“A morte de companheiros deixou a comunidade cigana sem direito ao nosso tradicional ritual de despedida”

Foto de rosto em preto e branco de Rogério Ribeiro, integrante de comunidade cigana. Foto acompanha relato para a Memória Popular da Pandemia, que trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida.

Memória de Rogério Ribeiro

Presidente do Instituto Cigano do Brasil - Feira de Santana, BA
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Muita coisa foi afetada por essa pandemia. Ela veio e bagunçou a vida de muita gente, mudou a nossa sobrevivência, balançou até a fé das pessoas. Mudou o sentido das coisas! Eu senti na pele toda essa mudança, porque presenciei a primeira morte de um irmão da comunidade cigana, em decorrência da Covid-19, aqui no Ceará. Foi o Barroso, aos 63 anos, no dia dois de Junho. Depois de alguns dias foi o Solimar… 

Foto de rosto e corpo de Antônio Ferreira dos Santos, apelidado de Barroso, acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida.

Barroso morava no Sobral, morreu na Santa Casa. Já o Solimar morreu na cidade de Crateús. Na verdade, recordo que quatro ciganos, aqui no Ceará, foram parar na UTI, por causa desse vírus. Dois conseguiram sobreviver e dois não resistiram… Mas eu sei que o primeiro Cigano a falecer por Covid foi no Estado da Bahia, na cidade de Jitaúna, a 383 quilômetros de Salvador, e enterrado em Jequié. Por isso, vou falar sobre o que é para nós ciganos perder uma pessoa querida durante a pandemia. 

Não esqueço daquele dois de Junho, dia da morte do nosso companheiro Barroso. Ele foi sepultado na cidade de Maracanaú, onde a mãe e familiares haviam sido sepultados. Barroso era conhecido assim porque aqui em Fortaleza tem um bar chamado Barroso e os ciganos foram os primeiros moradores desse bairro. Ele era o nosso grande artista, cantava muito bem, tocava violão… e acima de tudo era um grande amigo. A sua morte nos abalou profundamente. E pior! O outro irmão dele também foi para a UTI. Quando Barroso foi enterrado, dois dias depois o irmão saiu da UTI. Foi um baita susto! Uma porrada pra nós. 

Sem o nosso adeus

Para nós, essa questão de isolamento durante a pandemia da Covid-19 é de um impacto muito grande, especialmente no que diz respeito à falta do funeral, porque temos rituais e homenagens em nossa tradição e não podemos realizar nada, por causa do distanciamento. Somos um povo muito itinerante e gostamos de festa.

Essa questão fúnebre nos causa forte consternação, porque o nosso ritual, quando o grupo vive em barraca, por exemplo, tiramos tudo, queimamos tudo, as mulheres cortam o cabelo e se resguardam por um bom tempo. Algumas viúvas ficam dois/três anos sem se envolver com ninguém. E todo mundo respeita.

Outra situação que evitamos é com relação a nomes iguais. Se houver mais de um Barroso ou Rogério naquela comunidade, por exemplo, e estivermos em uma roda, evitamos falar o nome do que morreu por respeito aos demais e para não voltar aquela lembrança. Somos muito sentimentais e muito família. 

A espera

Já sabíamos que não podíamos fazer o nosso ritual devido às medidas de distanciamento social nessa pandemia. Foi muito triste.

Moro aqui na Caucária, região metropolitana de Fortaleza, onde fica o escritório central do Instituto Cigano do Brasil (ICB). O Joaquim cigano é irmão do Barroso e conselheiro nacional do ICB. Encontrei com ele e a família no cemitério de Maracanaú e aguardamos o corpo vim de Sobral. De Fortaleza à cidade de Sobral dá cerca de 220 quilômetros. Foi uma tortura.

Enquanto o corpo não chegava, fomos até a administração do cemitério adiantar a papelada. É um cemitério humilde, apenas um muro corta o caminho entre até onde o carro pode passar, porque não tem como entrar carro lá. 

Cena marcada na memória

Quando o carro da funerária chegou, foi uma cena que ficou na minha cabeça. Como eu disse, o muro dividia uma fila de sepulturas. Apenas o motorista e outra pessoa pegariam o caixão e levariam até a fileira, porque os coveiros não queriam tocar no caixão. Então, eu e o irmão do Barroso nos prontificamos a carregar o caixão. Já chegara a hora do meio dia quando os coveiros pegaram a alça do caixão e nos ajudaram. As irmãs do Barroso estavam do outro lado do muro em prantos.

O momento em que o caixão era levado até a gaveta foi emocionante. A cena que ficou marcada em minha memória foi a do caimento de uma chuva bem fina, no momento em que o corpo do Barroso era deixado ali dentro daquela gaveta. Entendemos que ali se tratava de um sinal de despedida. Ao mesmo tempo, as lágrimas caindo da face de todas as irmãs do Barroso que choravam muito, dizendo adeus ao irmão… aquelas imagens ficaram na minha mente. 

Foi quando tivemos a ideia de criar o memorial das vítimas da Covid-19 do povo cigano.

Subnotificação

O nosso povo é desconfiado, não gosta de fotos, não gosta de falar. 70% do nosso povo Calon é analfabeto. Ontem, fiquei sabendo da morte de dois ciganos, um em Eunápolis e outro em Petrolina. Todos no Nordeste.

Até o momento, estou sabendo de trinta e sete ciganos mortos, mas acredito que muitos mais ciganos se foram, vitimados pela pandemia. Porque o processo é muito rápido, e, quando o cigano é internado, ele não diz que é cigano. Muitas vezes por sofrer racismo.

Quando a pessoa morre, é logo encaminhada para a funerária. Não dá tempo de fazer nada. 

Mapa de óbitos pela Covid-19 produzido pelo Instituto Cigano Brasileiro. Mapa acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida. No mapa, é possível ver a seguinte distribuição das mortes. Ciganos Calon: MA - 1, CE - 2, PE - 5, PI - 2, AL - 1, BA - 8, GO - 5, MG - 1, ES - 4, MT - 2. Ciganos Rom: SP - 3, MG - 1.

Aqui no Ceará, não temos a cultura do acampamento, somos 108 famílias. A maior comunidade do Ceará fica no Sobral, onde vivia o Barroso. Solicitamos à Secretaria de Saúde, pedimos também à Cruz Vermelha, para fazer a desinfecção. Pedimos à Secretaria para fazer algo, teste, isolamento. Os gestores têm que fazer alguma coisa! 

A nossa preocupação é com o genocídio cigano, porque moramos todos muito próximos.

Despreparo e desencontro de informações

Tudo isso nos abalou, porque, além da Covid-19, vêm outras doenças: a depressão, a ansiedade. Somos muito inquietos, agitados, precisamos trabalhar. As mulheres estão se sentindo presas dentro de casa, os homens não estão podendo trabalhar. No lugar da alegria, uma das características do nosso povo, pairou um ar de tristeza e inconformidade. Nessa pandemia, houve até caso de suicídio em nossa comunidade. Está tudo muito difícil para a gente.

O governo não nos preparou, há muito desencontro de informações. Um tal de usa máscara, não usa máscara. Isso acaba chegando nos acampamentos do nosso povo cigano. 

Só em setembro, oito ciganos, que eu tenha informação, morreram, desde o dia primeiro até o dia 21. Nós, do ICB, realizamos algumas ações de conscientização para a nossa população se proteger.

Fizemos uma cartilha para divulgar, solicitamos ajuda financeira, mas ninguém nos ajudou. Então enviamos a cartilha virtual, elaboramos até máscaras com a frase “fique em casa”! Enfim, é um trabalho em conjunto e feito com amor para, sobretudo, proteger o nosso povo e evitar mais mortes.

A falta de políticas específicas agravou a situação

Fizemos a nossa parte, mas o que sentimos com tudo isso é que o Governo falha em campanhas específicas.

Colocam assim: “em situação de vulnerabilidade”. Isso acaba atingindo todo mundo. É necessário fazer campanhas para o povo cigano, povo quilombola, povo de terreiro.

Estamos dentro do decreto 6.040, que trata dos povos de comunidades tradicionais, mas eles não estão nem aí pra nada! O que falta para o Governo é criar vergonha na cara e fazer políticas ESPECÍFICAS! Não adianta fazer “em situação de vulnerabilidade” porque a gente fica na chuva!

Auxílio insuficiente

Agora, com esse tal auxílio emergencial… muitos povos ciganos não receberam esse auxílio. E tem mais: esses R$600 dá pra quê? Se não morrer de fome, depressão, ansiedade, ainda tem essa pandemia! Nós temos crianças autistas, muitas pessoas com doenças genéticas, e fomos praticamente esquecidos. Não há apoio. Somos atingidos por todas essas situações e com a Covid-19 os problemas só aumentaram.

A gente sempre pede acompanhamento médico, cestas básicas, testes para a Covid-19. Mas é tudo iniciativa do Instituto Cigano do Brasil. Precisamos acionar o Ministério Público (MP) para conseguir tratamento médico para nossos irmãos e irmãs que testaram positivo para a Covid-19. O povo cigano precisa de apoio. Porque tudo isso, sem contar o racismo que o nosso povo ainda sofre. 

Sou Rogério Ribeiro, cigano da etnia Calon. Nós, ciganos, estamos divididos em três grupos: Calón, Rom e Sinti. Há ainda seus subgrupos. Já estamos aqui nesta caminhada em terras brasileiras há 446 anos.  Sou presidente do Instituto Cigano do Brasil (ICB), que atua em 15 Estados, incluindo todos do Nordeste. Temos representação em Portugal, na Bélgica e na Grécia. O ICB foi pensado para atender todo o grupo cigano; temos menos de dois anos, mas muitos serviços prestados. 

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