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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor São Paulo

“Durante a pandemia conheci histórias de muitas mulheres”

Sou uma feminista fiel, por isso, não recusei quando fui convidada para trocar uma ideia com as mulheres do centro de acolhimento emergêncial feminino, o único da zona norte – SP. O convite surgiu quando encontrei minha vizinha, que trabalha como assistente social do local. Ela pediu o favor de um dia de trabalho voluntário, e eu nunca mais faltei. Já são 6 meses de pura dedicação, e muitas historias lindas. A equipe de lá é maravilhosa, a de voluntarias até aumentou. Convidei duas amigas, mulheres negras, e todas as sextas estamos lá, emprestando um pouco do nosso axé. 

Cheguei lá em um dia de sol, em pleno mês de junho. No primeiro encontro, o local tinha muitas mulheres idosas, a maioria mulheres negras. Ao redor, olhares perdidos, cada uma no seu canto em silêncio.

O serviço está dentro de um clube. Devido ao estado emergencial da pandemia, o espaço foi cedido. As camas estão em duas salas, que antes serviam para aulas. Agora está cheio de beliches de ferro. Também têm os cones sinalizando onde elas podem ir, pois deve ser difícil morar em um local e não poder circular, cheio de seguranças para falar que não pode. É uma triste realidade que não espera, então as atividades são para geração de renda, tapetes de retalho, uma técnica que aprendi com minha mãe.

Arte enquanto forma de expressão

Minha família confeccionou alguns tapetes também, e por meio da venda destes, conseguimos comprar material para tocar as oficinas artesanais. A arte é a mais antiga forma de expressão. Por meio da arte não é necessário a comunicação verbal, pois falar cansa. Principalmente quando não obtemos uma escuta ativa. Então, nós facilitamos o contato delas com diversos materiais como pintura em tela, colagens, argila, mandalas, abayomi e os tapetes de retalho, costuras fuxico, confecção de máscaras. E tudo isso ao som de músicas. 

Iniciamos nossa conversa e logo nos tornamos amigas. Afinal, preta com preta sempre têm histórias em comum. A roda de conversa acontece em área aberta do clube e no final de cada atividade alguém sempre chama para conversar. Lembro-me de Maria Velhinha, que olhou para mim e contou que fugira de casa, pois não aguentava mais ser prisioneira de sua própria casa. Ela, além de não poder sair, pois é grupo de risco, não parava de cozinhar e limpar: “não sou escrava da minha família, não vou voltar”.

Tarefas domésticas ficaram mais pesadas

O desgaste das tarefas domésticas lotou o Centro de Acolhimento Emergencial. Aquela senhora ficou dias sentada na Rodoviária do Tietê, veio de outra cidade, como muitas ali. A violência de gênero estava estampada em cada rosto cansado. 

Já Maria Nova veio de Manaus, utilizou o dinheiro do que achava ser a última parcela do seu auxílio emergencial e comprou a passagem para São Paulo. Me contou que toda a sua família sempre morou na rua, em barracas. Naquele dia acabara de chegar no CTA, vindo de outro, comprou um celular de outra convivente. Estava distraída conversando em sua rede social quando uma senhora, que tinha feito quimioterapia no dia anterior, pediu para que eu fosse comprar uma coca cola com canudinho.

A mãe teve o filho levado

Convidei Maria Nova e juntas fomos buscar. Durante o percurso, ela me contou que o bebê foi retirado dela pela assistência social de Manaus. Descreveu o momento com muita tristeza. É que quando o bebê nasceu, Maria Nova já sabia que iam tomar. Ela contou que as ameaças eram constantes:

“quando me tomaram ele, nós estávamos na barraca, tiraram o meu bebê à força. Tentei de todos os jeitos pegar o meu bebê de volta, mas por causa da pandemia, não pude nem visitar.”

Aqui, Maria veio atrás de trabalho, não aguenta a tristeza de estar na cidade e não conseguir se aproximar do filho. A fala dela doeu no meu peito. Não queria desanimar a moça tão novinha, por aqui em São Paulo, tudo fechado devido a pandemia, tão difícil arrumar um trampo. Mesmo assim, a ensinei a utilizar os aplicativos de emprego. Fizemos um currículo pelo celular e ela me agradeceu, ficou feliz e até tirou uma foto comigo. Foi a única vez que a vi, 19 anos, uma mulher que já está enfrentando esse trauma… A equipe disse que ela se desentendeu com uma das conviventes e saiu do CTA.  É tanta violência que nem sei o que dizer.

Veja também: “As super heroínas que não sentem dor nem medo só existem na ficção”

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor São Paulo

“Não podemos perder mais pessoas por causa de fome e frio”

Não quero aceitar que vamos perder mais pessoas por causa de fome e frio. Em pleno dia da semana, a imagem mais dolorosa que vi em 2020: Tudo fechado e ruas lotadas, às 7 horas da manhã, na esquina da igreja Santana. Muitas pessoas, uma atrás da outra, em uma fila que não tinha fim, cruzava a esquina e descia a Cruzeiro do Sul. A maioria, composta por homens negros, aguardava por um pão e um copo de café.

Eu já tinha passado ali muitas vezes. Trabalho com a população de rua há 10 anos pelo SUS e quando saio do plantão faço sempre esse caminho. No meio da multidão muitos rostos conhecidos e de muita gente que nunca vi. 

Estava tão frio, acredito que era o dia mais frio do ano. Senti vergonha, abaixei a cabeça e passei por eles, com a sensação de impotência. Passando perto de quem estava descalço naquele frio horroroso, senti vergonha de estar calçada.

Eu sempre me revolto com o mundo, e quanto mais estudo mais a ignorância deixa de me proteger. Não aguento sentir a desigualdade social aumentar.

Solidariedade

Vejo a vulnerabilidade social como um problema de todos. Por isso, acionei alguns amigos e lá fomos nós para as ruas alguns dias depois. Daquela realidade que me assombrou, a união levou comida, roupas, cobertores, máscaras, descartáveis água, lanches e doces em uma comitiva de 5 carros Muita gente envolvida! E foi assim que conheci mais pessoas que também realizam esse trabalho, e de forma organizada. Fui até inserida em um grupo de WhatsApp, em que os coletivos e religiosos se organizam. Através de uma planilha, cada um vai anotando aonde e que horas vai fazer a ação.

Povo do axé com o povo do amém, em um único lugar, todos pelo mesmo objetivo, e no maior respeito. Essa galera não deixa na mão. Já fui buscar doação em todos os tipos de residência, mó galera diversificada, esforçada e importante. Tenho certeza que, por eles, ninguém passaria fome e frio. A galera sem teto os chamam de boca de rango, sempre envolvidos com falas de carinho e um momento de escuta prazerosa… essa galera é sem palavras, sempre correria!

Sou redutora de danos, a fome é um dano que dói, que desorienta, que desorganiza a pessoa, sei bem como é a dor da fome e por isso não consigo passar sem ver. Muitos falam que é uma fraqueza minha, “ser muito boazinha”, mas nessa pandemia utilizei todas as minhas forças. Não consegui parar nem por um dia. O cansaço bateu por diversas vezes, mas a cada dia agradeço a Xangô, que me guia, e sinto esse Axé em mim.

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Indígena Mulher Cis Raça/Cor

“Passei a não assistir mais aos jornais e procurava não ler sobre o assunto”

Desde dezembro de 2018 participo do Projeto Cunhataí Ikhã ( Meninas na Luta), do qual sou uma das monitoras da região Norte da Bahia. O objetivo do projeto é estimular que as meninas indígenas reconheçam os seus direitos e deveres, que elas possam lutar por todos eles e façam suas próprias escolhas. E um dos principais objetivos é que a menina indígena tenha os 12 anos de educação escolar completos.

Teríamos a formação de 60 meninas indígenas, porém com a chegada do vírus ao nosso país ficou impossível acontecer, pois são meninas de todo o estado da Bahia. Diante disso estamos realizando encontros onlines todas as quintas, manter o vínculo durante a pandemia, e nossas coordenadores nos traz temas interessantes a serem discutidos. 

Em maio de 2020, aqui em minha comunidade foi realizada uma reunião pelo CONTAM (Conselheiros Tuxá da Aldeia Mãe), que ficaria restrito o acesso à nossa comunidade. No portão ficava uma pessoa para monitorar a entrada somente de indígenas e entregas de alimentos ou gás.

O portão era aberto às 06h da manhã e fechado às 22h da noite. Porém, foi por um período muito curto. Entretanto, algumas famílias tiveram que continuar com suas atividades para assim poderem colocar comida em suas mesas. Já outras tiveram que permanecer em casa, pois suas atividades foram suspensas para evitar aglomerações.

Para suprir as necessidades da comunidade, principalmente de quem ficou desempregado na pandemia, a Funai, em parceria com a Conab, disponibilizou a entrega de cestas básicas para a comunidade e cada família foi contemplada com duas cestas básicas.

Covid-19 na aldeia

Eu achava que esse vírus não chegaria na comunidade, até que chegou, e, a partir de então, começou a mexer com meu psicológico. Eu já estava a morrer de medo, todas as noites tinha pesadelos e não conseguia mais dormir direito. Passei a não assistir mais aos jornais e procurava não ler mais nada que tivesse relação com notícias de mortes sobre o vírus.

Sabemos que todo cuidado é pouco, mas, mesmo com toda cautela, o primeiro caso na nossa aldeia surgiu no mês de setembro. Graças ao bom Deus o homem em questão tomou todas as medidas preventivas para que o vírus não proliferasse e se curou.

Aulas remotas

Em relação à universidade, como as aulas presenciais tinham sido suspensas, a coordenadora, junto com os professores, resolveram fazer um projeto (Ação Pedagógica) com a turma, que durou três meses. Não foi fácil, pois éramos acostumados a nos vermos, a termos contato físico e, de uma hora para outra, estávamos lá nos olhando através de uma tela. Mas cada um conseguiu desenvolver do seu jeito, sendo orientados pelos professores.

No mês de novembro do corrente ano, as aulas voltaram de forma remota e teremos 45 dias de aulas. Um meio que para muitos parecia que seria fácil, está sendo complicado. Muitas pessoas não têm acesso à rede de internet e, mesmo para quem tem, a rede não pega tão bem, prejudicando, assim, o estudante em participar das aulas ou fazer os devidos trabalhos.

Sabemos que vai ser difícil essa pandemia acabar, mas eu anseio que tudo acabe bem, que todos venham a sair com vida e esperança para um mundo melhor.

Me chamo Joana Darc Apako Caramuru Tuxá, tenho 23 anos e sou indígena. Moro na Aldeia Tuxá – Mãe, município de Rodelas, norte da Bahia, nordeste brasileiro. Sou filha de Lucy Meire Sena do Nascimento (indígena) e José Humberto Alvino de Souza (não indígena). Atualmente estou cursando o IV período da Liceei-Uneb (Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena – Universidade do Estado da Bahia – CAMPUS VIII), em Paulo Afonso-BA.

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Indígena Mulher Cis Raça/Cor

“Meu sonho é voltar formada para cuidar da saúde do meu povo”

Sou estudante de Fisioterapia na Universidade Federal da Bahia e dentro da universidade busco quebrar estereótipos e falar sobre a saúde indígena nos diferentes espaços. Faço parte do grupo de pesquisa PET Comunidades Indígenas, onde debatemos as temáticas indígenas, como saúde, território, educação e outros. No PET, faço parte do Observatório de Saúde Indígena onde fazemos atividades e pesquisas voltadas para essa área.

Neste momento de pandemia me encontro em minha aldeia, aguardando as aulas presenciais para retornar a Salvador. Me formaria este ano, mas devido a pandemia isso não foi possível. Aulas online foram oferecidas pela universidade, porém na área da saúde as últimas disciplinas são práticas, não podendo ser oferecidas no semestre online. 

Atualmente, tenho me focado na minha loja online de artesanatos, criada como forma de divulgar a cultura e beleza da arte indígena e como uma forma de renda para me manter estudando em Salvador. Durante a pandemia a procura pelos artesanatos se tornou maior. 

Hoje, o meu sonho é poder retornar para minha comunidade formada e cuidar da saúde do meu povo, foi o motivo pelo qual escolhi um curso de saúde.

Me chamo Wany Tuxá, sou indígena do povo Tuxá, minha aldeia fica localizada no sertão baiano, às margens do velho Chico. Venho de uma família de lideranças indígenas dentro da minha comunidade e cresci na luta do meu povo que teve seu território inundado pela construção de uma barragem. Hoje ainda lutamos pela demarcação do nosso território.

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor São Paulo

“Perdi quatro pessoas para a Covid-19 e o racismo”

Durante o período de pandemia, senti um incomodo por viver o privilégio de poder ficar em casa, pensando nos tantos que não puderam se isolar. Minha renda é formada com o que somo de alguns trabalhos. No entanto, minha única fonte fixa é uma bolsa/ajuda de custo de 500,00 para um trabalho voluntário prestado à Secretaria Municipal de Saúde como Agente de Prevenção DST/AIDS, voltado para garotas de programa. 

Tudo se somava com o que ganhava fazendo freelance em pesquisa de opinião pública e os cachês de shows com o Ilú Obá De Min, grupo que faço parte há 10 anos.

No dia da primeira morte no Brasil fui trabalhar, e voltei bem assustada com a aglomeração em uma das casas de prostituição em que faço prevenção. Dias depois o trabalho foi suspenso, e daí começou a preocupação de como iria me sustentar pelo próximo período (sem saber que seria um tempo indeterminado). Felizmente, logo veio o alívio de saber que não suspenderiam os pagamentos.

Moro na Ocupação nove de julho onde pago um valor de contribuição simbólico. Não passei necessidades porque tive apoio da ocupação, Ilú Obá De Min e Marcha das Mulheres Negras, coletivos dos quais tive muito suporte, muitas doações de cestas básicas e hortifruti.

Em abril, nasceu o filho do meu afilhado, pai com 22 anos e a mãe com 18. Desempregados. A criança veio ao mundo sem o enxoval e em meio aos casos crescentes de Covid-19. A avó da bebê é o arrimo da família, contudo, o pouco dinheiro não compraria nada. Aquele foi o período em que tudo estava fechado. Então tive a ideia de contactar as conhecidas que tiveram bebês em fevereiro/março. A ajuda veio breve e abundante, conseguimos o enxoval completo, enfim.

Partilhar em meio às dificuldades

Moro apenas com minha companheira e as doações que recebíamos eram bastante para nós, por isso passamos a doar antes mesmo de chegar em casa. Moramos no nono andar e o prédio não tem elevadores. Então, para não ficarmos carregando peso, levamos muitas cestas direto para a casa das pessoas que nos solicitavam. A vizinha que mora sozinha começou a dar o que não consumia e, assim, foi possível ajudar ainda mais famílias. A começar pela nova família do meu afilhado que acabara de se formar. Levamos cesta básica e muitos legumes. 

Outra prima que é empregada doméstica, tem filhos, paga aluguel, ficou doente e não tinha dinheiro para pagar a condução e buscar os alimentos. Mas a minha companheira tem moto e então fomos até Osasco levar. Com a vizinha da minha mãe, costureira, se passava o mesmo. Neste caso, havíamos levado tantos mantimentos que foi possível dividir. 

Da ocupação recebíamos cestas de 15 em 15 dias. As garotas de programa também viveram imensas dificuldades, porque as casas de prostituição também estavam fechadas. Fiz uma força tarefa junto com uma colega de trabalho e pude contribuir bastante com o que tinha em casa. Esses foram alguns exemplos da partilha.

Meu auxílio emergencial foi aprovado e somei com valores que recebi do Projeto Baobá através da Marcha das Mulheres Negras, onde também ajudo a construir. Isso me possibilitou contribuir com muitos pedidos de ajuda, de mulheres que não têm acesso a informações, mesmo com bastante ajuda de diversos setores, muita gente não soube acessar os trâmites burocráticos e tecnológicos das “boas ações”, eu fui ponte.

Luto

Minha mãe teve Covid-19 e, felizmente, depois de muita preocupação, passou ilesa pela doença. No entanto, perdi dois conhecidos de infância, o pai da minha amiga a mais de 30 anos em minha vida e uma prima. Tudo isso adicionado a tanto descaso público e ao câncer chamado racismo que gritou neste período.

Por fim, me senti por diversas vezes muito deprimida, paranoica, chorosa e com certeza os coletivos de mulheres dos quais faço parte me ajudou muito neste processo de não adoecer psicologicamente.

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18 a 24 anos Branca Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Pernambuco

“A adaptação não foi fácil. Tive momentos de estresse, nostalgia, e uma sensação de estar dentro de um círculo se fechando ao meu redor”

A princípio, a adaptação a esse novo contexto de distanciamento social e isolamento não foi fácil. Principalmente no início. Sobretudo, tive que me habituar com o fato de não poder abraçar as pessoas que gosto, sendo que o abraço para mim é algo tão natural e espontâneo.  

Por gostar de estar sempre em movimento, engajada com atividades, o período mais difícil para mim foi o isolamento nos meses de pico da pandemia. 

Do mesmo modo, durante o isolamento, tempo em que fiquei praticamente sem sair de casa, no meio rural, sem contato com outras pessoas para além da minha família, tive momentos de muito estresse.

Às vezes, senti nostalgia, e uma sensação de estar dentro de um círculo se fechando ao meu redor. 

Adaptação da rotina

Sou mulher rural, estudante, feminista e integrante do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Pernambuco (MMTR-PE),

O período dentro de casa implicou em muitas coisas. Tive que me readaptar e reorganizar toda minha rotina, seja de estudos ou de trabalho. Não foi fácil, pois tive que assumir parte das atividades domésticas. Além da responsabilidade com meus dois irmãos mais novos, um de 7 e outro de 8 anos. 

Em meio a tudo isso, e enfrentando as limitações e algumas dificuldades, consegui me manter, sempre que possível e mesmo que de forma virtual, participando do movimento, estudando e trabalhando. Isso foi fundamental para preservar tanto minha saúde emocional quanto física. 

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta Rio de Janeiro

“Nas prisões, com um surto pandêmico como esse, essa ação do vírus não vai trazer só extermínio”

Eu tive uma passagem em 2010. Começo minha história a partir desse processo. Apesar de haver outros marcos importantes na minha vida, esse vai contribuir muito pra esse relato.

Em 2010, já vivenciando uma vida familiar, acontece um processo de prisão e fico um período de cinco anos e seis meses cumprindo essa medida. Isso trás – para o meu futuro, presente e como fica no passado – muitas recordações, reflexões e questões nocivas. Mas que podem ser construtivas com um esforço próprio.

Quando falamos sobre sistema de prisão, a gente sabe que não funciona. Não trás benefício e sim danos. A sociedade que se debruça em cima das prisões como se fossem resolver todos os problemas sociais. Sabemos que existem diversas questões quando falamos de prisões, que trazem discussões, dores, sentimentos. Temos que ficar bem complacentes, pois são realidades diferentes.

Abordando o assunto prisões, você pode afetar diretamente uma pessoa que acredita que sofreu uma violência e reforçar que o sistema precisa ser assim. Ou pode afetar também outro público, que acredita que as prisões não são o caminho. Mas eu, lidando com essa questão, venho me trazendo muitas reflexões. A partir desse impulso, me trás um despertar para uma realidade, uma urgência.

Somos muito doutrinados, orientados para não enxergar a violência provocada pelo Estado. Conseguimos enxergar a violência que sofremos diretamente, no cotidiano, num furto ou assalto a mão armada, mas as que sofremos historicamente somos educados para não enxergar.

Começando a nos organizar…

A partir desse momento de viver intramuros, no cotidiano da prisão, começo a enxergar do ambiente micro uma questão macro dentro de uma realidade restritiva de direitos. Conseguimos notar como essa dinâmica social reflete diretamente nesses ambientes de privações.

As violências sofridas, não apenas dentro das unidades prisionais, mas antes mesmo de se entrar num sistema prisional brutal. A partir desse movimento, a gente começa a construir em coletivo, tentar se inserir em atividades atividade, incidir politicamente, apesar das restrições. Trazer ideias que poderiam mudar muitas trajetórias e realidades para uma galera que vem sofrendo, sendo massacrada, diluída, pulverizada dentro desses ambientes. E começamos a nos organizar para combater um sistema que vem trazendo reflexos nocivos, então alguns companheiros e eu começamos esses trabalhos.

“Eu sou eu – reflexos de uma vida na prisão”

A partir daí, o “Eu sou Eu” começa a ser construído dentro dessas unidades. Trazendo informações, vínculos familiares para essas pessoas que estavam ali, seus parentes vivendo uma ruptura dentro daquele local e vai potencializando. Alguns companheiros vão progredindo, dando sequência a essa dinâmica.

Nos encontramos na Praça da República, ali no Centro da cidade. Parece um surto de desespero para tentar fazer alguma coisa, sair daquele lugar que foi proposto, só recebendo danos, opressões, repressões.

Queríamos sair daquele lugar e tentar ajudar outras pessoas, porque nossos familiares foram extremamente afetados, a gente viu como é que é um processo de prisão, que não arrasta só um corpo, mas sim corpos. Os que são privados de fato entre concreto e grades e os que ficam privados socialmente e são sentenciados, não por um sistema jurídico, mas por um sistema social que também sentencia muito mais agressivamente do que apenas um bater de um martelo.

E hoje o “Eu sou Eu” está completando três anos, caminhando para quatro anos. Trazendo a realidade prisional que muitas vezes as pessoas não conhecem de fato, que é o dia a dia do cadeado que tranca e o que abre, do confere a visita, saída de uma unidade para outra.

Embora existam muitas pesquisas e pesquisadores debruçados nesse assunto, a realidade e a vivência extrapolam toda essa dinâmica. Trazemos essa visão, tentamos contribuir de alguma forma para que políticas públicas sejam cumpridas, sabendo que estas podem ser violadas diariamente. O Estado não consegue dar conta disso: ou por ser um projeto bem estabelecido, ou porque falhou.

E chega a pandemia

A gente tá vivenciando um momento pandêmico, uma realidade que vem mudando bruscamente, tanto socialmente, como financeiramente, e potencializa a desigualdade.

Quando se trata do sistema prisional não é diferente, já que se torna uma caixinha praticamente intransponível. Várias instituições de controle não conseguem ter muito acesso aos interiores das prisões. A própria secretaria de administração penitenciária tem essa autonomia de gerenciar esses ambientes, e traz informações subnotificadas, imprecisas, inverídicas – como se estivessem cumprindo as determinações penais.

Dentro desses ambientes, com um surto pandêmico como esse, entendemos que essa ação do vírus não vai só trazer um extermínio, mas também vai ser usada como um ferramenta de punição e até mesmo como uma forma de esvaziamento das unidades prisionais.

Porque se a gente tem um serviço de Sistema Único de Saúde (SUS) precário, um sistema na prisão que não funciona, não tem funcionários suficientes que dominam a medicina. Faltam funcionários para realizar o controle de testagem e de notificação. Há muito menos espaço para isolar pessoas contaminadas e de grupos de risco. São arquiteturas totalmente despreparadas, que não foram pensadas em trazer saúde, educação, “ressocialização”.

Temos um número enorme de contágios, mortes que não são notificadas, muitos familiares nem sabem. Enquanto pra muitos faz refletir sua humanidade, para outros é extremamente nociva, genocida. Uma realidade que trás medo, porque é um projeto de uma população específica – eu me incluo nessa estatística de pessoas pretas, faveladas e periféricas – a criminalização da pobreza. Esses espaços estão destinados para essa população.

“Nós por nós”

Nesse momento, sou articulador político e mobilizador da iniciativa Direito a Memória e Justiça e cofundador da associação Eu sou Eu – Reflexos de uma vida na Prisão

Para o futuro, eu vejo que existe a possibilidade quando construímos a partir da nossa realidade, do “nós por nós”, do compartilhamento das nossas dores e fazer disso uma nova conjuntura política com cuidado para não tropeçar nas mesmas questões que o Estado nos empurrou.

Mas com um Estado extremamente capitalista, de narcisismo, fica muito difícil de pensar em dias melhores. Parece que vai continuar essa questão de “ser resistência”.

Pra desfrutar de um futuro mais justo, vai partir de uma política popular, movimentos se unindo.