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40 a 59 anos Amazonas Ensino Médio Completo Mulher Cis Parda

Quando pegamos o peixe, não vendemos, porque não tem ninguém que compre

Eu sou Deuzenira de Souza e Souza, conhecida como tia Deca. Eu nasci no interior, vim pra Parintins muito cedo. Estudei no Colégio Aderson de Menezes, no Brandão de Amorim e passei pelo Colégio Batista. E, assim, trabalhei por dois anos como professora, parei porque veio os filhos e não tinha quem cuidasse, mas foi tudo bom.

Também não tenho muitos filhos, só tenho dois, perdi um, só tenho uma. Aí já veio os netos e os bisnetos, e cá estou. Gosto de ajudar as pessoas, me esforço pra ser uma boa pessoa, ser justa e assim vai. Quando veio a pandemia, a gente sentiu muito.

A chegada da pandemia

Eu perdi pessoas queridas, perdi dois cunhados, um primo que tinha sido criado junto comigo na mesma casa. O mais sentido é que foi enterrado naquelas valas, sem ter direito de um enterro digno. Muito triste, mas foi o jeito a gente se acostumar, porque a gente não estava acostumado a ficar em uma prisão, né!? Que a gente não podia sair pra canto nenhum, que era tudo ali naqueles minutos, naquelas horas.

Então tem tudo isso daí, mas não pode ser muito, né!? Porque o vírus ainda está por ai. Tem gente também que até agora não tomou a primeira nem a segunda dose, tem medo. Eu já tomei as duas, se vier a terceira eu tomo.

Vivendo de peixe

Aí quando a pandemia tenta passar, nós, aqui em Parintins, nos deparamos com a doença do peixe da urina preta. Aí, como meu marido é pescador, se tornou novamente difícil, entendeu? Porque aqui ninguém trabalha, a gente depende da pescaria.

Quando pegamos o peixe, não vendemos, porque não tem ninguém que compre. Então, é difícil, não é fácil não. Mas a gente espera em Deus que tudo melhore, que tudo mude, pro mundo, para as pessoas. E espero também que, as pessoas que ainda não tomaram a vacina, que vá, que tome, que obedeça e que use máscara para podermos sair dessa doença maldita.

Eu acho que é uma maldição

É isso que eu tenho de falar, porque não é fácil. Passei horríveis na pandemia, em alguns momentos eu só queria gritar. Mas a gente tem que ter muita fé em Deus mesmo, porque só ele, o socorro vem dele, né?

E aí, se a gente não tiver fé nele, não tem uma outra pessoa. Ele que sabe se a gente possa sair na rua sem máscara, sem um vidro de álcool, sabe? Para a nossa vida voltar ao normal.

Porque aqui na nossa cidade vem o Boi, vem o festival. Para nós pudermos ir olhar, sabe? Já que há dois anos não tem. Então é ruim até para nós, pra todo mundo aqui da cidade. Como é que vai trabalhar? Não foi só eu que sofri, foi todo mundo – artistas inclusive.

Peço a Deus que passe logo, que a gente possa viver a nossa vida normal. Que tem gente que ainda tá teimoso, que vai, que anda, que não usa mais máscara. Mas eu não faço. Eu acho que eu já estou tão acostumada que, se eu sair na rua, tem que ser de máscara.

Então, bora confiar em Deus e a gente tem que fazer também a nossa parte, pois, se não fizer, não anda.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Mulher Trans Prta

“Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas não era verdade”

Me reconheci como trans em 2002, entre 13 e 14 anos, quando tomei meu primeiro hormônio escondida.

Sou de Ilhéus, mas moro em Salvador desde 2014. Sou graduada em Educação Física. Tive dificuldade de conseguir emprego na área de formação, por isso, passei a atuar na área de ‘telemarketing’.

Estou envolvida no ativismo trans desde 2008. Minha relação com meu pai não é tão boa. Os pais criam expectativas sobre os filhos, de forma geral, e quando esse filho é trans (ou até mesmo cis-gay), eles acreditam que não terão netos, uma descendência. Já com a minha mãe, tenho uma relação de amizade.

Se reconhecer como uma pessoa trans

Roubava calcinhas da minha irmã, para usar e sair na rua. O que foi definitivo para eu saber que sou trans tão cedo, foi o fato de ter referências, como Roberta Close, uma mulher trans da minha cidade, que viajou para a Itália e depois retornou transformada — quando eu nem sabia o que era silicone.

 A partir dessas referências, pude entender ser aquele corpo, aquela forma que eu queria assumir. Elas — mulheres trans famosas e precursoras na visibilidade — foram muito importantes para muitas se verem nelas, assim como nós somos e seremos importantes para outras. Durante o ensino médio enfrentei dificuldades com o preconceito e cheguei a evadir devido à discriminação, visto que eu era impedida de acessar o banheiro feminino, sendo a única trans da escola — tinham muitos gays.

Às vezes eu tinha que sair da escola para usar o banheiro da casa de uma colega que ficava do lado — já cheguei a urinar na roupa.

Também tive questões com o ensino de disciplina ligada à religião, que usava de práticas evangelísticas e cristãs, cujo discurso era transfóbico e não contemplava outras religiões.

Uma juventude conturbada

Voltando a falar da minha relação com a minha mãe… é muito fraternal. No início houve a não aceitação, mas as coisas mudaram, principalmente, quando me tornei a única filha – entre mais 3 mulheres e 4 homens cis – que se formou numa faculdade.

Isso é motivo de orgulho para mim, e motivo de orgulho para ela, ainda mais tendo outros filhos que se envolveram no mundo do tráfico.

Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas percebeu, na prática, que isso não era uma verdade. Por isso, costumava dizer que — “eu não lhe dava orgulho em um ponto (por ser trans ) — mas dava orgulho de outras formas”

Eu precisei tentar compreender muitas falas dela, como essa.

Entender que ela já é uma mulher de mais de 60 anos e sua formação foi outra. Eu passei a interpretar não apenas o que ela dizia, mas o que ela queria dizer. Esse acolhimento é importante, inclusive, devido ao que minha mãe já sofreu, sendo agredida e espancada pelo meu pai, em um contexto machista e de subserviência. Entretanto, ela sempre foi batalhadora… não esperava pelo meu pai, mas ia à luta, trabalhava e fazia todo o possível para trazer o sustento para a nossa casa.

As dificuldades de uma pessoa trans

Depois de um tempo eles se separaram, e nós, os filhos, ficávamos com ela. Após me formar no ensino médio, trabalhei na Secretaria de Educação.

Lá, tive meu nome social respeitado.

Experiência importante para que eu me posicionasse na faculdade, em Itabuna, quanto a preservação do nome social — eu e uma colega fomos as primeiras trans da faculdade a termos o nome social na caderneta — e, também, quanto ao uso do banheiro feminino.

Estagiando no SESI, em Ilhéus, em 2011, não era aceita como mulher trans, mas tratada como homem cis gay.

Era difícil não ter o meu nome respeitado, mas eu precisava daquele dinheiro, porque não queria ter que me prostituir, como já havia feito algumas vezes.

Em 2014, mudei para Salvador e saí do SESI, mas retornei em 2016. Foi quando eu disse que só aceitaria voltar se tivesse a minha identidade de gênero plenamente respeitada, o que me foi negado, de modo que recusei me submeter àquela condição de trabalho.

O mercado de trabalho para pessoas trans

De volta a Salvador, encarei a dificuldade de conseguir um emprego. Dizem que a culpa é da falta de formação, mas quando formamos, continuamos amargando o desemprego. Isso é cansativo… marcas, empresas e instituições que se promovem se afirmando inclusivas porque oferecem um curso, uma oficina, mas que não mudam a realidade e nem oferecem o que realmente precisamos, que é trabalho.

Passei a atuar na área de telemarketing, mas como o dinheiro só é suficiente para pagar as contas básicas, ainda faço alguns trabalhos de prostituição. Durante a pandemia de Covid-19, mantive a minha rotina de trabalho, porém, com todas as limitações impostas pelos protocolos sanitários de prevenção ao coronavírus.

Tive medo, mas não me infectei pelo vírus. Eu cheguei a sair, sim, durante o lockdown, até por uma questão de necessidade. Eu sentia urgência em aproveitar a vida, que é tão curta. Mas prezei por minha mãe, que estava em Ilhéus, em quarentena.

Não tive nenhuma perda significativa de pessoas. Apenas conhecidos distantes, o que, de alguma forma, me entristecia, mas não impactava tanto. O que realmente me impactou foi, já em 2021, ter ficado desempregada. O que garantiu o meu sustento fora os clientes que mantive enquanto garota de programa.

Os anseios do pós-pandemia

As ajudas dos projetos e iniciativas sociais, que ofereceram cestas básicas para pessoas em vulnerabilidade, incluindo pessoas trans, também foram de suma importância para eu conseguir passar por esses momentos de isolamento social.

Usei o tempo em casa para aprender a cozinhar melhor, fazer cursos online e estudar — aproveitei para assistir filmes, séries e aprendi a me cuidar mais e dar valor a minha vida.

Quero muito conseguir voltar a trabalhar e dentro da minha área de formação.

Desejo tocar projetos sociais e de ativismo que ajudem as minhas iguais, e espero o momento em que esse presidente saia do cargo, para podermos ressignificar tudo ao nosso redor, retomando políticas públicas e enfrentando o preconceito e a discriminação.

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40 a 59 anos Bahia Branca Ensino Médio Completo Mulher Trans

Nós, mulheres travestis, juntas, temos força

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Chamo-me Ranella Marcia, tenho 50 anos, sou virginiana, moro na Pituba (BA) e sou casada há 26 anos.

Meu histórico de vida é de muita luta.

Orgulho-me de ter superado a expectativa de vida de uma travesti, que neste país é de 35 anos. De ter superado, também, a marginalização que nos nega o amor e a relação estável.

A luta de uma travesti por respeito

Sempre fui muito “para frente”. Sempre me entendi como travesti, mesmo sem saber direito o que significava.

Fui muito criticada por “não ter limites” e mostrar quem era. Esperei um tempo para me tornar a mulher que eu queria em respeito a minha avó.

Eu me identificava muito com revistas. Fazia diversos recortes — adorava recortar imagens de bonecas de biquíni, roupas e fazer colagens. Minha avó nem sequer me deixava chegar na cozinha, pois não era “coisa de homem” — os papéis eram muito bem definidos.

Quando ela se foi, em 1994, eu “explodi”. Conheci meu marido nessa época. Eu sabia que gostava de homem.

Logo, me reconhecia como uma mulher heterossexual. Hoje, me considero bi, porque entendi que o que importa é o prazer, independente de quem seja.

Processos de se reconhecer como travesti

Por um tempo, quando morei em Cajazeiras, tive uma vivência de gay afeminada, bem louca, o que chamam hoje de “lacradora”. Tanto que era conhecida como “Xuxa da Cajazeira 8”.

 Isso porque, antes, só se considerava como travesti as pessoas que tinham uma estética realmente feminina, com cabelo grande, silicone e seios. Estudei a troncos e barrancos, porque sofria bullying e agressão. E não era só agressão verbal, mas física. Mesmo assim, sempre fui uma liderança no colégio. Fazia parte do teatro e jogava futebol — isso fazia com que eu conseguisse fazer amizades.

Já no segundo grau, comecei a ter problemas com o uso do banheiro. Além disso, comecei na prostituição. Por diversas vezes, após assistir às aulas, troquei a farda pela “roupa de puta” dentro próprio colégio e fui para as ruas da Pituba.

Quando estagiei nos Correios fui muito discriminada.

Foram idas e vindas pelo período de dois anos. Após conhecer o homem que hoje é meu marido. Fomos morar no Centro e eu parei de estudar. As idas e vindas também foram uma constante quando morei na Itália.

Ao retornar definitivamente, participei de um curso na área de Administração. Lá, questionei: “o curso já temos, e o emprego?”. Como resposta, questionaram a minha formação: “como vocês querem emprego se vocês não estudam?”. Foi nesse momento que decidi retomar os estudos e concluir o segundo grau. Após ocorrido o, me coloquei como uma liderança.

Fui a primeira travesti a ter o nome social na caderneta da escola.

Foi quando enfrentei uma professora que me chamava pelo nome de registro.

Exigi que ela me chamasse pelo nome que escolhi e fui apoiada por todos os colegas da turma, que ameaçaram deixar a professora dando aula sozinha caso ela não mudasse a conduta.

 Ali, também, eu percebi como poderia me articular. Aquele apoio foi muito importante. Isso me formou como alguém que, hoje, é ativista pelos direitos da comunidade trans, que luta por si, mas também, por tantas outras iguais.

Ajudei algumas meninas travestis durante a pandemia

Consegui viver bem durante a pandemia devido ao aluguel casas. O que precisei fazer foi negociar reajustes com meus inquilinos, diminuindo os preços e fazendo acordos. Houve mudanças no acolhimento das travestis que moram em meus imóveis também, dando preferência àquelas que não trabalhavam na rua, mas que atendiam em domicílio os clientes.

Tudo isso, para a segurança delas, e também, pelo meu marido, que faz parte do grupo de risco.

O fato de não pagar aluguel e ter renda foi muito importante para mim. Além disso, eu sou muito organizada. Todos os gastos são bem regrados, sempre deixo uma reserva.

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Meu marido é um grande parceiro. Ele que resolve as coisas para mim, inclusive burocracias e finanças. Eu realmente não sei como eu conseguiria lidar com a perda dele. Antes da pandemia eu costumava viajar muito. Com o lockdown, fiquei mais em casa, e pude aproveitar a companhia do meu marido. Também pude curtir e observar o crescimento dos meus animais de estimação. Coisas simples e importantes que me fizeram bem.

Tranquilizei-me muito com a vacinação. A maior parte da minha vida acontece fora de casa. Assim que meu marido tomou a dose única, me senti à vontade para retornar às ruas.

A Covid-19 tirou de mim três grandes amigas

Em muitos momentos, me arrependia de agir por impulso, mas, depois de 2 meses de quarentena, eu já não aguentava mais ficar trancada em casa sem ter o que fazer. Cozinhava, limpava a casa e já não havia com o que me distrair.

Uma das coisas que mais senti falta foi da presença das minhas amigas, que assumem o comando da minha casa quando me visitam – tiram a MPB, que costumo ouvir, e põem lambada enquanto bebemos cerveja.

As pouquíssimas pessoas que foram à minha casa durante a quarentena. Todos seguiam rigorosamente os protocolos de segurança, como, por exemplo, numa comemoração pequena de aniversário que fiz.

Perdi três amigas maravilhosas para à Covid-19. Nesse tempo, por outro motivo, também perdi Vida Bruno, que morou comigo durante a pandemia. Um amigo para todas as horas, momentos e empreitadas.

Estávamos planejando projetos para ajudar pessoas trans, público para o qual ele tinha uma sensibilidade fora do comum. Nesse período caótico, eu enxerguei a força que nós temos.

A batalha das travestis por respeito e dignidade

Vivemos com muito medo de transfobia, ouvimos palavras que nos rebaixam e reduzem a nada, mas a verdade é que resistimos e nos suportamos em meio a essa crise sanitária — que afetou tantos outros setores.

Eu consegui abrir portas para muitas, e outras vieram juntas, abraçando e fortalecendo o movimento. Eu entendi que nós temos, sim, poder, e assumimos esse poder que descobrimos em nós.

Podemos tudo!

Podemos e vamos crescer e ocupar lugares cada vez maiores.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Prta

“Será que pensam que, por ter HIV, não tenho capacidade?”

Chamo-me Marcia Moreira e gosto de ser chamada assim. Tenho 42 anos. Vivo com HIV desde 1999. Descobri durante a gravidez do meu segundo filho. Quando eu tive o diagnóstico, o meu primogênito já tinha 3 anos. Eu tinha 23 anos, ainda morava com meus pais e trabalhava em uma grande rede de supermercados.

Estava há 5 anos na empresa e trabalhava bastante — nunca tirei férias. Quando recebi o resultado do exame, eu nem sequer fazia ideia do que era o HIV. Eu só “sabia” que qualquer pessoa poderia se infectar, menos eu.

Tive um namorado, aos 17 anos, com quem perdi a minha virgindade e de quem eu adquiri o vírus. Ele era usuário de drogas injetáveis e sempre dizia que não faria o teste para HIV, porque ele sabia das altas possibilidades de ter, — não só pelo uso de drogas, mas por práticas sexuais deliberadas — e temia por isso.

Vivendo com HIV

Quando descobri minha sorologia, não entrei em contato com ele, pois fui informada de que ele não morava mais em Salvador. Depois dele, só mantive relações com o pai do meu primeiro filho, a quem procurei — tanto ele quanto o meu primogênito, são HIV negativo.

Busquei, também, o pai do meu segundo filho, que algumas pessoas afirmam ser positivo, no entanto, ele nunca me informou o seu diagnóstico. Meu filho mais novo, também é HIV negativo. Ao conversar com um médico, que acompanhava o meu tratamento, em dois dias ele conseguiu pôr muita informação em minha cabeça, e isso mudou toda a minha perspectiva.

Eu e meu filho fomos como um objeto de estudo para o Hospital das Clínicas, porque os processos ainda eram muito novos. É necessário falar sobre a gravidez de mulheres soropositivas, principalmente porque a desinformação faz parecer impossível. Eu mesma, fui induzida a fazer uma laqueadura logo um mês após o parto.

Uma violência que naquela época eu nem sequer percebia ou entendia. Outro momento difícil fazer e refazer os exames. Com a entrega dos resultados, o hospital inteiro olhava-me com estranheza, como uma plateia, assistindo-me receber o diagnóstico — que era o primeiro dado pelo médico a uma mulher.

Liguei para minha mãe e meu irmão me buscarem. Chorei muito, desmaiei. Ali eu constatei a quão problemática e falha era a questão do sigilo. Meus exames estavam bons, inclusive a carga viral estava controlada. Eu estava — e permaneci — muito deprimida.

O estigma sobre o HIV

Esperaram eu terminar o tempo de estabilidade, e, como eu colocara muitos atestados do CEDAP — que na época se chamava CREAIDS — sofri o estigma. A propósito, a mudança de nome para CEDAP foi uma luta do Gapa, no sentido de assegurar às pessoas assistência às vítimas de discriminação em sigilo, — garantido por lei — porque todo mundo que acessava aquele serviço era estigmatizado como alguém que tinha AIDS — ainda que não tivesse.

O momento em que eu fui demitida foi um dos piores da minha vida. Eu senti que, por ter HIV, eu era inútil.

Aquilo me fez tão mal. Fiquei mais deprimida do que qualquer coisa.

Eu tinha muitas expectativas, mas aquilo me frustrou. Até que, numa visita ao ginecologista, conheci uma mulher cujo filho nascera no mesmo dia que o meu, e que também era HIV positivo.

Ele me falou que o Gapa operava uma brinquedoteca no Centro Médico João das Botas. Lá, conheci um grupo de pessoas que vivem com HIV. Aquilo me cativou.

Fez-se abrir um novo mundo para mim. Ao conversar com a coordenadora, Gladys, em menos de duas horas ela me fez entender que eu era alguém que podia viver dignamente. Passei a integrar o Gapa, primeiro, pela brinquedoteca, e depois, como secretária.

Pandemia, HIV e vulnerabilidade social

À época, estávamos desenvolvendo um novo projeto de pesquisa quando, começamos a ter informações sobre o início da pandemia, ainda fora do país.

E a pandemia chegou abruptamente. Já trabalhávamos com PVH, que estavam com o benefício cessado, devido à gestão do atual presidente, que implicou em diversos cortes.

 Atendemos diversas pessoas em crises financeiras, que não tinham alimento em casa. Iniciamos as campanhas para ajudar essas famílias, arrecadando principalmente comida.

Este trabalho era realizado, mas as doações que conseguimos nesses tempos, já não eram como antes — vinham em menor quantidade. Houve fases muito difíceis. Até que, recebemos a notícia do falecimento de uma pessoa muito querida.

Diversos amigos foram morrendo, e nem todos eram por Covid-19, o que também nos impactou muito. Um de nossos coordenadores, uma pessoa muito saudável, adoecera drasticamente, a ponto de ficar em coma.  Nós não entendíamos e pensávamos: “se ele ficou dessa maneira, então, nós vamos morrer”. Isso nos causou pânico.

Ele conseguiu se recuperar, mas ainda com algumas limitações. De um dia para o outro, no trabalho, a ordem era: “vão para a casa agora, vocês não podem ficar aqui”, — eu perguntava — “como assim?”.

A ordem se repetia

Retornei à casa e passei 1 anos e 3 meses sem sair. Passamos por diversos acontecimentos.

As pessoas ao redor tentavam me proteger e pediam para eu tomar cuidado. Fiquei administrando doações de alimentos entre pessoas e seguindo à risca os protocolos de higienização.

Durante a quarentena, comecei morando numa casa que meu pai me deu, uma ‘kitnet’. Estava morando lá com o meu marido. Meu filho mais velho já é casado e tem um filho. Já o mais novo, estava morando com meus pais e minha irmã. Como minha irmã engravidou — pariu em janeiro — meu filho ajudava nos cuidados com os meus pais, mais idosos.

Já no mês de abril, minha mãe me deu uma casa com dois quartos, e, com a casa, meu filho veio morar comigo também. Ele se mudou já com a namorada, que passava mais tempo lá em casa do que na casa dela.

Após comprar uma moto, ele sofreu uma queda e machucou o punho. Agora, eu tinha mais essa demanda além do trabalho. Sendo que eu já achava ruim trabalhar em casa, com tantas reuniões e a dificuldade de concentração.

“Eu cozinhei péssimas comidas”.

Comi muita besteira, muito ‘fastfood’. Quase sempre inventavam algo, não tínhamos hora para dormir com tantas lives e bebidas que nunca terminavam — principalmente aos finais de semana.

Minhas tias me veem como uma potência. Destacam o meu otimismo e a forma como lido com a vida. Achavam que eu ficaria “apagada” depois de tudo que enfrentei, mas superei as inúmeras dificuldades.

Quando aconteceu o lockdown, meu filho e minha nora se infectaram com Covid-19. Corri todos os riscos possíveis e imagináveis cuidando deles. Eu fiquei muito tensa, porque nossa maior preocupação era com os meus pais.

Nós falávamos demais por ligações de vídeo e áudio. Chorávamos e, depois, chegávamos a evitar as ligações de tão melancólicas que se tornaram.

Todos muito sensíveis.

Seguia dizendo que iria dar tudo certo. E após todo esse tormento, cheguei a ganhar mais uma neta — do meu caçula.

Eu vi o parto dela, mas mantivemos à distância e os cuidados necessários. Isso foi uma felicidade — um nascimento em meio à tantas mortes. Eu sinto uma desaceleração e uma sensação de alívio, principalmente porque, após tanta agonia, eu tive um episódio de alta pressão arterial — marcando 23 por 12.

Fui internada e descobri um pseudo tumor na cabeça, — uma pressão intracraniana que me causa fortes dores de cabeça.

Uma Mulher-Maravilha

Sinto os sintomas de alguém que tem um tumor, porém, sem o tumor. Estou passando pelo processo de diagnóstico e tratamento. Por fim, esse período todo me fez perceber e entender que eu sou uma mulher muito forte — sou quase uma Mulher-Maravilha.

Depois de tudo que eu passei até hoje, eu posso afirmar que sou, sim, uma mulher forte.

E eu espero que as pessoas consigam se curar. Todos nós, sobreviventes, estamos tentando nos curar de algo, de alguma dor.

Eu espero que todos consigam se curar.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Fundamental Completo Mulher Trans Parda

Eu não pude parar durante a pandemia

Durante a pandemia, fiquei sem ir ao interior — e sem visitar a minha mãe — por 2 anos. Nos comunicávamos por telefone. Quando tudo fechou, eu fiquei um pouco assustada.

Nasci no interior da Bahia, em Cícero Dantas. Após a separação dos meus pais, quando ainda tinha 3 meses, fui com minha mãe morar em Ribeira do Pombal.

Tive pouco contato com meu pai. Minha mãe, doméstica, sempre me aceitou, e eu, desde muito nova, sempre demonstrei a minha essência.

Minha mãe tem uma mente muito aberta, e nunca me discriminou.

Uma vida bem distante da pandemia

No interior, onde morávamos, existiam outras mulheres trans. Aos 15 anos, comecei a tomar hormônio.

Aliás, também vivi a prostituição normalmente, – fazia programas em postos de gasolina, com caminhoneiros e nas festas que aconteciam na cidade – inclusive, em cidades vizinhas.

Estudei até a 8ª série do ensino fundamental. Era uma vivência que eu avalio como tranquila, com poucas importunações, apenas com algumas piadas e coisas do gênero.

Na maioria das vezes, eu não me importava tanto com as situações, – a não ser que eu me sentisse agredida. Acredito que eu tinha essa postura por ser muito acolhida em casa, com a minha mãe, que nunca me discriminou e sempre me defendeu.

Isso mostra a importância do apoio familiar para pessoas como eu. Com 18 anos, uma amiga, também trans, me chamou para conversar, e disse ter um apartamento em Salvador, que eu poderia — e deveria — tentar passar um tempo aqui para tentar mais oportunidades.

Vivendo em Salvador

Aceitei a proposta. Me mudei para Salvador, e gostei da cidade. Hoje, com 28 anos, ainda moro na capital baiana. No início, dividia essa casa com outra menina trans.

Mas, depois de um tempo, senti necessidade de morar só, ter o meu canto. Senti precisar de mais privacidade para atender os meus clientes, como garota de programa, e, ter a minha liberdade.

A pandemia

Uma amiga do interior me ligou, desesperada, dizendo que eu deveria voltar para o interior por conta da pandemia. Neste momento, consegui manter a calma e respirar fundo.

Primeiro, porque eu tinha as minhas economias — eu sempre guardava uma parte de todo dinheiro que eu fazia atendendo, tanto nas ruas, quanto em sites.

Também, porque recebi ajuda, apoio, cesta básica. Não pude parar os atendimentos em meio a pandemia. Era inviável fazer isso nas ruas, mas sempre que um cliente entrava em contato, eu o encontrava.

Mesmo com as minhas economias, uma hora, eu iria precisar do dinheiro, ora para pagar o aluguel, ora para as minhas despesas básicas.

Alguns dos clientes se preocupavam com protocolos de segurança e tinham mais medo, mas, outros não. Apenas diziam precisarem espairecer a cabeça, dar uma volta na cidade — como se eu fosse a distração para toda aquela pressão da quarentena, de estar convivendo tanto com a família.

Eu não podia dizer não

Além dos programas, eu performava em casas de show. Contudo, com as casas fechadas, não tínhamos como atuar. Só à medida que começaram as flexibilizações das normas, é que nós pudemos, pelo menos, fazer os shows através de lives.

Contudo, não era a mesma coisa, na verdade, aparentou ser bem estranho não ter os aplausos, o calor humano, a “churria”.

Todo esse processo me fez ficar muito ansiosa e, com isso, comecei a comer mais, e engordei. Fique frustrada, pois, trabalho com o meu corpo.

Sentia muita vontade de que as coisas voltassem ao normal, que eu pudesse ir à praia e tomar uma cerveja.

Quero muito realizar o sonho de ter uma casa própria. Não quero voltar para o interior. Espero poder tirar logo essa máscara — que eu não suporto. E que, nós saiamos desse momento, colocando em prática tudo o que dizemos ter aprendido sobre amar o próximo

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor São Paulo

“Durante a pandemia conheci histórias de muitas mulheres”

Sou uma feminista fiel, por isso, não recusei quando fui convidada para trocar uma ideia com as mulheres do centro de acolhimento emergêncial feminino, o único da zona norte – SP. O convite surgiu quando encontrei minha vizinha, que trabalha como assistente social do local. Ela pediu o favor de um dia de trabalho voluntário, e eu nunca mais faltei. Já são 6 meses de pura dedicação, e muitas historias lindas. A equipe de lá é maravilhosa, a de voluntarias até aumentou. Convidei duas amigas, mulheres negras, e todas as sextas estamos lá, emprestando um pouco do nosso axé. 

Cheguei lá em um dia de sol, em pleno mês de junho. No primeiro encontro, o local tinha muitas mulheres idosas, a maioria mulheres negras. Ao redor, olhares perdidos, cada uma no seu canto em silêncio.

O serviço está dentro de um clube. Devido ao estado emergencial da pandemia, o espaço foi cedido. As camas estão em duas salas, que antes serviam para aulas. Agora está cheio de beliches de ferro. Também têm os cones sinalizando onde elas podem ir, pois deve ser difícil morar em um local e não poder circular, cheio de seguranças para falar que não pode. É uma triste realidade que não espera, então as atividades são para geração de renda, tapetes de retalho, uma técnica que aprendi com minha mãe.

Arte enquanto forma de expressão

Minha família confeccionou alguns tapetes também, e por meio da venda destes, conseguimos comprar material para tocar as oficinas artesanais. A arte é a mais antiga forma de expressão. Por meio da arte não é necessário a comunicação verbal, pois falar cansa. Principalmente quando não obtemos uma escuta ativa. Então, nós facilitamos o contato delas com diversos materiais como pintura em tela, colagens, argila, mandalas, abayomi e os tapetes de retalho, costuras fuxico, confecção de máscaras. E tudo isso ao som de músicas. 

Iniciamos nossa conversa e logo nos tornamos amigas. Afinal, preta com preta sempre têm histórias em comum. A roda de conversa acontece em área aberta do clube e no final de cada atividade alguém sempre chama para conversar. Lembro-me de Maria Velhinha, que olhou para mim e contou que fugira de casa, pois não aguentava mais ser prisioneira de sua própria casa. Ela, além de não poder sair, pois é grupo de risco, não parava de cozinhar e limpar: “não sou escrava da minha família, não vou voltar”.

Tarefas domésticas ficaram mais pesadas

O desgaste das tarefas domésticas lotou o Centro de Acolhimento Emergencial. Aquela senhora ficou dias sentada na Rodoviária do Tietê, veio de outra cidade, como muitas ali. A violência de gênero estava estampada em cada rosto cansado. 

Já Maria Nova veio de Manaus, utilizou o dinheiro do que achava ser a última parcela do seu auxílio emergencial e comprou a passagem para São Paulo. Me contou que toda a sua família sempre morou na rua, em barracas. Naquele dia acabara de chegar no CTA, vindo de outro, comprou um celular de outra convivente. Estava distraída conversando em sua rede social quando uma senhora, que tinha feito quimioterapia no dia anterior, pediu para que eu fosse comprar uma coca cola com canudinho.

A mãe teve o filho levado

Convidei Maria Nova e juntas fomos buscar. Durante o percurso, ela me contou que o bebê foi retirado dela pela assistência social de Manaus. Descreveu o momento com muita tristeza. É que quando o bebê nasceu, Maria Nova já sabia que iam tomar. Ela contou que as ameaças eram constantes:

“quando me tomaram ele, nós estávamos na barraca, tiraram o meu bebê à força. Tentei de todos os jeitos pegar o meu bebê de volta, mas por causa da pandemia, não pude nem visitar.”

Aqui, Maria veio atrás de trabalho, não aguenta a tristeza de estar na cidade e não conseguir se aproximar do filho. A fala dela doeu no meu peito. Não queria desanimar a moça tão novinha, por aqui em São Paulo, tudo fechado devido a pandemia, tão difícil arrumar um trampo. Mesmo assim, a ensinei a utilizar os aplicativos de emprego. Fizemos um currículo pelo celular e ela me agradeceu, ficou feliz e até tirou uma foto comigo. Foi a única vez que a vi, 19 anos, uma mulher que já está enfrentando esse trauma… A equipe disse que ela se desentendeu com uma das conviventes e saiu do CTA.  É tanta violência que nem sei o que dizer.

Veja também: “As super heroínas que não sentem dor nem medo só existem na ficção”

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25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Pós-Graduação Completa Raça/Cor São Paulo

“A população precisava de informações sobre a Covid-19”

A Vila Brasilândia é um distrito localizado na região norte da cidade de São Paulo. De acordo com o último censo do IBGE, realizado em 2010, a região conta com mais de 264mil habitantes. É uma das regiões mais vulneráveis da cidade, onde não há acesso à água encanada para toda a população e à rede de tratamento de esgoto é precária, quase nula. 

O Coletivo ADESS é uma organização da sociedade civil, fundada em 2014, com objetivo de trabalhar a autonomia a partir da geração de renda e economia solidária. Desta forma, a cultura é utilizada como principal meio para alcançar os objetivos. 

A partir de meados de março de 2020, quando a pandemia do novo Coronavírus atingiu o Brasil, nós da Brasilândia passamos a perceber nossos colegas e familiares adoecerem e morrerem da nova doença. Além do risco da Covid-19, a pandemia escancarou a grande desigualdade existente no nosso país.

Já nos primeiros levantamentos, realizados pela Prefeitura de São Paulo, era possível ver a calamidade sobre os índices da mortalidade e de pessoas infectadas. Nossa região foi apresentada por semanas seguidas como a que mais tinha óbitos na cidade de São Paulo pela nova doença.

Quem mais sofreu com a pandemia foi a população que já tinha seus direitos negados, passamos a sentir fome e não pudemos nem enterrar os nossos.  

População carente

Naquele momento não contávamos com o apoio do governo, tampouco tínhamos auxílio emergencial. Apenas com a coragem, iniciamos nossa distribuição de cestas compostas por alimentos, produtos de limpeza e higiene pessoal. E também, claro, de máscaras de tecidos. Dessa forma, passamos a atender mais de 600 famílias por mês. Tudo isso apenas com apoio de amigos e de outras Organizações e Movimentos Sociais.  

Quando a gente recebia muitas unidades de alguma coisa, trocávamos por algum item que não tinha mais. Fizemos assim com máscaras e álcool em gel.  

Além de comida, as pessoas precisavam de informações sobre a Covid-19 e sobre o que o Governo estava fazendo em relação ao enfrentamento da pandemia. Para ajudar, nesse sentido, utilizamos da estratégia de colagem de lambe-lambe e de carros de som pelo bairro, com informações sobre a doença e ensinando a população a se prevenir.  

Além de informação sobre a pandemia, as pessoas clamavam por distração. Por isso também entregamos livros para as pessoas romperem as barreiras do isolamento, de certa forma. Apoiamos também os trabalhadores da saúde que estão atuando na linha de frente contra a Covid-19, levando uma carta escrita por alguém do Brasil especialmente aos profissionais da saúde.  

É assim que a favela, a comunidade, faz. Trocamos quando podemos, mas sempre dividimos. É assim que a favela sempre se sustentou e é assim que a favela vai seguir.