional quando vi com os meus próprios olhos aquelas pessoas que faziam resistência e enfrentamento de forma coletiva. 

Quando cheguei no encontro, realizado no final daquele ano, em Fortaleza -CE , conheci muitos movimentos: o Coletivo Vozes do Cárcere, Elas Existem, EuSouEu, AMPARAR, RENFA e também as Tulipas do Cerrado

Nunca imaginei que ali eu encontraria o abraço, o acolhimento, inclusive a subsistência através do apoio coletivo dos movimentos e organizações que compõem essa luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista. São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito. 

Naquele dia minha vida mudou, principalmente em relação à solidão que eu vivia na caminhada do cárcere. Conheci tanta gente incrível e que vem me ensinando tantas coisas. Uma delas foi Juma Santos. Nunca deixarei de citá-la porque as Tulipas do Cerrado é um dos lugares que hoje para mim é vida.

“O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada”

Pandemia: sem emprego, sem perspectivas

Quando a pandemia do Covid-19 chegou, fiquei sem fazer as faxinas, sem os freelancers e, se não fosse por essa rede de apoio, eu e minha família teríamos ficado sem amparo. Através destes movimentos, foi garantido a sobrevivência, a minha e tantas outras mulheres, sobreviventes da rua, do cárcere, o povo LGBTQIAP+ que sofrem e vivenciam grandes violações, abandono e são excluídos de forma muito cruel. 

No início da pandemia, meu esposo voltou para casa, em regime domiciliar. O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada.

“Não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19”

Rede de apoio: seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo

As Tulipas do Cerrado fizeram uma intervenção que foi crucial na mudança de visão de vida e de amparo na vida de meu esposo. Aliás, acolheu nossa família e estamos seguindo de pé por termos esses lugares de resistência, bem como a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, que vem trazendo também formas de fortalecimento para nós familiares. 

Nada sobre nós sem nós, seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo, se cuidando juntas (os) e juntes. E hoje sei a importância da redução de danos nas nossas vidas. Sim, eles “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de ficar vivas (os) e vives! ”. 

A pandemia trouxe dificuldades muito piores para nós, mas eu posso falar que não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Prta

“Eu não conseguia mais pagar aluguel e fui morar na rua”

Eu me chamo Bruna. Sou mulher cis preta, tenho 26 anos, mineira, resido em Planaltina, no Distrito Federal (DF), possuo ensino fundamental incompleto e sou redutora de danos.

No começo da pandemia do Covid-19, eu achava tudo maravilhoso, já que minha mãe, que trabalhava em um hospital regional pela Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (FUNAP/DF), onde surgiu a primeira vítima do Covid-19 no DF, foi afastada do serviço por ter comorbidade e fazer parte do grupo de risco.

Porém, desse dia em diante, muita coisa mudou. A pandemia se alastrou em Brasília, no Brasil e no mundo, matando milhares de pessoas. A minha vida também passou por transformações: eu não conseguia mais pagar aluguel e fui morar na rua.

Na rua, eu só aprendi coisas ruins: usei drogas, consumi muita bebida alcoólica, caí na farra. Contudo, também tive coisas boas: conheci pessoas legais. Na época em que eu estava na rua, minha mãe estava presa e isso mexeu comigo. Ela era tudo o que eu tinha para me manter firme. Eu queria visitá-la, mas não conseguia. 

“Gostaria de agradecer aos profissionais da saúde, cientistas e governantes que têm trabalhado muito para garantir a saúde e combater a pandemia. Eles têm toda a admiração e apoio desta ex-moradora de rua”

Volta por cima: apoio e trabalho para garantir o sustento da família

Foi uma fase muito difícil até eu conseguir me organizar para o retorno da minha mãe para casa. Nesse período eu conheci algumas pessoas que me deram oportunidade de trabalho, participei de alguns projetos nas Tulipas do Cerrado e no Coletivo Aroeira, que me ajudam, esclarecem minhas dúvidas.

Eu vejo que estou crescendo a cada dia, é crescimento pessoal e foi graças a essas oportunidades que hoje me sinto vitoriosa: eu pago meu aluguel, junto meu dinheiro, cuido da minha mãe e não moro mais nas ruas.

Além disso, com a ajuda de amigos que me orientaram, passei a receber a Bolsa Família, um benefício que eu não sabia que poderia ter e que tem me ajudado muito.

Sou grata a Deus e a essas pessoas, que também têm sido meu apoio para progredir na vida. Mesmo com muitas dificuldades causadas pela pandemia, eu me encontro saudável, cuidando da minha mãe, estudando e trabalhando para garantir o nosso sustento.

Por fim, gostaria de agradecer aos profissionais da saúde, cientistas e governantes que têm trabalhado muito para garantir a saúde e combater a pandemia. Eles têm toda a admiração e apoio desta ex-moradora de rua.

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40 a 59 anos Distrito Federal Ensino Médio Completo Mulher Cis Parda

“Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade”

Eu sou Gilmara, mais conhecida como Juma, apelido que ao longo dos anos se transformou meu nome social. E é assim que prefiro ser chamada. 

Minha história não tem nada a ver com as narrativas mostradas em novelas ou em contos de literatura. Ela vem imbuída de uma realidade incrivelmente assustadora e cativante. Como qualquer criança, também tinha meus sonhos e fantasias. Mas muito cedo, mais precisamente com dez anos, tive de lidar com situações demasiadas complexas para uma criança, como por exemplo o falecimento de minha mãe, que aconteceu durante uma de suas saídas solitárias de Alexânia, local onde morava, próximo a Brasília, cidade que ainda é meu lar.

Passei por uma série de violações de direitos por parte do Estado e tudo se apresentava como um grande obstáculo à minha frente. A mim eram negados os direitos fundamentais: à moradia, à uma boa alimentação, ao lazer, à infância, à segurança, à saúde

Situação de rua

Desde muito cedo tive que aprender a cuidar de mim e, por mais nova que fosse, já entendia a importância de continuar os estudos. Desde aquela época, eu tive a rua como lar e isso durou muitos anos. Ainda em situação de rua, frequentei a escola regularmente até conseguir completar a sexta série do ensino fundamental. Eu passava o dia na instituição, com minha pequena bolsa na qual carregava cadernos, livros, diversos lápis e objetos pessoais, meu verdadeiro “estojo de identidades”.

Morar na rua não era nada fácil, mas eu me reinventava a cada dia e posso dizer que resistência é o meu sobrenome. Passei por uma série de violações de direitos por parte do Estado e tudo se apresentava como um grande obstáculo à minha frente. A mim eram negados os direitos fundamentais: à moradia, à uma boa alimentação, ao lazer, à infância, à segurança, à saúde. Na rua, entendi o motivo pelo qual o uso de drogas se faz tão presente e todas as dores que esse uso esconde.

Posso dizer que ela [minha filha] tem sete pais, pois naquela noite chuvosa sete homens forçaram o livre acesso ao meu corpo. Na época eu tinha apenas 13 anos de idade e os homens eram policiais. Pessoas que, teoricamente, deveriam me proteger, eram os meus algozes

Uma filha, reunião de tudo que era mais bonito e sincero

Neste contexto de violações, tive minha filha, que reunia tudo de mais bonito e sincero que eu tinha dentro de mim. Posso dizer que ela tem sete pais, pois naquela noite chuvosa sete homens forçaram o livre acesso ao meu corpo. Na época eu tinha apenas 13 anos de idade e os homens eram policiais. Pessoas que, teoricamente, deveriam me proteger, eram os meus algozes. 

No ímpeto de querer propiciar um melhor ambiente para o desenvolvimento de minha filha, deixei-a com uma conhecida, com a qual sabia que poderia ofertar um contexto melhor para seu crescimento. Essa foi uma entre tantas decisões difíceis que se materializaram em meu caminho. 

Conheci o trabalho sexual e com ele todo o glamour de se sentir conhecida e bem remunerada. Mas esse período também culminou em uma face mais complexa do uso de drogas. Já estava estabelecendo uma relação problemática com esse consumo e a violência estava cada vez mais presente no meu cotidiano e na rua. 

Justamente neste momento fui presa e digo que, no meu caso, esse fato serviu para despertar em mim a vontade efetiva de mudança. Não existia nada naquele local que me empoderava e eu precisava sair dali, voltar para minha filha.

Foi pensando neste período de minha história que sinto novamente a necessidade de aprofundar meus conhecimentos por meio do ensino superior e vejo neste sonho uma excelente oportunidade para minimizar as vulnerabilidades que passei

Recomeço: trabalho com redução de danos

Ao sair do sistema prisional e, com o passar dos meses, me descobri redutora de danos, profissão que levo comigo até hoje, dezesseis anos depois. A Redução de Danos pegou minha história de vida, experiência, liderança, e sobretudo, a minha vivência com as drogas e fez daquilo um instrumento de trabalho. 

A partir daí comecei a me dedicar ao trabalho com pessoas que fazem uso de drogas. Eu exerço esse trabalho por amor e quero me aprofundar cada vez mais nele. Já com esta grande descoberta de profissão, veio a necessidade de terminar os estudos e consegui. Foi pensando neste período de minha história, que sinto novamente a necessidade de aprofundar meus conhecimentos por meio do ensino superior e vejo neste sonho uma excelente oportunidade para minimizar as vulnerabilidades que passei e uma chance de dar continuidade a outros sonhos.

Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade.(…) Eu não consigo segurar minhas lágrimas e fico agoniada ao pensar em minhas companheiras que estão em situação de rua

Chegada da pandemia e a depressão

Eu sou mãe, avó, ex moradora de rua e ex usuária de drogas. Com a chegada do Covid-19, conheci a depressão e a ansiedade. Passei a usar antidepressivos. Eu não consigo segurar minhas lágrimas e fico agoniada ao pensar em minhas companheiras que estão em situação de rua, com as mulheres que são provedoras de lares tendo que se colocar nas ruas para manter sua sobrevivência. 

Eu, em momento algum, pude me colocar em isolamento pois há um grupo grande de mulheres que são acolhidas por mim. E, apesar de estar nos cuidando desse público, tive a sorte de não me contaminar com o Covid-19. Porém, é grande o sofrimento ao ver algumas de nossas entes queridas morrerem por causa dessa pandemia.

Me nego a ocupar o espaço marginalizado que a sociedade cotidianamente me coloca

Retrato da resistência e da ressignificação de vida

Diante de tudo que aconteceu em minha história, vejo o quão difícil foi chegar aqui, mas não me vitimizo em qualquer momento. Me nego a ocupar o espaço marginalizado que a sociedade cotidianamente me coloca e busco construir um mundo melhor tanto para mim, minha filha e todos os companheiros de rua, tão silenciados pela mediocridade das políticas públicas. Vou seguir realizando meu trabalho na esperança de dias melhores.

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25 a 39 anos Distrito Federal Parda Pós-Graduação Completa

“Na pandemia, a Tulipas do Cerrado começou a distribuir alimentos e produtos a grupos em vulnerabilidade social”

Sou Victória, mulher cis parda, tenho 26 anos, sou enfermeira, especialista em saúde mental, álcool e outras drogas, e redutora de danos voluntária na organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado desde 2019. Resido em Ceilândia, periferia do Distrito Federal e irei fazer o relato a partir dos impactos que a pandemia trouxe à ONG.

Antes da pandemia, a ONG Tulipas do Cerrado realizava ações de redução de danos nas ruas, em territórios vulneráveis, com foco nas pessoas em situação de rua, profissionais do sexo e população LGBTQIAP+. Além disso, a organização estava se inserindo nos ambientes de festas, com a oferta de acolhimento e atendimento às pessoas que estavam sob efeito de álcool e outras drogas, bem como realizava ações de redução de danos (oferta de água, frutas, informações de saúde) para o público que frequentavam as festas. 

A Tulipas do Cerrado também realizava cursos, seminários e oficinas em volta das temáticas: redução de danos; guerra às drogas; trabalho sexual; cuidado à população em situação de rua; atenção à saúde da comunidade LGBTQIAP+

Pandemia: ações na rua deram lugar a atendimento psicossocial e arrecadação de alimentos

Porém, com o surgimento da pandemia do novo Coronavírus e as medidas de enfrentamento focadas no distanciamento social e na quarentena, a instituição ficou dois meses fora das ruas, o principal local das ações. Nesse período, realizamos mobilização pelas redes sociais para adquirir doações de roupas, produtos de higiene pessoal, alimentos não perecíveis, cestas básicas e água, para que pudéssemos entregar em domicílio esses insumos para as pessoas que estavam sendo acompanhadas pela ONG. 

Ainda naquele tempo fora das ruas, a organização passou a oferecer atendimento psicossocial online. A ONG conta com uma equipe multiprofissional voluntária de profissionais da saúde que tem experiência em cuidado em saúde mental na perspectiva psicossocial e de redução de danos, da qual eu faço parte. Essa atividade tinha os objetivos de dar suporte e escuta qualificada às pessoas que estavam em sofrimento mental e em situações de agudização de quadros de ansiedade e/ou depressão causadas pelo impacto da pandemia (isolamento, pobreza, insegurança, mortes…). Esse trabalho envolvia também o encaminhamento dessas pessoas para a Rede de Atenção Psicossocial do Distrito Federal e Entorno, para dar continuidade no cuidado e acessar outros profissionais, como psiquiatra e terapeuta ocupacional.

Doações

Em meados de abril de 2020, a Tulipas do Cerrado começou a distribuir doações de alimentos, roupas, máscaras e álcool em gel a grupos de trabalhadoras sexuais cis e transgênero, chefes de família, que estavam em vulnerabilidade social decorrente da pandemia. A entrega de cestas básicas, cesta verde e ticket alimentação ocorrem mensalmente com a ajuda de múltiplos parceiros da rede.

Em 2020 e 2021, a Tulipas do Cerrado participou de editais que possibilitaram a implementação de projetos voltados a prevenção do Covid-19, redução de danos e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, com foco na população em situação de rua e trabalhadoras sexuais. 

Com os recursos financeiros adquiridos, foi possível: custear medicamentos para alívio de sintomas do Covid-19 às mulheres assistidas pela instituição; pagar gás de cozinha para as que não tinham condição de obter por conta própria; e oferecer ajuda de custo àquelas que estava indo aos territórios para realizar as atividades do projeto.

Atualmente, as atividades da Tulipas do Cerrado têm sido possíveis com a ajuda de outras organizações e coletivos, bem como com o financiamento de projetos. Mesmo que nossas atividades estejam aquém do que projetamos antes do surgimento da pandemia, creio que estejamos realizando da melhor forma que tem sido possível e, apesar das dificuldades, temos conseguido reduzir os danos sociais e de saúde e provocar melhorias na qualidade de vida das pessoas que são acompanhadas pela ONG.