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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Ensino Superior Incompleto Mulher Trans Parda

Encontrei amparo em Deus

Eu converso muito com Deus. Apesar de todas as tristezas que tive, e todas as dores que passei, acredito que Deus é a essência da vida. Independentemente de ser mulher trans, Ele é uma fortaleza, que me concedeu a cura.

Meu nome é Lorrany, tenho 40 anos, e minha história de vida é bem atribulada. Pai e irmão policiais civis — e o desejo, era que eu também me tornasse policial.

Uma crianção dolorosa

Tive uma criação extremamente rígida e machista. Já percebiam que eu era diferente.

Além disso, as diversas religiões cristãs que estavam no meu contexto — da Assembleia de Deus até Adventista do Sétimo Dia e Testemunha de Jeová — também eram usadas na tentativa de exercer controle sobre a minha forma de existir.

Meus irmãos jogavam futebol – um deles, em quem eu achava que deveria me inspirar, chegou a ser profissional – e sempre ouviam “piadinhas” dos amigos relacionadas a mim.

Por isso, me agrediam em casa. Recebia murros e pontapés. Minha família não aceitava as minhas diferenças e o meu jeito de ser. Eu via meu pai brigar com minha mãe por minha causa, a ponto de dizer-lhe — “escolha: ou o seu filho, ou eu”.

A fuga

 Aos 16 anos, fugi de casa. Fui morar em uma palafita na periferia com um, já falecido — assassinado —, colega gay.

Após o ocorrido, liguei para minha a mãe, desesperada. Ela me disse para procurar uma casa, que ela se responsabilizaria pelo pagamento do aluguel.

Ela me apoiou em todos os momentos e, até me ajudou a mobiliar a casa e me sustentar.

Com 24 anos, já tendo o corpo que eu sempre quis ter, e terminado precocemente o segundo grau, decidi voltar aos estudos.

Em meio a tudo isso, eu ainda estava vivendo um outro drama: o de ter problemas devido ao silicone em que havia colocado em meu corpo. Cheguei a ficar 4 anos em uma cadeira de rodas, e mais 3 anos usando muleta.

Minha mãe me deu todo o suporte. Neste percurso, me envolvi com outros homens, até conhecer um rapaz de São Paulo. Ele me disse precisar ir embora da cidade, com isso, eu abri as portas da minha casa para ele.

Deus sempre oferece o melhor caminho

Ele era sócio de uma rede de lojas. Usou o meu nome para seus próprios negócios e, acabei contraindo as dívidas que ele tinha, que eram muitas — a ponto de cerca de cinco rapazes chegarem a perseguir e, quase matar ele, que fugiu de volta para São Paulo e deixou tudo comigo.

Comecei a trabalhar com essa loja, pagar as dívidas e investir. Comprei outras duas casas, construí uma nova vida, comecei a faculdade — de enfermagem — e fiz a minha vida mudar.

Por causa do meu curso na faculdade, passei a estagiar em hospitais. Durante a pandemia, eu estive atuando na linha de frente do combate à Covid-19. A minha vida sempre foi urgente.

Meu contexto sempre foi de perigo. A morte sempre esteve perto, à espreita.

Enquanto, para muitas pessoas, o vírus apresentou uma realidade distópica, para mim, ele era só mais um risco. Um entre os tantos que eu corri, corro e supero.

Não tive medo. Fui “jogada” dentro de um hospital de campanha com pacientes infectados pelo coronavírus e, em vez de ter medo, eu entendi ser uma oportunidade para que eu, mulher trans, tão excluída e preterida no mercado de trabalho, pudesse ter alguma experiência e aprendizado.

Isso revela as desigualdades que são um abismo entre nós. Algo que para uns é novo e assustador, para outros, é o triste cotidiano.

Os planos de Deus

Era a minha primeira experiência de trabalho. Eu vi pessoas morrendo na minha frente, muitas pessoas, e aquilo me impactou, — mas não a ponto de me amedrontar e paralisar. Eu não me abstive de sair, e seguir a vida.

Sempre senti precisar viver tudo o que quisesse, logo. Principalmente diante dos riscos.

A minha saúde mental dependia disso. Vi colegas sucumbirem também por demandas mentais — e eu, prezei pelo que necessitava. Não consegui fazer quarentena. Fui diagnosticada com Covid-19, tive febre alta, perdi o paladar, mas nem nesse momento, eu senti medo.

Mantive distância das pessoas e as avisei do meu diagnóstico. Só temi por minha mãe. Ela é uma amiga para mim.

Nós brincávamos, dançávamos e conversávamos. Dei todo suporte a ela, tanto que, devido aos meus estímulos — colocando-lhe medo, por exemplo, ela parou de fumar.

Foi possível me manter durante esses tempos, morando só, porque recebi bolsas dos estágios voluntários, além de ter recebido cestas básicas. Meu pai morreu durante a pandemia. Ele contraiu coronavírus, mas foi um câncer de garganta que o levou. Ele nem sequer falava comigo, mas pediu para eu ver o seu exame.

Naquele momento eu disse-lhe: “se eu te fiz algum mal, e fui uma pessoa ruim, me perdoe”.

Ele disse estar muito orgulhoso de mim.

O que mais quero, é viver.

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18 a 24 anos Branca Ensino Fundamental Completo Ensino Superior Completo Mulher Cis Paraná

Mil e uma noites de solidão

O início de 2021 foi uma eterna noite de solidão. Eu passei por um grande sufoco emocional, em que descobri que meu relacionamento com minha “melhor amiga” era extremamente tóxico.

Lidar com isso foi algo demorado, pois eu não me afastei dela de um dia para o outro, até porque, morávamos sob o mesmo teto.

Esse empecilho fez com que eu vivesse dias e noites, durante seis meses, dividindo a casa com uma pessoa que me odiava, e fazia de tudo para eu me sentir mal, chegando a relatar várias vezes que o motivo da vida miserável dela, era culpa minha. Não podia sair de casa, pois estávamos no auge da pandemia.

Mesmo sendo ela que me xingava, gritava, ignorava, e quebrava as coisas.

Noite sem fim…

Como se isso não fosse ruim o bastante, ela ainda fazia a cabeça das pessoas, para que eu parecesse um monstro. Essas dificuldades de 2020 me abalaram muito, mas, 2021 me reservou uma nova surpresa.

No início do ano eu fui diagnosticada com distimia. Essa doença é diferente da depressão, apesar de serem semelhantes.

Um paciente com distimia sofre de mau-humor, irritação constantes, personalidade difícil, e nossos organismos têm dificuldade em produzir serotonina.

Essa é uma doença crônica. E por conta das minhas dificuldades em 2020, meu estado emocional era sério.

Precisei começar a me medicar, o que também foi uma aventura. Cada medicamento me dava um efeito colateral. Até que então, encontrei o medicamento certo para o meu organismo.

Esse processo só foi possível devido ao apoio de minha família, e de uma luz que acabou com as minhas noites de solidão.

Depois da noite, vem o dia

Uma ex-colega de faculdade mandou uma mensagem no grupo da nossa antiga sala, pedindo ajuda com um projeto voluntário. Eles precisavam de pessoas para editarem vídeos, e eu, precisava de algo que me desse força para conseguir levantar da cama e não desistir.

 Foi quando eu mandei uma mensagem pedindo para me juntar ao grupo. Quando fui aceita na equipe, não sabia se estava mais feliz ou desesperada, pois meu medo de fazer algo errado era enorme, mas a alegria de fazer parte de um novo projeto era maravilhosa.

Assim, eu me juntei ao Nariz Solidário. Não demorou muito para eu perceber que o grupo era muito divertido e organizado. Eu sempre achei engraçadas as diferenças dos editores para os palhaços.

Dias de Nariz Solidário

Um grupo é todo reservado, enquanto o outro saltita de alegria. O famoso caso dos introvertidos e extrovertidos tendo que dividir o mesmo ambiente.

E, mesmo com tanta diferença, todos se entendiam e se respeitavam, pois, estávamos ali com o mesmo objetivo.

Minha missão no Nariz Solidário é receber vídeos produzidos pelos palhaços, adaptar para o ambiente hospitalar e colocar elementos que auxiliem na compreensão de cada tema, como, por exemplo, a sonoplastia.

Daphane com seu livro de animação durante a edição dos vídeos do Nariz Solidário

Eles estavam me salvando…

Se me perguntassem hoje, se eu voltaria no tempo para nunca fazer amizade com aquela pessoa, minha resposta seria não.

É verdade que essa amizade me trouxe muita dor, mas, foi por conta disso, que eu busquei ajuda profissional, e soube do meu caso. Foi por conta desse estado emocional que eu entrei para o Nariz Solidário.

Loucamente eles me recrutaram pensando que eu ia ajudá-los, mas eram eles que estavam me salvando.

Sou uma pessoa muito tímida, eu não me envolveria em um grupo tão alegre como o de palhaços, se eu não estivesse em um momento tão complicado. E foi graças a isso que eu percebi, que mesmo que uma pessoa pareça muito diferente de você, é possível que vocês se deem bem.

Que mesmo que o mundo esteja desabando, vai ter alguém do seu lado para ajudar. Seja a sua família, ou até uma mensagem de ajuda enviada pelo WhatsApp.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Trans Paraná

Familiares recuperados da Covid-19

Após quase dois anos de pandemia, trabalhando na linha de frente em um Hospital de Campanha em atendimento à Covid-19, pude vivenciar diversas histórias trágicas com a perda de familiares, porém, em contrapartida, algumas histórias de sucesso me marcaram, como a de uma paciente de 35 anos.

Resiliência em momentos conturbados

Internada por dois meses, após ser entubada, ‘traqueostomizada‘, dialisada e submetida a diversos procedimentos invasivos, conseguiu se recuperar.

Saiu da ventilação mecânica, retomou suas lembranças e retornar à sua casa, junto de seus familiares, agradecendo a toda a equipe pelos cuidados.

Nós, médicos, psicólogos e enfermeiras, vibramos por cada vitória de devolver mais uma mãe, um pai, um filho ou um irmão aos seus entes queridos. Viva a família e os familiares.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Trans Paraná

Leveza para além da Covid-19

A rotina em um hospital de campanha de Covid-19 é extremamente desgastante.

Aos poucos, fomos nos deparando com olhares cansados e um desgaste emocional que se instalou pelos corredores. O cansaço para conter a pandemia de Covid-19 era grande.

Em algumas paredes, os relógios que, em alguns momentos estacionavam seus ponteiros, em outras, despencavam em uma velocidade absurda.

Era um manequim de rodinhas e tablet

Fui abordada pelo hospital, para receber uma proposta artística remota, a única intervenção desse tipo até o momento. Quando fiquei sabendo, confesso que permaneci resistente à ideia de sair da minha rotina de cuidar dos pacientes com Covid-19, e abraçar um novo viés de trabalho.

Com o passar das visitas, barreiras foram rompidas e, hoje, escuto pelos corredores: “essa semana terá visita dos palhaços?”.

A risada e as bochechas…

O humor e alegria que todos transmitiam, começou a fazer uma diferença enorme na vida das pessoas que se encontravam dentro desse hospital, lutando contra a Covid-19.

Eu não consigo dimensionar em palavras essa importância e o seu efeito no ambiente de trabalho, e na recuperação dos pacientes que estavam com Covid-19.

Médicos e funcionários em um hospital de campanha para a contenção da Covid-19, junto da ONG Nariz Solidário.

E digo pela minha pessoa: meus dias ficam muito mais felizes em momentos de visita do Nariz Solidário. As bochechas chegam a doer por baixo da máscara depois de muito riso.

Todas as quartas-feiras, às 10h da manhã, os corredores se enchem de música e piadas com a visita virtual do Nariz Solidário.

Alguns funcionários se escondem por vergonha de se expressar dentro do ambiente hospitalar, outros, aparecem e dizem que esperaram a semana toda por esse momento.

De Covid-19 para Covidina

Foi escolhido pela equipe o nome ‘Covidina’, em referência ao momento em que vivenciamos.

Desta forma, todas as quartas, músicas são ouvidas, dancinhas são criadas, e tamanha a ansiedade e a expectativa pelas visitas do Nariz Solidário.

A alegria se instala e, por alguns instantes, um lugar que carrega o peso da responsabilidade de cuidar e de salvar vidas, também se torna um lugar de risadas e leveza.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Trans Paraná

Vítima da Covid-19

Em meados de agosto de 2021, após mais de um ano de pandemia, em um Hospital de Campanha referência em atendimento à Covid-19, um menino de 17 anos deu entrada no hospital em estado grave.

Durante todo o período de internamento, as equipes assistenciais trabalhavam de maneira triste.

Estavam fragilizadas pela mãe, que sofria, tristes pelo jovem, entubado com poucas chances de sobrevida, tristes pela pouca estrutura psíquica que essa família tinha para lidar com a situação e, desolados pelo agravamento da pandemia de Covid-19.

Acolhimento em meio à Covid-19

Em minha função como psicóloga, acolhia a família, e tentava auxiliar os pais a criarem estratégias internas para lidar com o sofrimento.

Ao final da terceira semana, o quadro clínico de Covid-19 se agravou, fazendo com que a equipe médica tivesse que alertar à família. Naquelas condições, haveria poucas chances para o paciente resistir.

Infelizmente e por alguma razão, a comunicação emitida sobre risco iminente do paciente não resistir, não chegou à família, que acabou por realizar a visita um tempo depois do comunicado.

Por coincidência, a chegada à recepção para comunicar a visita acabou acontecendo no mesmo momento em que o jovem evoluiu para óbito, devido ao agravamento da pandemia.

Não deu tempo. Ao serem direcionados para a sala de acolhimento, a angústia se instalou por todo o hospital.

“Por favor, não façam isso comigo”

Assim que entrei na sala, direcionei-me para o lado da mãe, que estava acompanhada da assistente social e do médico.

A mãe estava com os olhos marejados. Dizia em um tom de súplica: “por favor, não façam isso comigo”.

O médico iniciou o seu discurso retomando as últimas 24h e finaliza sua fala comunicando o falecimento aos pais.

“A dor da perda não tinha uma forma exata de ser expressada, eram gritos, olhares, lágrimas e pedidos de que disséssemos que era mentira.”

Mais uma vítima da Covid-19

Mais de 1 hora se passou até que conseguimos orientar os próximos passos e encaminhar a mãe ao atendimento em uma unidade básica de saúde.

Ao fechar a porta, lágrimas da equipe se despencaram; sofrimento pela dor da mãe; desgaste emocional após o atendimento de tantas histórias semelhantes.

A morte não pede licença, não avisa, não tem piedade, não espera uma expressão de afeto e nem um último adeus, ela aparece e muda toda uma história. Aproveitemos o hoje, o agora


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Cis Paraná

Palhaçaria no audiovisual

Sou profissional circense e palhaça no Nariz Solidário, que trabalha com o que chamamos de ‘palhaçaria’ para auxílio à humanização de pessoas desde 2014, em Curitiba.

Além de formações, realizo visitas cênicas a hospitais de toda região. Com a pandemia e o cessar das atividades presenciais

nos adaptamos às visitas remotas e à construção de vídeos de palhaçaria, unindo a arte do palhaço e a produção de conteúdo para trazer mais leveza ao ambiente hospitalar. Além de temas cotidianos e datas comemorativas.

Dessa forma, com esses vídeos, poderíamos alcançar mais pessoas. O conteúdo dos vídeos eram mais para trazer leveza, um momento de respiro para esse período tão difícil e obscuro que atravessamos.

Porém, alguns vídeos vinham com um pouco mais de reflexão do que ‘palhaçaria’ – proposital ou naturalmente, devido ao nosso processo criativo e à imersão na realidade em que estávamos vivendo.

É a figura da palhaça, da palhaçaria

Sobre esse reverberar natural, gostaria de compartilhar um relato a respeito do vídeo que fiz sobre o Dia das Mães. Já estou sem minha mãe há três anos, sinto-me conformada. Porém, fazer algo que homenageia quem não está mais presente sempre traz um nó na garganta.

Estava um pouco resistente e sem ideia. Depois de algum tempo, comecei a pensar no que seria meu roteiro para fazer o vídeo. E pensei em olhar as fotos que tenho guardadas em casa.

O álbum de fotografias

Ao olhar todas, percebi que não tinha mais nenhuma foto da minha mãe, nem me lembro o porquê disso, mas me frustrou, pois não havia mais a lembrança física de minha mãe naquelas fotos.

De repente, como um pequeno filme, a cena de pegar as fotos e buscar pela minha mãe em algum retrato me apareceu aos olhos como o meu roteiro – a minha verdade.

Voilá…

Pronto! Teria ali um possível vídeo, ainda inacabado, mas já com alguma estrutura. Outra questão me surgiu: como uma palhaça conta que gostaria de se lembrar da mãe, mas não tem nada visível que possa ajudar? Como colocar um assunto tão delicado de uma forma que não deixe um vídeo pesado para um momento tão intenso?

Existe uma forte comparação do palhaço e de suas ‘palhaçarias’com as crianças, de que, para se tornar um bom palhaço, é necessário buscar a sua memória mais pueril. E, de certa forma, foi a maneira que encontrei para resolver o meu vídeo.

Trouxe à tona os meus rabiscos. “Se não tenho mais foto, então eu desenho aquilo que me vem à lembrança.”


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Cis Paraná

A partida de minha mãe e o trabalho social

Em agosto de 2019, depois de nove anos de trabalho, fui desligada da empresa que trabalhava por conta da terceirização do setor. Pouco tempo depois, sofri com a partida de minha mãe.

Isso aconteceu no início do mês. Quando o final deste mesmo mês chegou, internei minha mãe às pressas por conta de uma hemorragia no estômago.

A minha sorte foi poder contar com o dinheiro do acerto para poder fazer tudo da forma mais rápida possível para a minha mãe, tentando dar a ela o maior conforto que a situação permitiu.

Entramos no internamento na terça. No domingo, o médico veio conversar conosco muito animado com o resultado dos últimos exames, falando até da possibilidade de alta para o dia seguinte.

Notícias..

Com essa informação, fui para casa passar a noite e, no dia seguinte, quando cheguei ao hospital para vê-la, a enfermeira veio conversar comigo.

Tinham preparado minha mãe para uma tomografia, que nem chegou a ser realizada, pois ela havia tido outra hemorragia e acabou indo para o cuidado intensivo.

Permitiram-me vê-la, e ela disse que estava cansada e que só queria que eu fosse feliz.

A partida

Foi o tempo de chegar em casa e receber uma ligação. Após levarem-na para a UTI e de eu ficar esperando por 3 horas na porta do local para ser chamada, entrei e não reconheci minha mãe, que já havia tido uma parada cardíaca e estava sem saber o que se passava com ela.

Disseram que eu podia ir embora, pois a situação dela era estável, porém, nada boa.

Foi o tempo de chegar em casa e receber uma ligação pedindo que eu voltasse ao hospital para saber da notícia do óbito.

O trabalho social

Em 2020, depois da partida de minha mãe, toda essa experiência me fez escolher fazer o projeto comunitário da universidade em que estudo, junto com a Associação Nariz Solidário, organização que trabalha levando a arte do palhaço para dentro de leitos dos hospitais.

Com isso, recebi o convite para atuar como voluntária permanente pela associação.

Minha mãe sempre esteve atrás da câmera

Em 2021, iniciamos um projeto de edições de vídeos para o YouTube, tendo em vista que as visitas aos hospitais não estavam mais sendo permitidas desde o início da pandemia da Covid-19.

Em uma das edições, especificamente a do Dia das Mães, tive a sorte de escolher para editar o relato da Lupita (uma das palhaças do elenco), que também havia perdido a mãe e, na ocasião, não tinha nenhuma fotografia com ela.

A minha mãe sempre esteve atrás das câmeras para registrar a nossa infância. Contudo, era raramente fotografada conosco.

Foi um dos vídeos mais difíceis da minha trajetória

A similaridade de situações mexeu muito comigo durante a edição eu editava o vídeo, que iria ser transmitido nos leitos de um hospital infantil durante todo o projeto.

Quando o assisti pela última vez antes de exportar o arquivo, não consegui conter as lágrimas.

Foi um dos vídeos mais difíceis da minha trajetória neste trabalho voluntário, fiquei pensando na partida de minha mãe e em todas as outras partidas; de mães e pais que perderam seus filhos, filhos que perderam seus pais e mães subitamente em reflexos da pandemia.

Desejo força a todos vocês. Como a minha mãe me disse nos seus últimos momentos de lucidez: “elas só querem que sejamos felizes”.


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40 a 59 anos Branca Ensino Superior Completo Homem Cis Paraná

Abraçando a onça

Eu e minha dupla de visita, Sabrina Silva (Palhaça Lupita), encontramos, abraçada à sua onça, a Dona Eliane, uma senhora muito simpática.

Dona Eliane nos contou que trabalha no cemitério e que também é palhaça. Ficamos imaginando-a fazendo palhaçadas no cemitério. Contou-nos ainda que sua tia dançava em cima de um cavalo, já imaginaram? Pois ela e seu tio eram do circo e, entre inúmeras peripécias, amavam-se muito, tanto que, quando ela se foi, ele se foi logo em seguida, para continuarem com seus espetáculos juntinhos.

Paciente em hospital interagindo virtualmente com os palhaços do Nariz Solidário

E a onça? Não quisemos conferir se estava viva. Saímos a bordo de um manequim, ou melhor, de um tablet na cabeça de um manequim – “Se virem uma onça por aí, não diga que fomos por ali”.

Antes da onça

Sou ator e artista há muitos anos, e a pandemia me trouxe ansiedades muito fortes, principalmente por conta de minha profissão ter sido uma das primeiras a saírem de cena, e a última a retornar – inclusive, ainda não retornou por completo.

No meio disso tudo eu, que faço parte da ONG Nariz Solidário, consegui manter o meu ofício por conta de um projeto aprovado, que não só me trouxe um respiro financeiro e emocional, mas também me fez olhar de outra forma para a arte.

Tivemos que nos adaptar e realizar intervenções virtuais, que antes eram presenciais, em hospitais do SUS. No começo foi difícil, novo e estranho. Mas ao longo do tempo fomos percebendo que, mesmo no ambiente tecnológico, era possível promover encontros artísticos que também pudessem gerar transformações mútuas.

Depois da onça

“Enquanto houver vida, há sempre espaço para um leve respirar e brincar”

O isolamento social e as diversas problemáticas causadas pela pandemia e que explodem na saúde física e mental de cada pessoa, ainda podem ser suspensos por instantes, em estados brincantes, ainda que a dor supere a razão e a intenção. Nos hospitais sempre existiram isolamentos temporários, no entanto, o que vivemos se tornou algo longo e duradouro, que nos encaixotou em uma tela pequena, de reflexões sobre realidades dolorosas.

Porém, repito: enquanto houver vida, há sempre espaço para um leve respirar e brincar.


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40 a 59 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Cis Paraná

“Sim, momentos trágicos, mas também de resiliência”

Sim, momentos trágicos, mas também de resiliência e de experiências nunca vividas.

Amizades eternizadas, projetos iniciados e abortados, de lágrimas, sorrisos mascarados, apertos de mãos escondidos e tapinhas nas costas, quando a vontade era dar um baita abraço naquele pai que perdeu o filho, naquela colega de trabalho exausta, ou nos palhaços que tiveram que se ausentar e sobre os quais as crianças perguntavam repetidamente.

Este desabafo é apenas para abrir um diálogo sobre nós, profissionais da saúde, que tivemos nossas vidas reviradas, esculhambadas e arriscadas diariamente durante esse momento histórico.

Hoje, estamos mais esperançosos com a vitória da ciência.

O cuidado continua, o trabalho também. Por isso, decidi dar uma oportunidade ao leitor curioso (modesta, eu?) que, durante esse período, ouviu e viu tudo de fora de um hospital. E dar um raio de esperança aos que não tiveram a mesma sorte.

Aos que estiveram internados como pacientes, aos que sofreram feridas que ainda não estão cicatrizadas, mas que podem se interessar pelo lado humano, pela mão-de-obra, pelo funcionalismo, pelo profissional que protagonizou (e ainda se encontra na linha de frente), de lados opostos ou não, na luta contra a Covid-19.

“Meu querido paciente obeso”

Sou fisioterapeuta do Hospital Infantil Waldemar Monastier (Campo Largo-PR), e minha vida virou de cabeça para baixo. Os filhos em casa (aulas on-line, sério isso?), sem ajuda da família ou de amigos pois, inicialmente, o medo de transmissão gerou um isolamento social intenso e, ainda por cima, trabalhando na linha de frente.

Maridão no pós-operatório de cirurgia de reconstrução da articulação interfalangeana da mão (essa é outra história) trabalhando de home office, falta d’água, máquina de lavar quebrada, e blá blá blá. Tudo que qualquer mulher adoraria, só que não.

A resiliência se faz necessária

Pelo menos não estava desempregada. Isso foi um alento ao qual tentei me agarrar inicialmente, porque a vontade de chorar era avassaladora. Bem, no hospital, os casos começaram a surgir lentamente, mas os protocolos foram criados e nós nos esforçamos muito para aprender a colocar em prática todas as mudanças que o vírus trouxe na maneira de atender, nos quartos, enfermarias e nas UTIs.

A precaução beirava quase ao absurdo que nunca usei tanto álcool em minha vida (minha intenção foi gerar uma interpretação dúbia!). Os EPIs (equipamentos de proteção individual) estavam escassos na UTI, pois todos resolveram ler no Google que a máscara N95 era a única que prevenia contra a Covid-19, além de a matéria-prima vir da China, país que ainda estava com o surto em larga escala.

Então, entre idas e vindas o atendi: G.B.N., nove anos. Um rapazinho obeso, prostrado, em máscara de oxigênio, que estava internado na enfermaria.

Um cara peculiar?

Ele era peculiar, parecia apresentar um leve atraso no desenvolvimento cognitivo e respirava com dificuldade, mas era uma simpatia. Usei toda a paramentação necessária conforme o protocolo, mas tinha certeza que era uma crise de asma típica.

Apesar de ter esse pressentimento, recolhi-me à minha insignificância e continuei com meus atendimentos até que, em um belo dia, encontro outro paciente em seu quarto.

Toda alegre, corro para perguntar aos colegas se ele havia recebido alta hospitalar, mas meu desespero foi ouvir que ele fora transferido para a UTI pediátrica devido ao agravamento do quadro. Sim, era Covid-19. Estava entubado, apresentando alterações respiratórias e cardíacas graves.

Nessas horas nós nos confrontamos com várias questões morais e éticas, mas canalizei minha energia na possibilidade de que ele sairia dessa. Eu disse à mãe dele, no último atendimento, que ele estava melhorando. O que foi que eu fiz? Após dias na UTI, ele melhorou, e encontrei-o na enfermaria.

Ele estava muito animado, incrivelmente falante e um pouco confuso devido à medicação, porém, ainda ofegante, perguntou várias vezes o meu nome. Realizamos uma partida de futebol no quarto, com uma bexiga de luva improvisada.

Amparo, fé, e resiliência

Lembrei-me dos ensinamentos do Grupo Nariz Solidário, que trouxe sempre ludicidade e alegria aos nossos corredores, tendo que se reinventar em meio ao caos, deixando seus vídeos ali na TV, leito a leito.

O olhar de satisfação da mãe era excepcional e fiquei muito contente ao vê-lo respirando bem em “ar ambiente”. Ao fim do atendimento, após perguntar novamente o meu nome, ele me pediu um abraço.

Fiquei paralisada, toda paramentada, vendo aquele cara gentil e sorridente parado na minha frente, ainda no período de precaução, e não tive dúvidas. Abracei-o com força, despedi-me e segui meus atendimentos, conforme o protocolo.

Quando o veria de novo?

“Um carinho precavido em meio a pandemia”

Somos capazes de fazer a diferença na vida dos que nos rodeiam quando nos desarmamos do egocentrismo, nos colocando no lugar do outro. Com um pequeno gesto, um olhar carinhoso, uma postura cordial, temos a chance de ser mais do que apenas coadjuvante de histórias remotas, para nos tornarmos sujeitos atuantes de novos momentos.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Ensino Superior Completo Homem Cis Paraná Prta

Um mergulho musical na UTI

Enquanto a psicóloga hospitalar nos conduzia a bordo da ‘Covidina’ (manequim adaptado para visitação remota do Nariz Solidário), para fazermos um mergulho musical na UTI. Cantávamos ao som de ‘Kazoo’, com um pandeiro e com os sons produzidos em nosso próprio corpo.

Adentrando na UTI

Tivemos uma percepção nítida do impacto do palhaço na UTI, ainda que de forma remota. Ali, do outro lado da tela, profissionais exaustos, com seus múltiplos EPIs, proporcionando-nos apenas um contato com os olhos e sua expressão corporal.

Em um determinado momento, em resposta ao nosso completo desajuste e desafinação de nosso mergulho musical — sorriram, cantaram e dançaram conosco.

Foi quando nos deparamos com um desafio: esquecemos aquela música grudada em nossa cabeça desde dezembro do ano passado, quando cantamos no mergulho musical. Depois de algum esforço — “meu coração, não sei por que, como é grande, o meu amor, por você!”


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia