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“O bairro Jardim Damasceno precisa de políticas públicas”

O Jardim Damasceno é um bairro residencial situado na Zona Norte de São Paulo, pertencente ao Distrito da Brasilândia — Freguesia do Ó. É um bairro de extrema carência de políticas públicas que afeta o desenvolvimento do bairro e de seus habitantes. Essa carência se evidenciou no período da pandemia, pois muitas situações que eram invisíveis aos olhos da população local, tornaram-se visíveis com a perda de empregos. E, com a insegurança do momento de pandemia, seus casos se agravavam.

Primeiro, a falta de recursos financeiros para compra dos produtos de higiene e limpeza eram altas. No mesmo momento em que faltavam recursos até mesmo para alimentação básica, diante de todas essas observações, entra em ação o trabalho do Espaço Cultural Jd. Damasceno.

Trata-se de um galpão que foi erguido a partir de uma tragédia na época do Governo de Luiza Erundina, quando houve um desabamento em uma área de risco matando então três crianças soterradas. Diante de tamanha tragédia, houve a necessidade de erguer um galpão de emergência para abrigar as famílias destas crianças que vieram a óbito, enquanto era providenciado uma moradia adequada.

Espaço de atividades

A partir daí, o galpão ficou sendo utilizado como um espaço social, com diversas atividades como arte na rua e saraus por exemplo. Desde a construção do espaço, vem sendo travado uma luta com o poder público local e a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA), pela concessão de uso do espaço ou por uma gestão compartilhada com o poder público para que a comunidade possa continuar utilizando o espaço. Entre as atividades realizadas no local estão o atendimento de reforço escolar para as crianças e adolescentes, esportes, debates com grupos de mulheres, cinema, biblioteca e horta comunitária.

Todos os trabalhos são voluntários sem nenhum investimento público. O coletivo retira do próprio bolso, recursos para quitar as contas de água e luz. Os trabalhos desenvolvidos, são as formas que encontramos para evitar o maior contato das crianças com os vícios, apontando a elas um outro “mundo possível”.

Impactos da pandemia no Jardim Damasceno

Diante da pandemia, a responsabilidade aumentou, devido à grande procura de muitas pessoas por ajuda, como alimentação, produtos de higiene e máscaras. E diante dessa necessidade, tivemos que nos reinventar. Conseguimos máquinas de costuras emprestadas e doações de tecidos para produzir às máscaras para doar a comunidade local. Além disso, formamos grupos de orientação sobre a importância da higienização da casa, do corpo e dos alimentos.

Porém, como higienizar os alimentos se não os tinham? E essa era a demanda maior. Tivemos que mobilizar amigos e ONG’s parceiras, em arrecadação de alimentos para atender a população que se encontrava desempregada. Conseguimos atender muita gente por um longo período de tempo, o mais critico da pandemia. E até hoje, ainda atendemos com cestas básicas um grupo de pessoas com deficiência e comorbidade e continuamos orientando e distribuindo máscaras a quem procura.

O que nos marcou nessa força tarefa, foi a surpresa da evidência de tantas pessoas com um índice altíssimo de vulnerabilidade social, devido a ausência de políticas públicas e ausência do Estado. A invisibilidade dessas pessoas ainda nos surpreende.

E é o que a pandemia vem fazendo, trazendo a tona essa invisibilidade. O galpão ao qual me refiro, é um espaço construído de madeirite que de tempos em tempos. Temos que trocar as folhas de madeirites porque apodrecem, já que o governo local não nos permite uma construção adequada. 

O Chamamos então de Espaço Cultural do Jardim Damasceno. Consulte nossa página no Facebook:  @EspaçoCulturalJardimDamasceno.

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“A invisibilidade é um lugar feito por uma sociedade capitalista e racista”

A invisibilidade não é um poder dos super heróis. A invisibilidade é o lugar que uma sociedade capitalista e racista, coloca os seus. Seu Ubirajara estava na rua do Casa Viva, quando avistou algumas pessoas com cestas básicas. Seu Ubirajara foi em casa, colocou a sua melhor roupa e foi pedir a sua cesta básica. Ele disse assim: vim buscar a minha cesta!  

Parecia uma criança que se arruma para ir a uma festa e pegar sua sacola de docinhos. Respondi: “o senhor é avô de algum aluno do projeto? Pois as cestas são distribuídas para os inscritos nesta lista.” Ele respondeu: “mas, por favor, olhe para este velho que está muito necessitado.”

Assim como seu Ubirajara, muitos outros estão dentro de casa, sem alimento, sem quem cuide, sem quem os apoie, desse modo. 

A invisibilidade é um plano concebido desde a colonização

Com a pandemia da Covid-19, acentuaram–se as desigualdades sociais do nosso país, empurrando cada vez mais seus cidadãos para as margens dos direitos e privilégios. Nesta sociedade, a invisibilidade é determinada pelo endereço, CEP, origem e cor da pele. Seguindo os paradigmas dado à essas condições, que associadas ao nível de escolaridade, idade, condição física e mental, os colocam em um lugar do esquecimento e coisificação, portanto. 

Um plano concebido desde a colonização e acirrado nesses dias de pandemia, o desprezo, distanciamento, desemprego, a fome e o adoecimento estão presente no cotidiano de muitos brasileiros. 

O invisível dos invisíveis, estão nas ruas em busca de um mínimo de dignidade para as suas vidas. A solidariedade dos guetos e favelas é que promove ainda a esperança nos corações. No final da distribuição, chamamos o Seu Ubirajara que foi feliz da vida com o alimento para a sua casa.  

Os moradores de favela são invisíveis ao sistema! Mas dentro da favela, o invisível dos invisíveis tem nome, tem endereço e é visível! 

Vítima da invisibilidade

Este relato se deu em junho de 2020 em plena pandemia. Histórias não deixavam de chegar com sofrimentos e dores do abandono e desespero. Hoje, dezembro de 2020, estou cansada ao ver que os números de infectados e de mortos beiram ao de início da pandemia do Brasil em maio. 

Chega a triste notícia da morte do seu Ubirajara. 

Como sempre sozinho,  foi descoberto pela vizinha que sentiu a falta de ver o basculante do pequeno cômodo se abrir. Triste! Seu corpo ficou inerte dois dias dentro daquele quarto quente.

As diversas manifestações dos vizinhos que lamentavam a morte do seu “Bira” e a ausência de um familiar para assinar o documento para que ele não fosse enterrado como indigente. 

Por conseguinte, foi necessário acionar com a defensoria pública para que o serviço funerário fosse autorizado entrar na favela para a remoção do corpo, porque foram diversas as razões para as negativas em atender as demandas da situação. Empecilhos para um último ato de caridade para uma vida. 

Se seu “Bira” morreu por Covid-19, não sei. Mas sei que foi vítima antes, durante e depois (se há o depois), de abandono e da invisibilidade dos nossos idosos e do nosso povo tão sofrido.  

Das mulheres que estão nas faxinas, nos meios de transportes lotados em busca do alimento para suas famílias. Dos homens desempregados e dos jovens entregadores que enfrentam o preconceito estabelecido pela sociedade cruel e nefasta, que mata nossos jovens e as nossas crianças. Impedindo uma geração de riqueza e sonhos!

Por isso, estou impactada, indignada e sofrida com uma expectativa que muito ainda vamos ver. Se o Covid 19 deixar! 

“Janelas da Conectividade”

Em dias de pandemia da Covid-19, o distanciamento e o isolamento social são determinantes para o não adoecimento. Assim mesmo, somos convidados diariamente a entrar e/ou participar de várias salas virtuais. Pois, salas coloridas, salas embranquecidas, salas floridas, salas com belos quadros ou apenas salas com belas estantes repletas de livros. 

Com novos hábitos incorporados ao cotidiano, a conectividade virtual ganhou novas funções promovendo encontros, reuniões e uma comunicação desafiadora em aprender a ouvir, esperar a sua vez de fala e de escuta. 

Salas com diversas janelas que interagem e trocam saberes, conhecimentos, afetos e sonhos. Sim! As Janelas da Conectividade, que na vida real e cotidiana da favela ainda se mantêm fechadas e ou cobertas com lonas e plásticos; abafando o ambiente e escondendo os diversos dramas das diversas formas das violências de exclusão e desigualdades sociais.

Entrega de cestas básicas na favela

Com um plástico amarelo na janela e um quarto difícil de circular, o encontrei sentado a beira da cama desiludido com tanto abandono. Quando chamamos pelo seu nome, ele não acostumado a receber visitas, ficou surpreso ao nos ver a porta de sua casa. Então, com dificuldade ele se levantou e disse: Vocês são aqueles jovens da Escola de Música? E logo esboçou um sorriso discreto, seguido de um soluço em uma voz embargada e agradecida por receber uma cesta de alimento, carinho e afeto.” 

Sim! Foi “esta a reação de alguém que em meio à tantas conectividades ainda se encontra no isolamento de sempre” – este fato nos foi relatado por jovens em momento de entrega das cestas básicas nas ruas da favela. As Janelas da Conectividade não se fecha para os jovens! Sempre ansiosos às novas descobertas, vasculham a Internet de um modo voraz em busca de novos conhecimentos, novos relacionamentos e aventuras. 

Sim, aventuras! Mas o que dizer de um jovenzinho que, em plena pandemia, adoece de modo a paralisar a sua vida? Onde a janela é o aparelho de celular que o leva as diversas memórias de uma vida que ele precisará se reabilitar? “Mas e a pandemia? Não tenho onde me tratar neste momento. O que será de mim? Sim! O que será?” 

É o que indaga o menino à sua mãe, que muito aflita vem nos contar a triste sorte do menino e que com lágrima nos olhos recebe a sua cesta de alimentos e volta para sua casa revigorada e esperançosa por dias melhores. 

Por fim, que possamos aprende nessa pandemia, em que as Janelas da Conectividade, estão para além das salas virtuais. 

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60 anos ou mais Ensino Fundamental Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“O governo não está fazendo seu trabalho, e não podemos ficar parados”

Neste momento de pandemia, a gente deu uma parada para atuar com a questão da contribuição com as cestas básicas, como material de limpeza e higiene, com as famílias que nós trabalhamos. Agora, neste momento, estamos aqui em Jacarepaguá.

Trabalhamos com mais ou menos 15 unidades em parceria com a teia da zona Oeste, com ação e cidadania, vaquinha virtual e contamos ainda com a Fundação Oswaldo Cruz. Nós conseguimos ajudar mais ou menos 900 famílias com bolsas de alimentos.

Entendemos que o governo não está fazendo seu trabalho, e não podemos ficar parados. O movimento de moradia escolheu a opção de trabalhar com doação de cestas básicas, por entender que as pessoas estão precisando.

O grupo que a gente tem hoje em Jacarepaguá são 190 famílias, 80% mulheres. Dentro desses 80%, muitas delas são mães solteiras, chefes de família que precisam trabalhar. Tem muitas diaristas, empregadas domésticas… e nós sabemos que essa demanda é exatamente a demanda que está fora do mercado de trabalho.

“Uma casa onde viviam oito pessoas, hoje comporta dez, ou mais.”

Independente de estar fora do mercado de trabalho, tem uma outra questão que agrava ainda mais a situação, é o seguinte: a mãe que tem filho na escola, que tem filho na creche, hoje não leva seus filhos, então ela não consegue trabalhar e não tem com quem possa deixar o filho.

Outra coisa que a gente percebeu quando a gente estava fazendo distribuição das cestas (fizemos um cadastro das famílias), é que as famílias na grande maioria eram agregadas. Ou seja, o filho que casou e foi embora morar de aluguel, devido à pandemia, teve que retornar para casa de pai e mãe. Então, uma casa que comportava 8 pessoas hoje comporta mais 10, ou mais.

Tudo isso é uma situação que vem se agravando a cada dia e a gente, enquanto o movimento de moradia, sente muito. Principalmente eu que já tenho minha casa, porque vejo famílias, à noite, procurando uma marquise para forrar e colocar os filhos para dormir.

Trabalho em pequenas comunidades

Não chega nenhuma ajuda do Governo Federal em comunidades menores. A única coisa foi o auxílio emergencial que é um direito nosso. Agora, piorou. 300 reais não dá para pagar o aluguel, água e energia. Imagina que essas pessoas também precisam de alimentação! Aqui em Jacarepaguá não chegou nenhum tipo de ajuda a não ser dos parceiros que a gente vem falando.

Então, as cestas básicas que foram doadas foram muito bem-vindas naquele momento e continuam sendo bem-vindas, porque a gente precisa continuar com esse trabalho. Até porque, não sabemos quando isso vai acabar.

Até os hospitais de campanha estão todos fechando, sem contar os hospitais sucateados. Não tem nada o que a gente possa fazer para atender toda essa população! Precisamos de ajuda.

Obrigada à plataforma pela possibilidade da gente publicar o nosso sentimento em relação à Pandemia.

Sou Jurema da Silva Constâncio, coordenadora da União Nacional de Moradia Popular. Estou falando da Cooperativa Xangrilá. A União de Moradia Popular é o movimento que trabalha a questão de moradias para famílias de baixa renda com mutirão e autogestão.

Veja também: “Durante o isolamento vi o quanto o ser humano é importante”

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“Situação de pobreza extrema na comunidade de Xangrilá”

Durante a primeira onda da pandemia, descobrimos que as pessoas estavam vivendo em pobreza extrema. Então, nos reunimos na comunidade de Xangrilá e eu pude dar uma contribuição pouca, porque Graças a Deus, permaneci trabalhando. Diferente de muitos colegas, não fiquei desempregada. Deparei-me com várias pessoas, famílias, pais de famílias, todos desempregados e necessitando de uma ajuda financeira ou do governo.

Com o pouco recurso que tínhamos, conseguimos ajudar as pessoas com cestas básicas, que foram muito bem vindas. As pessoas ficaram muito gratas. Com um breve relato que elas fizeram, pudemos perceber que as pessoas ficaram sem chão, sem saída, durante esse período.

Pessoas que tinham um emprego formal e hoje se depararam com uma situação tão difícil. Ontem, não havia nem comida.

Mesmo com o auxílio emergencial, as pessoas não conseguiram se manter. O valor do auxílio de 600,00 foi muito pouco. Com poucos recursos, conseguimos atender pelo menos um pouco na alimentação, pois o principal também é a pessoa estar bem, bem alimentada.

A gente percebeu que as pessoas estavam passando necessidade, em pobreza extrema.

Algumas pessoas choravam, e a gente estava aqui, tentando ajudar, de uma forma ou de outra. A gente fez de todo coração esse trabalho. E foram chegando cestas básicas. Mas agora, infelizmente, a gente não tem mais como ajudar as pessoas nessa parte da alimentação. E como a pandemia ainda não acabou, praticamente 90% das pessoas daqui ainda estão sem emprego formal, muitos estão correndo atrás de trabalhar na rua para tirar alguma forma de sustento.

Pedido

Quem puder ajudar, as cestas básicas serão muito bem-vindas novamente, porque a gente tá precisando muito. Quem puder, fique em casa E quem estiver trabalhando, segure o seu trabalho, porque a gente não sabe como será o ano de 2021. Eu acredito que vai ficar um pouco pior, mas a gente tá aí para poder ajudar, na maneira que for possível, e da forma que for necessária.

São mais de 900 famílias nas redondezas de Xangrilá. Imagine o que o nosso povo não está passando nessa situação de pandemia! Tomara que a vacina seja eficaz para podermos nos reerguer, não dependendo do governo, porque o governo de hoje não está aí para ajudar o povo.

Meu nome é Jaqueline de Almeida, sou moradora de Xangrilá.

Veja mais: “Precisamos de cestas básicas durante a Pandemia”

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“Empatia: cuidando do outro estamos ajudando a nós mesmos”

Eu sou uma pessoa que ama a vida, tenho empatia e acredito que eu vim com uma missão. Me chamo Iara, e este nome é dado às mães. Então, eu acredito que vim para cuidar das pessoas. Muitos me chamam de altruísta, mas altruísta ou não, eu sei que vim com uma missão.

Durante esse processo que está acontecendo com toda a humanidade, muita coisa mexeu comigo. Nós, seres humanos, temos o compromisso, um com o outro, de cuidar do outro, em todos os aspectos e ter empatia. Muitas pessoas tiveram surtos e acredito que deveriam disponibilizar psicólogos e terapeutas para mostrar os cuidados e como lidar com a pandemia.

E sabendo que nós somos produto do meio, temos também de nos adaptar, principalmente na questão da higiene, pois nossas vidas foram fortemente impactadas. Eu me coloquei na posição de ajudar. Coloquei à disposição o meu número de telefone para que as pessoas possam entrar em contato comigo para conversar. Já cheguei ao ponto de ter que chamar uma moto ou um carro para providenciar os medicamentos necessários para pessoas doentes, porque elas não teriam como comprá-los.

Porque devemos ter empatia

A gente precisa fazer alguma coisa pelo outro. E essa questão das pessoas dizerem que não tem ajuda governamental não interessa, pois o mais importante é que a gente possa fazer algo pelo outro, independente de termos ajuda. E se dividirmos o que temos, a gente vai viver bem melhor. Pois esta pandemia veio justamente em um momento em que as pessoas estavam extremamente desgarradas. É como se tivesse perdido o amor um pelo outro.

Essa situação ao mesmo tempo tem unido as pessoas, que estão dando mais atenção a quem está na rua com fome, a quem está nu, a quem está precisando de medicamentos. Estamos fazendo muito e eu quero continuar fazendo a minha parte, porque isso é com Deus.

A partir do momento que estamos ajudando o próximo, estamos ajudando a nós mesmos. Eu, mesmo apresentando problemas de saúde (tenho 10 parafusos em minha coluna), não me sinto impedida de pensar que existem problemas maiores lá fora, muito maiores que os meus. Precisei até acolher pessoas de outros países em minha casa que estavam sendo escravizadas. Enfim, uma série de problemas. Pessoas que vieram do interior, com parentes aqui internados e que não tinham onde ficar, e eu acolhi.

Ajudar nunca é demais

E é assim: a gente toma conta da gente e toma conta do outro. A gente faz o que tem que ser feito é não ter e tem que ter para dar. Ajuda nunca é demais, e o que a gente precisa fazer de melhor é isso, é
olhar o outro como um todo, estando no lugar dele. É você ter estar ao lado de fora de um hospital com um paciente lá dentro e não poder entrar, mas ter alguém para lhe dizer: “olhe, eu estou aqui”.

Eu faço isso mas não quero nada em troca. Estou fazendo isso porque é de mim, é minha índole, e espero que isso tenha sido de grande valia.

Para finalizar, que isso não se mantenha apenas durante a pandemia, pois nossa vida já foi modificada. A partir do momento em que tudo isso mudou a nossa vida, a gente também precisa mudar. Mudar nossos conceitos errôneos em pensar em não ajudar para não virar um circulo vicioso. Não, se a gente tem roupas nós oferecemos roupas; se a gente tem alimentos, a gente vai oferecer alimentos, e assim sucessivamente porque a vida vai continuar.

E nós estaremos diferente por ter sofrido essas agressões, mas temos que cuidar. E a palavra de ordem é gratidão, empatia e e cuidado. A partir do momento que acende uma luz, eu estou iluminando o meu próprio caminho.

Eu sou de Logun Edé, espiritualista ecumênica oriunda do candomblé da nação Angola e com raízes na Casa Branca, sou neta de Julieta Alves de Oxum, ladê Durvalina da Anunciação de Oxóssi. 

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Parda Raça/Cor São Paulo

“Descobri a doença da minha filha durante a pandemia”

Nesse período, minha filha de treze anos, que nunca ficou doente, começou a despertar uma febre acima de 40 graus. Logo, procurei atendimento em hospitais públicos lotados de pessoas com suspeita de Covid. Foi uma luta de dois meses, uma febre que não cedia e vários diagnósticos errados para a misteriosa doença, sendo um deles a Covid-19. 

Depois de mais um tratamento para um diagnóstico errado, ela foi encaminhada ao Centro de Especialização Infantil. Ali precisei tirar forças, não sei de onde, para enfrentar a internação da minha filha. Durante alguns dias em que ela esteve internada em uma unidade do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graac), para averiguação de câncer. Foram realizadas três biopsias e transfusão de sangue.

Ela ainda sofreu dois derrames pleural e uma pneumonia, que quase a levou de mim. Após essa batalha, finalmente chegaram ao diagnóstico correto: minha filha sofre de Lúpus, uma doença inflamatória autoimune que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos.

Hoje, ela está bem, apesar de muito inchada, devido ao tratamento da doença. Eu, enquanto mãe solo e mulher militante, me encontro muito mais forte e com muita garra para lutar contra as injustiça sociais desse país.

Militância

Sou uma mulher militante em defesa dos direitos humanos. Escolhi a educação como bandeira de luta por ter como experiência a ausência da educação, que acarreta danos na vida das pessoas que têm esse direito negado. 

É fato que ninguém esperava que fossemos viver um momento como esse em que estamos vivendo. A pandemia nos trouxe muitos desafios e um dos principais foi e está sendo nos manter vivo-as diante de todas as dificuldades, e para isso, tivemos que nos reinventar, portanto.

A princípio, enquanto movimento social, sofremos ataque por parte da prefeitura, que de uma certa forma tentou destruir o movimento de educação existente há mais de 30 anos. Foram retiradas a única ajuda de custo salarial que os educadores recebiam e a ajuda de custo dos lanches dos educandos em meio à pandemia. 

Diante disso, tivemos que travar uma luta acirrada na Câmara Municipal e no Judiciário para reverter esse ato criminoso. Por fim, ganhamos a causa na Justiça. No entanto, tudo aconteceu em um momento em que eu me sentia amedrontada. Acreditava que seria contaminada e morreria, pois o índice de contaminação e mortalidade em minha região era a mais alta e já não havia mais leitos nos hospitais.

Leia também: “As super heroínas que não sentem dor nem medo só existem na ficção”

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25 a 39 anos Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Parda Pós-Graduação Incompleta Raça/Cor São Paulo

“A pandemia da Covid-19 aprofundou as vulnerabilidades do país”

Sermos atravessados por essa pandemia em um momento já tão difícil nos colocou em um lugar de aprofundamento de muitas vulnerabilidades. Nesse momento, o meu olhar para as pessoas ao meu redor passou a ter uma lente ainda mais forte da importância de suas vidas. A pandemia ainda não passou, e continua a ser ignorada pelos incompetentes governadores, ministros e presidente. Assistimos de boca aberta, lágrimas nos olhos e apunhalados pela indiferença a morte de centenas de milhares de pessoas. E o punhal da indiferença nos mata enquanto seres humanos cada dia mais um pouco, enquanto a política econômica neoliberal avança e temos nossos direitos violados, aprofundando a precariedade e vulnerabilidades de nossas vidas.

No início do ano eu já lia com muita tensão as notícias sobre o novo vírus que havia surgido na China. Sabia que algo grave estava por vir, com notícias indicando possíveis impactos socioeconômicos. Olhei para as condições financeiras na qual estávamos eu e minha parceira, uma travesti que vive com HIV, que também estava sem emprego formal, vendendo o almoço para comer a janta. Mas ainda tínhamos a possibilidade de pagar o aluguel.

Não éramos os únicos, a situação de quase todes que conhecíamos era a mesma ou até pior. A atenção para as tensões já presentes no cotidiano se aprofundou com mais uma ameaça de aumento de crises. Em fevereiro, eu e minha parceira fortalecemos mais uma vez o laço de parceria, cuidado e muita paciência. Foram meses tensos e estávamos sozinhes dentro de casa.

Vulnerabilidades escancaradas

No que concerne ao meu trabalho, assisti com um peso no coração os projetos de prevenção e promoção da saúde minguarem com o fechamento das escolas. As vulnerabilidades foram escancaradas. Nos últimos encontros presenciais vi nos olhares daquelas e daqueles estudantes o receio de mais um terremoto em suas vidas: uma pandemia que trazia expectativas – que infelizmente se realizaram – de centenas de milhares de mortos. Esses jovens são moradores e moradoras de favelas, e já diziam: a gente é quem mais vai se ferrar com isso.

Ouvi na voz de professoras queridas a força de continuar se movimentando pela garantia do direito a uma educação de qualidade, seguido do pesar de reconhecer o fracasso das políticas instituídas pelo estado para a continuidade das aulas. Os/as estudantes não estavam conseguindo acompanhar, e, ainda pior, o contato com muitos/as deles/as foi perdido.

Direitos violados

Os trabalhos de prevenção ao HIV e outras IST ficaram ainda mais difíceis nas escolas. Esse assunto não estava sendo abordado no currículo oficial com as aulas online, e a possibilidade de registro audiovisual de professores/as falando sobre esse tema em meio ao turbilhão de políticas conservadoras apenas aumentou o medo já existente de abordagem do assunto. Pois, essa violação ao direito desses jovens a uma educação sexual baseada em evidências aprofundaria ainda mais suas vulnerabilidades à AIDS.

Em outros projetos com movimentos sociais junto a jovens para trabalhar a prevenção experenciei o enfraquecimento de vínculos tão duramente trabalhados nos últimos tempos. O contato com esses jovens foi extremamente dificultado pela violação do seu direito a uma conexão de internet, além de suas vidas terem mudado de rumos em poucas semanas, sendo forçados/as a procurarem formas para ajudarem suas famílias a continuarem se alimentando e pagando suas contas. Todo o resto ficou em outros planos para depois. Mas continuamos com o trabalho, tentando fomentar a discussão sobre a importância dos direitos humanos e, principalmente, a garantia desses direitos.

Incertezas

Após sete meses sem visitar meus familiares, fui para o interior de São Paulo, carregado de uma grande tensão, um medo muito grande de poder estar levando o novo coronavírus para lá. A dinâmica de interações naquela pequena cidade é muito diferente da de São Paulo, com muitas visitas diárias de parentes e conhecidos na casa de minha mãe. No entanto, consegui me manter em isolamento durante quase duas semanas antes de entrar em contato com essas pessoas.

As minhas diversas tentativas de comunicação sobre a importância de manter distância física e usar máscara falharam miseravelmente. Por isso, me senti um péssimo trabalhador da saúde na área da prevenção.

Mas era tudo muito novo e eu não daria conta dos medos e certezas baseadas em centenas de notícias e informações falsas das mensagens de WhatsApp que apitam o dia todo nos celulares de minhas tias, por exemplo. Certezas que são baseadas na primeira reação emotiva frente a uma notícia absurda se endurecem rápido, ficam sólidas e destrutivas. Enfim, qualquer contestação é recebida com agressividade. São efeitos do fundo buraco político da ascensão neofascista no Brasil.

Sou psicólogo, trabalho com prevenção ao HIV/AIDS em escolas públicas de São Paulo através de projetos da USP. Também faço parte da Coletiva Loka de Efavirenz. Este é um breve relato sobre minha vida pessoal e profissional durante o início da pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo.

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40 a 59 anos Branca Ensino Fundamental Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Paraná Raça/Cor

“O distanciamento nos ensinou a valorizar as pessoas que amamos”

Durante quase um ano de pandemia, a minha maior dificuldade é o distanciamento dos meus filhos, dos meus netos, dos amigos, da minha família que a gente não se vê com mais frequência não se via como se via antes. Nem pode, porque agora exige um cuidado mais cauteloso.


Eu aprendi que o único projeto capaz de combater a fome no mundo é o projeto da reforma agrária, produção de alimentos. Minha rotina, na quarentena, foi a quarentena produtiva. Isso é o coletivo, produção de alimentos. Esses alimentos são comercializados e boa parte vai para doação para as famílias carentes.

Nós já ajudávamos várias famílias. Entretanto, com essa pandemia, a necessidade foi maior de ajudar muito mais. E surgiu a Campanha Solidária do MST, onde todos abraçaram essa causa, para expandir mais as necessidades, porque nas cidades e nas periferias há bastantes pessoas que passam por necessidades, e nós aqui conseguimos suprir boa parte ajudar essas pessoas com nossa produção, não doando o resto que está dentro da casa, mas partilhando aquele que nós produzimos.

Vou deixar um recado para vocês. Vamos enxergar mais o ser humano, não os seres humanos, mas o ser humano, a pessoa em si, e isso aprendi bastante. Enxergar com outros olhos, aprender a ouvir mais. Agora, infelizmente, devido ao distanciamento social, a gente não pode dar um abraço, mas uma palavra amiga. Por isso, quero deixar uma frase para vocês: “viva o agora, porque o depois, a Deus pertence. Valorize o outro enquanto há tempo”.

Meu nome é Zilda. Sou militante do MST e estou acampada no campamento Lírios na luta de Porecatu, no Norte do Paraná.

Veja mais: “Descobri a doença da minha filha em meio à Pandemia”

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18 a 24 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Indígena Maranhão Mulher Cis Raça/Cor

“As empresas e os brancos se sentiram no direito de jogar lixo e dejetos hospitalares dentro do território e perto de nossos igarapés”

Sou Djelma Viana Guajajara, do povo Guajajara e especificamente da Família Viana. Minha família descende de meu bisavô, o fundador da Terra Indígena Rio Pindaré, dando início na criação da Aldeia Januária, que hoje é a Aldeia “mãe” ou a maior. Atualmente, na terra indígena Rio Pindaré conta-se 8 Aldeias, obtendo uma quantidade de quase 3 mil indígenas em todo o território. 

Há contaminação e todos os outros problemas que nós enquanto indígenas sofremos diariamente; nessa nova pandemia, isso só nos afetou mais ainda.

Foto de Djelma Guajajara, que acompanha relato que denuncia o lixo e os dejetos hospitalares que jogado dentro do território indígena e perto dos igarapés.

É que empresas e os brancos que moram nas proximidades se sentiram no direito de jogar lixo e dejetos hospitalares dentro do território e perto de nossos igarapés, que é de onde tiramos o nosso sustento.

De mãos atadas para retirar ou barrar o lixo

Isso tudo nos afetou de forma opressora e humilhante. Estávamos lutando contra um monstro invisível que é a Covid-19: para que não chegasse aos nossos anciãos; que não matasse de vez a nossa cultura. Nos sentíamos com as mãos atadas, sem poder tomar nenhuma medida para retirar o lixo. Ou então, ao menos, barrar o lixo.

Além disso, a Covid-19 ainda tirou nossa calma e nos mostrou uma realidade totalmente diferente e sombria dentro das comunidades. Pois estávamos acostumados com o nosso dia-a-dia dentro da aldeia, de brincar com nossos parentes ou até mesmo ir pescar, caçar – isso agora está proibido! Não podemos mais nem ver o parente, não podemos mais praticar nossos rituais e não iremos mais visitar nossos anciãos para aprender ou ouvir mais uma história vividas por eles.

Essa pandemia está sendo, no momento, uma das lutas mais difíceis e dolorosas a enfrentar. Pois, mesmo que lutamos bastante, esse vírus entrou em nosso território retirando três anciãos de nós e deixando todos assustados e ameaçados por algo invisível. Uma luta tão difícil, em que o afeto de amor e carinho está sendo demonstrado da pior forma possível. 

História de luta

Nossa luta vem sendo travada desde a vinda do meu bisavô. Ele veio parar aqui após a fuga de um conflito com madeireiros, fazendeiros e outros invasores da época. Meu pai conta que meu bisavô fugiu do conflito em um forno de fazer farinha, que ele usou para descer o rio junto com seu irmão.

Pois bem, essa é um pouco da história do meu território. Uma terra atualmente demarcada. Porém, isso não quer dizer que não há invasão. Porque sim, há.

Como vou pedir a benção dos meus avós !?

Como vou preservar minha cultura, sem praticá-la e sem estar perto de meus grandes livros de aprendizagem, meus anciãos?

Tantos questionamentos surgem acompanhados de lágrimas e uma dor que sentimos toda vez que pensamos que perdemos parentes e anciãos para a Covid-19. Nós, enquanto indígenas, que sempre estivemos juntos nas lutas, fomos obrigados a ficar trancados. E tudo isso me revolta mais ainda.

Isso tira meu sossego, porém me dá a certeza que devo lutar, lutar como meu bisavô, como minha bisavó, como meus avós e meus pais, e assim resistir. Eu sou a continuidade de uma luta de quem me antecedeu.

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25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Idade Pessoa Trans Não Binária Pós-Graduação Incompleta Raça/Cor São Paulo

“Tenho entendido cada vez mais que gênero não é apenas uma performance”

Há pouco mais de um ano, ou talvez há quase dois anos iniciei meu processo de transição de gênero. Diferente de muitas narrativas transvestigêneres, não fui acusada de ser travesti, mas encontrei inspiração e pertencimento entre minhas irmãs, irmãos e irmanes trans.

Apesar de hoje poder ler nos olhares assediosos e no deboche que me cercam cotidianamente nas ruas, toda a dúvida e confusão da cisgeneridade… de fato, fui eu mesma a primeira a me dizer travesti. Vinha neste processo de entender e recalcular a rota do meu corpo no espaço público. Transitava e se transfigurava de uma bixa branca, já não muito normativa, para uma corpa sempre com poucas roupas, alguma maquiagem e com peitinhos nascendo!

Levei um tempo para deixar de temer as ruas. Parece que quanto mais distante de um padrão binário você está, quanto mais estranha é a sua corpa, maior será a abjeção.

Gênero e performance

Talvez venha daí a busca incessante que muitas pessoas trans e travestis tenham pela “passabilidade”. Quero dizer, pela autorização em poder passar sem ser alvo de violências outras para além do assédio sexual que perseguem as mulheridades. E, consequentemente da pressão estética para que a gente se enquadre dentro de uma normatividade binária de gênero, o que já adianto e repito insistentemente em forma de mantra para mim mesma: nunca vai acontecer.

Nesse processo de me permitir a performance feminina nesta corpa com pau, tenho entendido cada vez mais que gênero não é apenas uma performance, mas também se trata de uma edição. A forma como eu edito meu corpo vai dizer o quão “feminina” ou “masculina” estarei diante à régua da cisgeneridade. E vai dizer também se serei tratada no feminino ou se terei que passar o dia corrigindo meu gênero. Quando não estou a fim de retalhar o meu rosto e decido sair com xuxu (barba mal feita), rapidamente já sou alocada no masculino. “Como assim mulher de barba?” ou “como assim um homem de barba e peitos?”

Confesso que ter que enfrentar isso diariamente era muito cansativo. Editar minha corpa para ser legitimada enquanto feminina também. Eu estava nesse processo de descoberta da minha travestilidade e de eterna negociação quando veio a pandemia do novo coronavírus.

Ações durante a pandemia

Naquele momento inicial, ainda em março, eu acabava de ser contratada para exercer o cargo de articuladora em saúde na Coordenadoria de AIDS de São Paulo. E, também, para desenvolver a frente de saúde da Casa Chama, uma ONG que presta serviços à população trans e travesti. O valor que eu recebia nessas duas instituições não eram altos, mas me possibilitaram, junto com o auxílio emergencial, ficar em casa e pagar meu aluguel e me alimentar até meados de setembro.

Sem precisar sair e poder desenvolver meus trabalhos de casa me livrou temporariamente e em partes de ter que lidar, negociar e sofrer os traumas de ser uma travesti nessa sociedade. Também me preveni da Covid-19, a despeito de outros possíveis agravos em saúde.

E isso também me colocou em contato virtual com muitas pessoas trans e travestis. Essas pessoas estavam em situações de vulnerabilidade social muito maiores do que a minha, inclusive. Pessoas que dependiam das artes para fazer dinheiro, e que não estavam tendo mais este espaço. São pessoas que precisavam continuar saindo para fazer pista, e expondo seu corpo a mais violências cissexista, ao racismo, às IST de forma geral e agora ao Covid-19. Em grande parte, e para além dessas dificuldades e exposições, também tinha o fato de que havia diminuído o número de clientes, tornando o trabalho sexual que já era difícil ainda pior e mais mal pago.

Estratégias

Dentro desse contexto, muitas meninas e meninos trans e travestis perderam suas casas, diminuíram suas refeições diárias. Muitas deixaram de fazer acompanhamento médico, deixaram de aderir às suas medicações antirretrovirais (ARV) para HIV. Muitas foram as que não conseguiram permanecer tomando ARV e voltaram a conduzir suas terapias hormonais sem acompanhamento médico.

Eu mesma fiquei quase este ano inteiro sem saber como estava minha carga viral para HIV, pois nunca consegui pegar o resultado dos meus exames feitos no início do ano.

Com todas essas demandas em saúde em mente, mesmo de casa comecei a desenvolver uma série de estratégias para assistir a essa população através da Casa Chama. Organizamos a distribuição de cestas básicas para milhares de pessoas, atendimento médico e ambulatorial, muitas vezes furando o bloqueio burocrático dos equipamentos de saúde, e fomentando uma série de discussões online sobre saúde, autocuidado e HIV/Aids. Contudo, isso não durou muito tempo. Já a partir de setembro foi preciso voltar às ruas. Foi quando comecei a desenvolver trabalhos de redução de danos pelo É de Lei com pessoas em situação de rua, pessoas que mesmo durante a pandemia não tiveram direito à alimentação, à moradia, e a quaisquer estratégias de prevenção.

Travestilidade

A pandemia da Covid-19 escancarou e aumentou a violência e a marginalidade contra as populações historicamente oprimidas. E é notável que quaisquer intervenções e tentativas de apoio para amenizar este quadro são feitas por ações singulares, por pessoas e instituições sociais muito específicas, e jamais pelo poder público. Para este, a Covid-19 soa muito mais como uma oportunidade do que como uma crise de sociedade.

E tem sido dentro desse contexto de profunda crise social, mas também de articulação política que construo a minha travestilidade. E sei que sob este aspecto, certamente não sou a exceção, mas a norma, pois travestilidade sempre foi sinônimo de resistência, de luta e de enfrentamento direto às principais estruturas de sustentação do capitalismo e da colonização.

Meu reflexo em minhas irmãs de luta, e em minhas irmãs que têm fome me transformam cada vez mais em uma monstra que faz do medo de andar nas ruas em ódio canalizado em tecnologia social. Tenho entendido que é este o projeto social desenhado para pessoas como nós, e sobretudo para pessoas racializadas (a branquitude não está acostumada a se ver racializada ainda…).

Sobrevivência

E se não a gente mesma, ninguém fará por nós, pois ninguém se importa com as travestis negras, indígenas, nordestinas e nortistas. Essas são expulsas e migram de seus territórios em busca de oportunidades em São Paulo, mas que muitas vezes acabam pedindo comidas nas ruas, montando suas malocas ou enfrentando as tensões das ocupações. Ninguém se importa também com as travestis que estão morrendo de AIDS nas ruas deste país. Elas sofrem ataques diários; são vistas como vetor de doença por uma sociedade higienista e eugênica; e que têm suas roupas e medicamentos queimados em uma tentativa constante de promover a nossa destruição física.

Dentro desse contexto de disputa social, a frase que repito insistentemente para me lembrar de ter forças para enfrentar o CIStema é: “se você não se importa com mais de 25 mil pessoas passando fome e revirando lixo nas ruas, não é comigo e com quem eu sou que você vai se importar”.

A crise social que estamos mergulhadas nos diz a todo momento que é preciso ter prioridades. E que esta não pode ser normatizar, adoecer e matar nossas corpas pelo simples fato de não nos dobrarmos diante da ficção inventada para colonizar a todes nós. É preciso ter prioridades e comprometimento com a vida. E muitas de nós travestis temos nos ocupado com a sobrevivência das nossas. Que as travestilidades inspirem cada vez mais lutas por uma sociedade mais justa.

Este é um relato pessoal e político sobre a construção da travestilidade.

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