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“Eu vim ver meu Boi”

Minha trajetória no Boi foi tão magnífica, para mim, pois pude contribuir a partir do que eu faço de melhor: dançar. E, ainda,  fui reconhecida por isso! Mas além do lado pessoal, é muito bom saber que você está somando – não só no palco do curral, mas também na arena do Bumbódromo, onde acontece o Festival. Cada um de nós é só um pontinho, mas um pontinho que liga os outros e que faz parte de todo o espetáculo.

Meu nome é Fernanda, moro em Parintins (AM) e faço parte do Corpo de Dança Caprichoso, conhecido CDC. Estou à frente do CDC como coordenadora, a convite de Érick Beltrão, e, mesmo ajudando nos bastidores, eu continuo como dançarina, fazendo o que eu gosto. 

Comecei a minha trajetória aqui — se eu não estiver enganada — em 2008, através de uma pessoa conhecida, o Érik, que me apresentou o projeto. Recebi o convite, fui muito bem recebida e comecei a frequentar. Antes disso, tentara fazer parte de outro grupo, que não deu certo e, foi então, que o Érik me convidou para fazer parte daquele que, até então, se chamava “Troup Jovem”. De lá para cá, acabei acompanhando todo o processo de mudanças de nomes, até chegarmos ao CDC.

Do curral para a vida

Fiz muitos amigos durante meu tempo no grupo que não dá para dizer serem só “de dentro do curral”, mas para minha vida todinha, que levo para a vida toda. Até meu casamento veio de lá: me casei com um dançarino do Boi, estamos juntos há 10 anos e temos um filho! A Dança do Boi que fazíamos no CDC nos proporcionou muitas viagens para nos apresentarmos e foram nesses momentos que pudemos nos conhecer melhor. 

Como em qualquer lugar, a gente tem altos e baixos, alegrias e tristezas. Mas minha trajetória aqui me deixa marcas até hoje, lembro de toda evolução (minha e do grupo) desde o início — tanto na dança, quanto na roupa, quanto na organização. É tão gostoso participar de um grupo, poder vê-lo evoluir e crescer.

A partida dos amigos do Boi

Em todo esse tempo, dói um pouquinho ver pessoas indo embora após quase 15 anos convivendo com elas. Muitos precisam prosseguir a vida, procurar o que é melhor para si — os seus estudos, um trabalho, uma moradia em outra cidade — e, com isso, ter que parar de dançar. Mesmo que doa e cause emoção lembrar dessas pessoas queridas, é a maior felicidade vê-las crescer. Mas há, também, amigos queridos que partiram, que infelizmente nunca mais vão voltar, porque estão junto do Pai. 

Mesmo antes da pandemia a gente já perdeu amigos que faziam parte do Boi, fizeram sua história e partiram. Mas, com certeza, serão lembrados — tanto por sua dança quanto por seu carisma e pelas pessoas maravilhosas que eram.

A surpresa da Pandemia

No início de 2020, nós tivemos a grande surpresa: o início da pandemia. Eu, particularmente, nem conhecia esse termo. Conhecia epidemia, mas pandemia não. Foi um impacto muito grande: aquilo que no começo duraria 15 dias, logo saltou para 30, depois 6 meses, um ano… Foi uma coisa muito assustadora, muito impactante. O grupo vinha se preparando, praticamente todos os dias, coreografias novas, apresentações de toadas, montagem pAra lançamento, ensaios da Marujada. 

Praticamente todos os dias nós estávamos aqui, na expectativa desse ano de 2020, preparando um ano de apresentações e, de repente, tivemos que parar, sem saber o que esperar o que viria dali para frente. Junto com isso, do nada, começamos a perder muitas pessoas. O desespero foi grande, de você querer se cuidar, querer cuidar do próximo, ao mesmo tempo querer continuar dançando, querer sair, mas vivendo uma vida reclusa, que eu acredito que muita gente não vivia. 

Foi um impacto muito grande para o grupo, porque são pessoas em sua maioria jovens, ativas, que querem estar em movimento, estar fora de casa, ter o seu momento de diversão. E aqui dentro, para nós, o grupo também se tornava isso. Tanto ter a responsabilidade como dançarino, de cumprir com nossas obrigações, fazer o seu trabalho, mas, também, era nossa diversão, nosso momento de distração. Então, foi muito assustador, particularmente para mim, foi muito assustador. 

Aperto financeiro e outras formas de união

Algo que também abalou muito o grupo foi a parte financeira, porque muita gente ficou sem trabalhar. E, para a nossa tristeza, a dança não é considerada um trabalho essencial para a sociedade e, por isso, não pudemos exercer nosso trabalho, porque não era essencial. Muita gente acabou ficando sem dinheiro.

Infelizmente, vimos amigos perderem seus familiares, perdemos amigos e, mesmo assim, nós estávamos juntos, apoiando um ao outro. E foi aí que o grupo se uniu e que começamos a ver outros meios de continuar interagindo. 

Começamos a ajudar as pessoas do grupo que mais precisavam com cestas básicas e outros meios que pudessem ajudar, de alguma forma, a suprir aquele momento que estava sendo difícil financeiramente. O mais legal que surgiu, para mim, foram os vídeos. Fizemos e compartilhamos vários vídeos na internet em que nós dançávamos, desafiando e convidando amigos para a brincadeira. Isso puxou pessoas de outros lugares, com todo mundo mostrando um pouquinho do que gostava de fazer. 

“Vai ficar tudo bem e a gente vai voltar a fazer o que a gente ama”

No meio de tudo isso, uma nova notícia chegou como o maior impacto: “não tem festival”. “Cara, como é que não vai ter festival?” Algo que todos da cidade sempre viveram não vai existir? Minha vida todinha, em todos meus 33 anos, fui ao Festival e, naquele  momento, não poderíamos tê-lo.

No mês de junho, a cidade está sempre fervendo, fervilhando, agitada, animada, na expectativa do festival. Naquela hora, não: você via uma cidade totalmente calma, parada, porque aqui era obrigatório aqui ficar em casa. Mas o legal é que o CDC deu um jeito de fazer a Festa do Boi: pelas lives. Conseguimos trazer um pouquinho para o público, até mesmo pra gente – eu participei praticamente de todas as lives – essa oportunidade de dançar

Foi gratificante poder dançar um pouquinho, nem que fosse bem pouco. Mas isso levava para “torcedor Caprichoso” aquela energia em que você fala: “Cara, vai ficar tudo bem e a gente vai voltar a fazer o que a gente ama. Não se esqueça que o Boi está aqui: ele precisa de você, você é o nosso torcedor, nosso combustível. Então a gente vai fazer tudo por vocês, para voltar”. 

E eu pude estar ali, eu pude sentir essa energia, pude passar essa energia para o público, e a certeza  de que tudo passaria e voltaria ao normal. 

Segunda onda e a perda de pessoas queridas

Depois que passaram todas as lives, tivemos, infelizmente, a segunda onda. E aí que me pegou. Foi nesse momento que eu realmente perdi pessoas muito queridas. Amigos da minha vida, da faculdade, do Boi, do grupo que eu fazia parte. Um deles foi meu padrinho de formatura… Infelizmente, eu vou me formar e ele não vai estar aqui. Mas levo meus amigos sempre comigo: na vontade de viver, de seguir em frente, e no desejo de dizer “cara, ficou tudo bem, eu consegui, eu cheguei até aqui”. 

Você agradece pela sua vida, agradece também pela vida dos seus familiares que estão bem. Eu agradeço porque eu tive… Não sei se foi sorte, ou se eu tive benção de não pegar em nenhum momento essa doença, esse vírus. Mas, ao mesmo tempo, você se sente egoísta de agradecer pela sua vida e saber que teve pessoas do seu lado que praticamente tiveram suas famílias dizimadas.

“Está passando e a gente está conseguindo”

Mas, a vida continua, a gente precisa seguir em frente, mostrar pra essas pessoas: “olha a gente conseguiu, por você, eu vou seguir em frente, por vocês a gente vai continuar”. 

Quando veio a vacina, a gente se sentiu muito mais seguro. Os casos, graças a Deus e graças à vacina, diminuíram na cidade. Agora, estamos podendo brincar de Boi. Olha que festa linda que foi feita agora, que o Boi nos proporcionou! Ver pessoas de fora fazendo de tudo para vir, para participar, sentir a energia e, por fim, dizer assim: “cara, tá passando e a gente tá conseguindo”. Foi magnífico.

Agora temos 2022 pela frente. A minha expectativa, eu digo, é: vai bombar! Só pela grandiosa festa que foi feita, pela sede que as pessoas de brincar de boi bumbá, de estar na nossa terra, entrar na arena, sentir a energia de todo mundo e ver o grande espetáculo. Não é pequeno! Pode ter certeza.

O Boi e as ‘estrelas azuladas’

As pessoas estão com uma sede imensa de gritar “eu tô aqui”, de cantar “é o meu Boi, eu vim ver o meu Boi”. Tenho certeza que em 2022 o Festival será magnifico. E eu tenho certeza que o meu Boi vem com um espetáculo imenso, imenso mesmo. Mas, colocando sempre em evidência, homenageando e jamais nos esquecendo das estrelas azuladas que, infelizmente, essa doença levou. 

Cada um deixou a sua história, por pouco tempo, por muito tempo que viveu, mas deixou sua história, seu legado. E jamais, eu tenho certeza, que jamais o nosso Boi, a nossa nação azulada, se esquecerá de cada um deles. E eu me sinto muito grata de fazer parte dessa história azulada. Posso chegar aqui e dizer “Fernanda, você é parte dessa história azulada”. E digo mais: “é muito gratificante chegar aqui e poder contar um pouquinho da minha história”. 

Então, para 2022, vamos nos cuidar, vamos nos preparar. Infelizmente o vírus ainda está aí. Não como estava antes, que nos assustou, nos devastou. Mas vamos estar aí nos prevenindo, nos cuidando. E vamos nos divertir, porque o que mais queremos é curtir o Festival, o melhor que a nossa cidade pode nos oferecer.

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