“Tenho entendido cada vez mais que gênero não é apenas uma performance”

Imagem em preto e branco de rosto de Pisci Bruja acompanha relato sobre gênero e sociedade

Memória de Pisci Bruja

Articuladora em Saúde - São Paulo, SP
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Há pouco mais de um ano, ou talvez há quase dois anos iniciei meu processo de transição de gênero. Diferente de muitas narrativas transvestigêneres, não fui acusada de ser travesti, mas encontrei inspiração e pertencimento entre minhas irmãs, irmãos e irmanes trans.

Apesar de hoje poder ler nos olhares assediosos e no deboche que me cercam cotidianamente nas ruas, toda a dúvida e confusão da cisgeneridade… de fato, fui eu mesma a primeira a me dizer travesti. Vinha neste processo de entender e recalcular a rota do meu corpo no espaço público. Transitava e se transfigurava de uma bixa branca, já não muito normativa, para uma corpa sempre com poucas roupas, alguma maquiagem e com peitinhos nascendo!

Levei um tempo para deixar de temer as ruas. Parece que quanto mais distante de um padrão binário você está, quanto mais estranha é a sua corpa, maior será a abjeção.

Gênero e performance

Talvez venha daí a busca incessante que muitas pessoas trans e travestis tenham pela “passabilidade”. Quero dizer, pela autorização em poder passar sem ser alvo de violências outras para além do assédio sexual que perseguem as mulheridades. E, consequentemente da pressão estética para que a gente se enquadre dentro de uma normatividade binária de gênero, o que já adianto e repito insistentemente em forma de mantra para mim mesma: nunca vai acontecer.

Nesse processo de me permitir a performance feminina nesta corpa com pau, tenho entendido cada vez mais que gênero não é apenas uma performance, mas também se trata de uma edição. A forma como eu edito meu corpo vai dizer o quão “feminina” ou “masculina” estarei diante à régua da cisgeneridade. E vai dizer também se serei tratada no feminino ou se terei que passar o dia corrigindo meu gênero. Quando não estou a fim de retalhar o meu rosto e decido sair com xuxu (barba mal feita), rapidamente já sou alocada no masculino. “Como assim mulher de barba?” ou “como assim um homem de barba e peitos?”

Confesso que ter que enfrentar isso diariamente era muito cansativo. Editar minha corpa para ser legitimada enquanto feminina também. Eu estava nesse processo de descoberta da minha travestilidade e de eterna negociação quando veio a pandemia do novo coronavírus.

Ações durante a pandemia

Naquele momento inicial, ainda em março, eu acabava de ser contratada para exercer o cargo de articuladora em saúde na Coordenadoria de AIDS de São Paulo. E, também, para desenvolver a frente de saúde da Casa Chama, uma ONG que presta serviços à população trans e travesti. O valor que eu recebia nessas duas instituições não eram altos, mas me possibilitaram, junto com o auxílio emergencial, ficar em casa e pagar meu aluguel e me alimentar até meados de setembro.

Sem precisar sair e poder desenvolver meus trabalhos de casa me livrou temporariamente e em partes de ter que lidar, negociar e sofrer os traumas de ser uma travesti nessa sociedade. Também me preveni da Covid-19, a despeito de outros possíveis agravos em saúde.

E isso também me colocou em contato virtual com muitas pessoas trans e travestis. Essas pessoas estavam em situações de vulnerabilidade social muito maiores do que a minha, inclusive. Pessoas que dependiam das artes para fazer dinheiro, e que não estavam tendo mais este espaço. São pessoas que precisavam continuar saindo para fazer pista, e expondo seu corpo a mais violências cissexista, ao racismo, às IST de forma geral e agora ao Covid-19. Em grande parte, e para além dessas dificuldades e exposições, também tinha o fato de que havia diminuído o número de clientes, tornando o trabalho sexual que já era difícil ainda pior e mais mal pago.

Estratégias

Dentro desse contexto, muitas meninas e meninos trans e travestis perderam suas casas, diminuíram suas refeições diárias. Muitas deixaram de fazer acompanhamento médico, deixaram de aderir às suas medicações antirretrovirais (ARV) para HIV. Muitas foram as que não conseguiram permanecer tomando ARV e voltaram a conduzir suas terapias hormonais sem acompanhamento médico.

Eu mesma fiquei quase este ano inteiro sem saber como estava minha carga viral para HIV, pois nunca consegui pegar o resultado dos meus exames feitos no início do ano.

Com todas essas demandas em saúde em mente, mesmo de casa comecei a desenvolver uma série de estratégias para assistir a essa população através da Casa Chama. Organizamos a distribuição de cestas básicas para milhares de pessoas, atendimento médico e ambulatorial, muitas vezes furando o bloqueio burocrático dos equipamentos de saúde, e fomentando uma série de discussões online sobre saúde, autocuidado e HIV/Aids. Contudo, isso não durou muito tempo. Já a partir de setembro foi preciso voltar às ruas. Foi quando comecei a desenvolver trabalhos de redução de danos pelo É de Lei com pessoas em situação de rua, pessoas que mesmo durante a pandemia não tiveram direito à alimentação, à moradia, e a quaisquer estratégias de prevenção.

Travestilidade

A pandemia da Covid-19 escancarou e aumentou a violência e a marginalidade contra as populações historicamente oprimidas. E é notável que quaisquer intervenções e tentativas de apoio para amenizar este quadro são feitas por ações singulares, por pessoas e instituições sociais muito específicas, e jamais pelo poder público. Para este, a Covid-19 soa muito mais como uma oportunidade do que como uma crise de sociedade.

E tem sido dentro desse contexto de profunda crise social, mas também de articulação política que construo a minha travestilidade. E sei que sob este aspecto, certamente não sou a exceção, mas a norma, pois travestilidade sempre foi sinônimo de resistência, de luta e de enfrentamento direto às principais estruturas de sustentação do capitalismo e da colonização.

Meu reflexo em minhas irmãs de luta, e em minhas irmãs que têm fome me transformam cada vez mais em uma monstra que faz do medo de andar nas ruas em ódio canalizado em tecnologia social. Tenho entendido que é este o projeto social desenhado para pessoas como nós, e sobretudo para pessoas racializadas (a branquitude não está acostumada a se ver racializada ainda…).

Sobrevivência

E se não a gente mesma, ninguém fará por nós, pois ninguém se importa com as travestis negras, indígenas, nordestinas e nortistas. Essas são expulsas e migram de seus territórios em busca de oportunidades em São Paulo, mas que muitas vezes acabam pedindo comidas nas ruas, montando suas malocas ou enfrentando as tensões das ocupações. Ninguém se importa também com as travestis que estão morrendo de AIDS nas ruas deste país. Elas sofrem ataques diários; são vistas como vetor de doença por uma sociedade higienista e eugênica; e que têm suas roupas e medicamentos queimados em uma tentativa constante de promover a nossa destruição física.

Dentro desse contexto de disputa social, a frase que repito insistentemente para me lembrar de ter forças para enfrentar o CIStema é: “se você não se importa com mais de 25 mil pessoas passando fome e revirando lixo nas ruas, não é comigo e com quem eu sou que você vai se importar”.

A crise social que estamos mergulhadas nos diz a todo momento que é preciso ter prioridades. E que esta não pode ser normatizar, adoecer e matar nossas corpas pelo simples fato de não nos dobrarmos diante da ficção inventada para colonizar a todes nós. É preciso ter prioridades e comprometimento com a vida. E muitas de nós travestis temos nos ocupado com a sobrevivência das nossas. Que as travestilidades inspirem cada vez mais lutas por uma sociedade mais justa.

Este é um relato pessoal e político sobre a construção da travestilidade.

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