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25 a 39 anos Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Paraná Parda Pós-Graduação Incompleta Raça/Cor

“A rotina das benzedeira foi impactada e alterada drasticamente”

Sou antropóloga e tenho acompanhado as benzedeiras do centro do sul do Paraná nos últimos anos. As memórias da pandemia, das benzedeiras, revelam trajetórias de dor, angústias e perdas, mas também de processos de resistência, de organização e de cuidado com a vida.

Então, nesse período da pandemia do covid-dezenove, a rotina das benzedeira foi impactada e alterada drasticamente no atendimento das pessoas que procuram as em suas casas.

Como medida de segurança, isolamento social e físico, as benzedeiras realizaram benzimentos à distância, usando cada vez mais as tecnologias da comunicação como os aplicativos do WhatsApp, do Facebook e também com ligações por chamadas que receberam e anotaram o nome das pessoas que pretendiam  benzer.

Rede de apoio

Também foram apoiadas por suas famílias, filhos, filhas, principalmente netos e netas que ajudaram no manuseio de smartphones para que pudéssemos fazer essa mediação. Também já é uma prática das batedeiras, uma prática tradicional, o benzimento à distância é, quando chega até as benzedeiras, recados de vizinhos e parentes que trazem o nome ou peças de roupa da pessoa que tá buscando o benzimento, para que a benzedeira  possa realizar a prática de curas.

Movimento aprendiz da sabedoria, que é organização social das benzedeiras do Centro-Sul do Paraná, participou ativamente de lives, encontros, discussões, né? Com algumas benzedeiras que tiveram condições de realizar esses encontros de forma remota, nas plataformas virtuais, né?

Com destaque ao evento BENZEDEIRAS MULHERES DE FÉ, promovido pelo Museu Paranaense homenageou as benzedeiras do Paraná no mês de março de dois mil e vinte e um e assim como outros espaços de encontro e de troca de experiências.

Mesmo num momento de perdas, de tensões, de angústias, as benzedeiras continuaram praticando o benzimento, é Contribuindo, promovendo a saúde popular através de suas orações, de suas rezas, dos seus conhecimentos, sobre o uso das plantas medicinais  e desta forma também ela tem amenizado essas feridas, essas dores da pandemia.

Relato de Taisa Lewitzki, produzido pelo Instituto de Educadores Populares para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Paraná Parda Pós-Graduação Incompleta Raça/Cor

“Muitas benzedeiras acabaram optando pelo isolamento”

Lembro que naquele momento quando veio o boom da pandemia, de isolamento, de superlotação dos hospitais. Com angústia, frustração e medo, muitas benzedeiras acabaram optando por se isolarem, ficando recolhidas dentro de casa; muitas outras mesmo estando no grupo de risco optaram em continuar os atendimentos em suas casas.

Sou doutora em geografia pela Universidade Federal do Paraná e acompanho o movimento de benzedeiras desde 2017. Vale lembrar algumas coisas bem importantes e pontuais que vivemos durante a pandemia. Lembro da nossa última reunião presencial antes desse período, no final de fevereiro de 2020, quando fizemos o balanço do ano anterior e programação para 2020, e que, devido à proporção que a pandemia tomou, não foi possível de ser realizada.

A comunidade precisava, então, de um apoio. E esse é o ofício da benzedeira, né? E me traz muito essa noção de solidariedade, de um outro olhar pra saúde, pra saúde do povo, das plantas medicinais. Enfim, para a saúde que envolve fé, religião, amor ao próximo, coletividade, comunidade e onde nasce o verbo esperançar.

Trocas e Aprendizados

Quando eu olho todo desenhar desse caminhar mesmo com uma pandemia, com as notícias de gente dos familiares morrendo. Mesmo assim é se colocando e dando a mão ao próximo a gente vê o mais singelo gesto de solidariedade e amor ao próximo. O movimento caminhou também ocupando outros espaços que, talvez, se não fosse a pandemia, com certeza, a gente não teria alcançado. Então, o movimento acabou também trabalhando muito com a internet, jogando na rede com gente do país todo.

Foi uma grande troca e um grande aprendizado esse que a pandemia traz, principalmente, relacionado a essa conexão com as redes. Conquistamos, ainda, dois prêmios, e a mensagem que fica é esse ato de solidariedade. E a construção de uma saúde que em nenhum momento nega a medicina, a ciência, mas que trabalha junto com a comunidade.

Relato de Adriane de Andrade, produzido pelo Instituto de Educadores Populares para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Parda Pós-Graduação Incompleta Raça/Cor São Paulo

“A pandemia da Covid-19 aprofundou as vulnerabilidades do país”

Sermos atravessados por essa pandemia em um momento já tão difícil nos colocou em um lugar de aprofundamento de muitas vulnerabilidades. Nesse momento, o meu olhar para as pessoas ao meu redor passou a ter uma lente ainda mais forte da importância de suas vidas. A pandemia ainda não passou, e continua a ser ignorada pelos incompetentes governadores, ministros e presidente. Assistimos de boca aberta, lágrimas nos olhos e apunhalados pela indiferença a morte de centenas de milhares de pessoas. E o punhal da indiferença nos mata enquanto seres humanos cada dia mais um pouco, enquanto a política econômica neoliberal avança e temos nossos direitos violados, aprofundando a precariedade e vulnerabilidades de nossas vidas.

No início do ano eu já lia com muita tensão as notícias sobre o novo vírus que havia surgido na China. Sabia que algo grave estava por vir, com notícias indicando possíveis impactos socioeconômicos. Olhei para as condições financeiras na qual estávamos eu e minha parceira, uma travesti que vive com HIV, que também estava sem emprego formal, vendendo o almoço para comer a janta. Mas ainda tínhamos a possibilidade de pagar o aluguel.

Não éramos os únicos, a situação de quase todes que conhecíamos era a mesma ou até pior. A atenção para as tensões já presentes no cotidiano se aprofundou com mais uma ameaça de aumento de crises. Em fevereiro, eu e minha parceira fortalecemos mais uma vez o laço de parceria, cuidado e muita paciência. Foram meses tensos e estávamos sozinhes dentro de casa.

Vulnerabilidades escancaradas

No que concerne ao meu trabalho, assisti com um peso no coração os projetos de prevenção e promoção da saúde minguarem com o fechamento das escolas. As vulnerabilidades foram escancaradas. Nos últimos encontros presenciais vi nos olhares daquelas e daqueles estudantes o receio de mais um terremoto em suas vidas: uma pandemia que trazia expectativas – que infelizmente se realizaram – de centenas de milhares de mortos. Esses jovens são moradores e moradoras de favelas, e já diziam: a gente é quem mais vai se ferrar com isso.

Ouvi na voz de professoras queridas a força de continuar se movimentando pela garantia do direito a uma educação de qualidade, seguido do pesar de reconhecer o fracasso das políticas instituídas pelo estado para a continuidade das aulas. Os/as estudantes não estavam conseguindo acompanhar, e, ainda pior, o contato com muitos/as deles/as foi perdido.

Direitos violados

Os trabalhos de prevenção ao HIV e outras IST ficaram ainda mais difíceis nas escolas. Esse assunto não estava sendo abordado no currículo oficial com as aulas online, e a possibilidade de registro audiovisual de professores/as falando sobre esse tema em meio ao turbilhão de políticas conservadoras apenas aumentou o medo já existente de abordagem do assunto. Pois, essa violação ao direito desses jovens a uma educação sexual baseada em evidências aprofundaria ainda mais suas vulnerabilidades à AIDS.

Em outros projetos com movimentos sociais junto a jovens para trabalhar a prevenção experenciei o enfraquecimento de vínculos tão duramente trabalhados nos últimos tempos. O contato com esses jovens foi extremamente dificultado pela violação do seu direito a uma conexão de internet, além de suas vidas terem mudado de rumos em poucas semanas, sendo forçados/as a procurarem formas para ajudarem suas famílias a continuarem se alimentando e pagando suas contas. Todo o resto ficou em outros planos para depois. Mas continuamos com o trabalho, tentando fomentar a discussão sobre a importância dos direitos humanos e, principalmente, a garantia desses direitos.

Incertezas

Após sete meses sem visitar meus familiares, fui para o interior de São Paulo, carregado de uma grande tensão, um medo muito grande de poder estar levando o novo coronavírus para lá. A dinâmica de interações naquela pequena cidade é muito diferente da de São Paulo, com muitas visitas diárias de parentes e conhecidos na casa de minha mãe. No entanto, consegui me manter em isolamento durante quase duas semanas antes de entrar em contato com essas pessoas.

As minhas diversas tentativas de comunicação sobre a importância de manter distância física e usar máscara falharam miseravelmente. Por isso, me senti um péssimo trabalhador da saúde na área da prevenção.

Mas era tudo muito novo e eu não daria conta dos medos e certezas baseadas em centenas de notícias e informações falsas das mensagens de WhatsApp que apitam o dia todo nos celulares de minhas tias, por exemplo. Certezas que são baseadas na primeira reação emotiva frente a uma notícia absurda se endurecem rápido, ficam sólidas e destrutivas. Enfim, qualquer contestação é recebida com agressividade. São efeitos do fundo buraco político da ascensão neofascista no Brasil.

Sou psicólogo, trabalho com prevenção ao HIV/AIDS em escolas públicas de São Paulo através de projetos da USP. Também faço parte da Coletiva Loka de Efavirenz. Este é um breve relato sobre minha vida pessoal e profissional durante o início da pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo.

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25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Idade Pessoa Trans Não Binária Pós-Graduação Incompleta Raça/Cor São Paulo

“Tenho entendido cada vez mais que gênero não é apenas uma performance”

Há pouco mais de um ano, ou talvez há quase dois anos iniciei meu processo de transição de gênero. Diferente de muitas narrativas transvestigêneres, não fui acusada de ser travesti, mas encontrei inspiração e pertencimento entre minhas irmãs, irmãos e irmanes trans.

Apesar de hoje poder ler nos olhares assediosos e no deboche que me cercam cotidianamente nas ruas, toda a dúvida e confusão da cisgeneridade… de fato, fui eu mesma a primeira a me dizer travesti. Vinha neste processo de entender e recalcular a rota do meu corpo no espaço público. Transitava e se transfigurava de uma bixa branca, já não muito normativa, para uma corpa sempre com poucas roupas, alguma maquiagem e com peitinhos nascendo!

Levei um tempo para deixar de temer as ruas. Parece que quanto mais distante de um padrão binário você está, quanto mais estranha é a sua corpa, maior será a abjeção.

Gênero e performance

Talvez venha daí a busca incessante que muitas pessoas trans e travestis tenham pela “passabilidade”. Quero dizer, pela autorização em poder passar sem ser alvo de violências outras para além do assédio sexual que perseguem as mulheridades. E, consequentemente da pressão estética para que a gente se enquadre dentro de uma normatividade binária de gênero, o que já adianto e repito insistentemente em forma de mantra para mim mesma: nunca vai acontecer.

Nesse processo de me permitir a performance feminina nesta corpa com pau, tenho entendido cada vez mais que gênero não é apenas uma performance, mas também se trata de uma edição. A forma como eu edito meu corpo vai dizer o quão “feminina” ou “masculina” estarei diante à régua da cisgeneridade. E vai dizer também se serei tratada no feminino ou se terei que passar o dia corrigindo meu gênero. Quando não estou a fim de retalhar o meu rosto e decido sair com xuxu (barba mal feita), rapidamente já sou alocada no masculino. “Como assim mulher de barba?” ou “como assim um homem de barba e peitos?”

Confesso que ter que enfrentar isso diariamente era muito cansativo. Editar minha corpa para ser legitimada enquanto feminina também. Eu estava nesse processo de descoberta da minha travestilidade e de eterna negociação quando veio a pandemia do novo coronavírus.

Ações durante a pandemia

Naquele momento inicial, ainda em março, eu acabava de ser contratada para exercer o cargo de articuladora em saúde na Coordenadoria de AIDS de São Paulo. E, também, para desenvolver a frente de saúde da Casa Chama, uma ONG que presta serviços à população trans e travesti. O valor que eu recebia nessas duas instituições não eram altos, mas me possibilitaram, junto com o auxílio emergencial, ficar em casa e pagar meu aluguel e me alimentar até meados de setembro.

Sem precisar sair e poder desenvolver meus trabalhos de casa me livrou temporariamente e em partes de ter que lidar, negociar e sofrer os traumas de ser uma travesti nessa sociedade. Também me preveni da Covid-19, a despeito de outros possíveis agravos em saúde.

E isso também me colocou em contato virtual com muitas pessoas trans e travestis. Essas pessoas estavam em situações de vulnerabilidade social muito maiores do que a minha, inclusive. Pessoas que dependiam das artes para fazer dinheiro, e que não estavam tendo mais este espaço. São pessoas que precisavam continuar saindo para fazer pista, e expondo seu corpo a mais violências cissexista, ao racismo, às IST de forma geral e agora ao Covid-19. Em grande parte, e para além dessas dificuldades e exposições, também tinha o fato de que havia diminuído o número de clientes, tornando o trabalho sexual que já era difícil ainda pior e mais mal pago.

Estratégias

Dentro desse contexto, muitas meninas e meninos trans e travestis perderam suas casas, diminuíram suas refeições diárias. Muitas deixaram de fazer acompanhamento médico, deixaram de aderir às suas medicações antirretrovirais (ARV) para HIV. Muitas foram as que não conseguiram permanecer tomando ARV e voltaram a conduzir suas terapias hormonais sem acompanhamento médico.

Eu mesma fiquei quase este ano inteiro sem saber como estava minha carga viral para HIV, pois nunca consegui pegar o resultado dos meus exames feitos no início do ano.

Com todas essas demandas em saúde em mente, mesmo de casa comecei a desenvolver uma série de estratégias para assistir a essa população através da Casa Chama. Organizamos a distribuição de cestas básicas para milhares de pessoas, atendimento médico e ambulatorial, muitas vezes furando o bloqueio burocrático dos equipamentos de saúde, e fomentando uma série de discussões online sobre saúde, autocuidado e HIV/Aids. Contudo, isso não durou muito tempo. Já a partir de setembro foi preciso voltar às ruas. Foi quando comecei a desenvolver trabalhos de redução de danos pelo É de Lei com pessoas em situação de rua, pessoas que mesmo durante a pandemia não tiveram direito à alimentação, à moradia, e a quaisquer estratégias de prevenção.

Travestilidade

A pandemia da Covid-19 escancarou e aumentou a violência e a marginalidade contra as populações historicamente oprimidas. E é notável que quaisquer intervenções e tentativas de apoio para amenizar este quadro são feitas por ações singulares, por pessoas e instituições sociais muito específicas, e jamais pelo poder público. Para este, a Covid-19 soa muito mais como uma oportunidade do que como uma crise de sociedade.

E tem sido dentro desse contexto de profunda crise social, mas também de articulação política que construo a minha travestilidade. E sei que sob este aspecto, certamente não sou a exceção, mas a norma, pois travestilidade sempre foi sinônimo de resistência, de luta e de enfrentamento direto às principais estruturas de sustentação do capitalismo e da colonização.

Meu reflexo em minhas irmãs de luta, e em minhas irmãs que têm fome me transformam cada vez mais em uma monstra que faz do medo de andar nas ruas em ódio canalizado em tecnologia social. Tenho entendido que é este o projeto social desenhado para pessoas como nós, e sobretudo para pessoas racializadas (a branquitude não está acostumada a se ver racializada ainda…).

Sobrevivência

E se não a gente mesma, ninguém fará por nós, pois ninguém se importa com as travestis negras, indígenas, nordestinas e nortistas. Essas são expulsas e migram de seus territórios em busca de oportunidades em São Paulo, mas que muitas vezes acabam pedindo comidas nas ruas, montando suas malocas ou enfrentando as tensões das ocupações. Ninguém se importa também com as travestis que estão morrendo de AIDS nas ruas deste país. Elas sofrem ataques diários; são vistas como vetor de doença por uma sociedade higienista e eugênica; e que têm suas roupas e medicamentos queimados em uma tentativa constante de promover a nossa destruição física.

Dentro desse contexto de disputa social, a frase que repito insistentemente para me lembrar de ter forças para enfrentar o CIStema é: “se você não se importa com mais de 25 mil pessoas passando fome e revirando lixo nas ruas, não é comigo e com quem eu sou que você vai se importar”.

A crise social que estamos mergulhadas nos diz a todo momento que é preciso ter prioridades. E que esta não pode ser normatizar, adoecer e matar nossas corpas pelo simples fato de não nos dobrarmos diante da ficção inventada para colonizar a todes nós. É preciso ter prioridades e comprometimento com a vida. E muitas de nós travestis temos nos ocupado com a sobrevivência das nossas. Que as travestilidades inspirem cada vez mais lutas por uma sociedade mais justa.

Este é um relato pessoal e político sobre a construção da travestilidade.

Leia também: “Durante o isolamento, vi o quanto o ser humano é importante”

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Bahia Mulher Cis Pós-Graduação Incompleta Prta

“Por aqui ser uma comunidade da zona rural, muita gente vinha do centro da cidade para cá para poder ir para bares e continuar uma socialização”

Eu estava acompanhando a pandemia desde o início, desde que começaram os primeiros casos na China. E estava um pouco apreensiva desde lá. Minha família até brincava comigo que eu estava sendo precipitada.

À medida que as coisas começaram a avançar e começaram a surgir os primeiros casos da pandemia aqui na Bahia, em Feira de Santana e depois em Salvador, eu já comecei a tomar os cuidados.

Porque Salvador é uma cidade que a gente precisa de transporte público, enfim, na própria universidade a gente acaba tendo contato com muitas pessoas no dia a dia. Então, quando foram chegando os primeiros casos, eu já comecei a tomar os cuidados. Inicialmente, eram o uso de álcool em gel, chegar em casa tirar a roupa e tomar logo banho, esses cuidados assim. Ainda não estava inserido o uso de máscara e dessas questões.

Infodemia

Mas o primeiro impacto que eu senti quando começou mesmo o isolamento social foi psicológico. Eu me lembro que, nos primeiros dias da quarentena, eu ficava ali imersa nas notícias.

Eu acordava e a primeira coisa que eu fazia…eu pegava meu celular, entrava nas redes sociais, no Twitter, no Instagram, nos sites de notícias que eu costumo ver pela manhã, ouvia podcast. Geralmente meu pai estava também com a televisão ligada, então eu acabava consumindo essas notícias assim que eu acordava. E, durante o dia, eu ia atualizando o número de casos, quantas pessoas morreram, enfim, estava totalmente imersa e isso estava me fazendo um mal muito grande.

Até que minha mãe falou para mim: “você só fala disso agora, para de falar disso!”. Foi até engraçado na época, que ela só faltou me dar um sacode. E foi quando eu vim cair na real que aquilo estava me fazendo mal, porque eu estava muito ansiosa.

Eu não estava conseguindo fazer nada além de vivenciar a pandemia. Tomando os cuidados, mas vivenciar que eu digo a nível de informação. Então eu estava totalmente imersa nesse contexto e, depois que minha mãe falou isso, eu falei: “realmente, eu tenho que tomar algumas medidas de cuidado mesmo, para que eu não adoeça nesse processo”.

Uma pausa nas redes

E aí eu comecei a silenciar as palavras nas redes sociais. Comecei a silenciar no Twitter, no Instagram, parei de seguir algumas páginas também – que durante os “tempos normais”, digamos assim, tem um um conteúdo jornalístico diferente, mas que nesse período não tem como os veículos não estarem dando uma atenção maior a questão da pandemia.

Então eu fui adotando essas medidas mesmo de consumir menos notícias possíveis sobre a pandemia. Eu passei a ver umas duas vezes no dia, mais ou menos, para ver o que estava acontecendo. Não me deixando de me informar, porque é importante também, mas não deixando que as notícias chegassem a mim de qualquer forma.

Incialmente, eu achei que ia durar menos tempo do que tem durado. A gente já está avançado para uns quatro meses, mas inicialmente eu acreditava que seria uma coisa de uns dois meses. Enfim, eu estava acompanhando a realidade dos outros países também, então eu estava com um pouco mais assim de esperança, mas, ao mesmo tempo, com muito medo do que estava acontecendo. E de quando isso ia chegar na minha família, quando ia chegar nas pessoas mais próximas.

Da cabeça para o corpo

No início do ano, eu tinha iniciado uma psicoterapia que estava me ajudando bastante. Era presencial, agora é através das vídeo chamadas. Nos primeiros dias, eu falei assim “ah, eu acho que eu não vou continuar, porque acho que não vai funcionar, acho que vai durar pouco tempo também”. Mas, de fato, essa tem sido uma ferramenta que tem me ajudado muito, porque as coisas continuam acontecendo.

Nas nossas famílias, vão acontecendo problemas e, enfim, o mestrado, tantas outras coisas vão acontecendo também para além da pandemia, fora as milhares de notícias ruins que vem acontecendo nos últimos meses.

Então é um acúmulo de coisas muito grande, que eu tenho aprendido ainda a lidar, mas que o principal impacto que eu senti inicialmente foi isso – psicológico – mas que depois se reverteu no meu corpo também. Um cansaço físico enorme. Mesmo que eu não estivesse em um movimento muito grande de sair.

Mudanças na rotina

Minha vida é ir para universidade, fazer as coisas em Salvador, uma mobilidade muito grande durante o dia, não costumava ficar dois dias sem sair de casa. Ficava um dia, era o máximo. Então eu comecei a ter um cansaço físico muito grande, tive até um problema dermatológico, que eu acredito que tenha sido por conta disso. Porque eu nunca tinha tido, e aí, enfim, foram essas coisas assim que aconteceram.

Primeiro impacto que eu senti foi em relação ao meu psicológico, depois eu senti o meu corpo respondendo a isso, e à medida do tempo, fui tentando traçar estratégias para poder amenizar esses impactos sobre mim.

Universidade, estudo e militância

Atualmente faço mestrado no programa Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, na Universidade Federal da Bahia. Sou formada em serviço social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Quando a pandemia começou, estava bem no início das aulas, tanto na UFBA, quanto na UFRB. As atividades estavam sendo retomadas. Inclusive, eu só fui à universidade dois dias se não me engano.

Atualmente, faço parte do Portal Black Fem, um portal de artigos, notícias, conteúdos nas redes sociais, que é formado também por jovens negras de vários lugares do Brasil. A gente produz conteúdos que são publicados nosso site e Instagram, que são as duas ferramentas de comunicação sociais que a gente utiliza.

Também faço parte, desde 2018, do Coletivo Angela Davis, um grupo de pesquisa e ativismo em gênero, raça e subalternidades que se propõe, para além de estudar e fazer as pesquisas acadêmicas, também praticar um ativismo político junto a outros grupos e organizações, principalmente de mulheres negras.

Reuniões eram também socialização…

Quando começou a pandemia, o coletivo estava nesse processo de retomar as atividades. Semestralmente, a gente faz um calendário de atividades, já para o semestre inteiro, e a gente estava nesse processo ainda.

Anteriormente, nossas reuniões eram quinzenais, presenciais. Então quem não morava em Cachoeira se deslocava até Cachoeira. Além de ser um momento de reunião, era também um momento de confraternização, de troca mesmo. Depois, a gente saia para tomar uma cerveja, para almoçar, para fazer alguma coisa. Os laços se estreitavam a cada vez que a gente se encontrava.

…e passaram a ser online

A primeira estratégia que a gente encontrou, assim como outros grupos, foi de fazer as reuniões online. E as reuniões passaram a ser semanais. No cotidiano não teria como ser semanal, não daria tempo das pessoas se deslocarem. E como atualmente estamos todas em casa, ficou um pouco mais fácil de fazer as reuniões semanalmente.

Durante esse percurso, a gente foi encontrando formas de fazer as reuniões. A gente também foi pensando algumas ações que não deram certo e tiveram que ser reorganizadas. Muito porque é tudo muito novo. Embora a maioria das pessoas tenha acesso à tecnologia, já tenham mais familiaridade no uso das plataformas, ainda assim é tudo muito novo.

E tem acontecido muita coisa na internet, no Instagram, nas redes sociais, tem acontecido uma grande produção de conteúdo. A gente também estava tentando se inserir e pensar o que fazer para que as nossas reuniões não ficassem só entre nós.

O coletivo normalmente propõe ações e atividades para fora das pessoas que fazem parte do grupo. Foi um processo de adaptação, que teve erros, percalços, e, à medida do tempo, a gente foi encontrando alternativas. Nossa principal forma de comunicação hoje são as reuniões e o grupo no whatsapp, que já era bastante utilizado para mandar os informes.

Webinários e formações

Nós estamos com um projeto promovendo alguns webinários nas temáticas que envolvem o tema do racismo e do antirracismo atrelados a outras questões no contexto do Brasil e dos Estados Unidos. Pensando nos últimos acontecimentos, na morte do George Floyd, e em algumas outras coisas que o coletivo já queria propor, foi formada a Rede de Estudo e Formação em Racismo e Antirracismo. Atualmente, a rede vem desenvolvendo atividades.

Outra coisa que a gente tem promovido é um curso de formação nos estudos de gênero e raça. É um curso que costuma ser proposto para os integrantes do coletivo e que, nesse contexto de pandemia, curso foi aberto para mais pessoas.

Estou como aluna do curso também, então tem sido um momento muito interessante de aprendizado. Para ouvir outras pessoas do coletivo que são facilitadoras das temáticas, para ter contato com os textos, e também para ampliar a rede de pessoas. A gente percebe que tem muitas pessoas de outros estados, outros movimentos sociais, e algumas estudantes da graduação, que estão se interessando ou iniciando as pesquisa nesse campo de gênero e raça.

Viver a pandemia em zona rural

Meus pais moram na zona rural de Cachoeira, o que me traz de certa forma um pouco mais de tranquilidade. Porque aqui a gente não fica restrito ao espaço físico da casa. A gente tem um quintal grande, uma área grande. Durante o dia, meus pais, que são do grupo de risco, conseguem realizar outras atividades.

Aqui na minha comunidade, no início, as coisas não tinham mudado tanto, por conta do baixo índice de casos que tinha aqui em Cachoeira. Mas, à medida que o tempo foi passando, e as próprias pessoas da comunidade foram diagnosticadas com Covid-19, as coisas mudaram um pouco.

As pessoas passaram a ter uma outra articulação. Por ser uma comunidade de zona rural, as pessoas têm muito costume de dar uma coisa a outra, o que é produzido é compartilhado entre os vizinhos, ou de ir muito na casa dos vizinhos, ou de parar para conversar. Essa realidade tem sido um pouco mudada. A rua que eu moro é uma rua em que moram pessoas mais velhas, então passou-se a ter esse cuidado.

Por aqui ser uma comunidade da zona rural – como Cachoeira no início estava com os bares fechados – muita gente vinha do centro da cidade para cá para poder ir para bares e continuar uma socialização. Isso foi algo que estava me preocupando bastante, estava preocupando meus familiares e outras pessoas, porque era uma forma da comunidade estar um pouco mais vulnerável.

Aqui também a questão de transporte era muito específica, tem transporte com horário específico para sair, horário para voltar, isso também mudou.

Zona rural, reorganização financeira e novas tecnologias

Muitas pessoas que moram aqui vivem da feira, e tiveram que se reorganizar vender seus produtos. Conheço algumas pessoas que, por serem mais velhas, tiveram que dar um tempo de realizar a venda e comercializar os produtos que costumam vender, porque isso se tornou perigoso. Algumas pessoas da comunidade rural também implantaram o delivery, que era algo que antes não tinha.

Percebi que as pessoas foram buscando estratégias para conseguir uma renda. Muita gente aqui vive do que produz na roça, ou de algum trabalho não fixo. E agora que a gente está vivendo o contexto de pandemia, muitos trabalhos que não são fixos tiveram que parar ou diminuir. Por isso, de maneira gradual, as pessoas foram buscando essas estratégias de sobrevivência financeira.

Minha mãe, por exemplo, é professora. É uma pessoa de referência aqui na comunidade, é professora dos filhos dos alunos dela de vários anos atrás, porque ela já é professora há mais de 25 anos. E a vida dela de educação no campo é complemente diferente do que tem sido agora. Então ela está nesse processo de aprendizado e de tentar usar as tecnologias, que é algo que ela não utilizava. E eu tenho que auxiliar ela nesse processo de enviar atividade, de produzir atividade – ainda que seja difícil inclusive para mim, que não tenho nenhum domínio pedagógico, mas tem sido assim uma troca. Isso também impacta na vida dos alunos dela e das famílias. Porque acho que a escola aqui é muito um lugar de encontro, onde tem mais contato com as famílias e com as crianças.

No meio rural, ao ar livre, precisa de máscara?

O principal momento em que as pessoas passaram a se conscientizar e tomar medidas um pouco mais severas, como o uso da máscara…porque aqui a gente está ao ar livre, então algumas pessoas diziam que não precisa. Por estar está ao ar livre, no meio de árvore, encontramos poucas pessoas. Se eu estou aqui fora de casa, vejo uma pessoa passar agora e outra daqui a 10/15 minutos. Não tem uma quantidade de gente muito grande, principalmente na rua em que eu moro.

Planejamento de um futuro incerto

Antes da pandemia, eu nunca fui uma pessoa de me organizar muito para o futuro, pensar: “ah, minha vida daqui a 5 anos vai estar de certa forma”. Por exemplo, quando eu sai da graduação, não tinha tanto um projeto de vida traçado. Sabia que queria fazer um mestrado, a temática, mas, com o passar do tempo, eu comecei a pensar numa perspectiva mesmo de futuro

Tenho que escolher algo que vai me trazer um retorno. Claro que tem que ser algo que eu goste, mas estou caminhando para frente e preciso traçar um futuro assim do que eu quero, até porque traçar um futuro vai permitir traçar estratégias para chegar onde você almeja – pensava. Então na minha cabeça estava isso bem planejado.

Então, à medida que eu fui amadurecendo, ficando mais velha, entrei no mestrado, eu tinha um plano de vida traçado. Estava pesquisando programas de doutorado, pensando um projeto que eu pudesse encaixar.

Altos e baixos

Aí, quando chegou a pandemia, à princípio, eu estava pensando que ia ser uma coisa de dois meses . “Vou aproveitar para estudar, aprofundar minha pesquisa, ler mais” – pensava.

Mas, durante a pandemia, foi exatamente acontecendo o inverso. Muitos momentos de altos e baixos. Tinha semanas que eu super focada nos estudos. E outras semanas em que ficava sem fazer nada. Pegava algo para ler e não conseguia. Tentava assistir alguma coisa e não conseguia.

Eu perdi durante um tempo essa capacidade de articular um futuro. Ficava vivendo uma dia atrás do outro. Cheguei naquele momento de pensar: todos os dias são iguais, não sei quando vou sair disso, não tenho mais motivação para planejar nada, porque eu não sei quando é que as coisas vão voltar a acontecer.

Mas eu acho que, à medida que as coisas foram acontecendo, eu vi que algumas estratégias estavam dando certo, que as pessoas estavam encontrando estratégias para fazer as coisas acontecerem. Obviamente, não da mesma maneira que antes, mas as coisas estavam acontecendo. Eu precisava de alguma forma acompanhar isso; não podia parar e esperar a pandemia passar.

Atualmente eu tento encontrar uma perspectiva de quando as coisas vão melhorar. Porque passar vai demorar um tempo. Eu acredito que as coisas vão mudar muito, já tem mudado. Eu, pelo menos, sou uma pessoa muito afetiva, de encontrar as pessoas, abraçar, beijar, de ter o toque mesmo, então eu fico pensando muito sobre isso, de encontrar algumas pessoas e pensar “abraço ou não abraço?”.

De perto e de longe

Uma coisa que aconteceu ontem. Eu tenho um primo que eu considero como irmão. E ele já está aqui há três meses. Assim que começou a pandemia, demorou umas duas semanas, e ele veio para cá e está passando a pandemia meio com a gente.

E todas as vezes em que a gente se encontra, a gente se abraça. Só que dessa vez a gente não pode se abraçar. Foi a primeira vez que a gente se encontrou, ficou junto e não pode se abraçar. A gente tem uma relação muito próxima de carinho, de abraçar, de beijar. E aí quando foi ontem, foi um momento em família mesmo, eu estava indo para o banheiro e ele passou e me abraçou. Aí não teve como não abraçar de volta.

E minha dinda falou “e pode abraçar?”. Eu falei: “ai, tia, é a primeira vez que a gente passa três meses juntos e a gente não tinha se abraçado ainda”. A gente deu aquele abraço forte como se a gente estivesse há muito tempo sem se ver, quando na verdade a gente está passando a quarentena juntos, mas não podia ter esse momento do toque, do abraço. E eu sinto que foi algo que me marcou muito na hora, eu fiquei presa no abraço pensando “nossa, como isso era comum e agora não é… como de alguma forma a gente tem que se privar de viver isso, ainda que a gente esteja passando a quarentena inteira juntos na mesma casa”.

Isso aconteceu com o meu pai também, mais no início da quarentena.

Eu não tinha bolsa de mestrado e minha bolsa de mestrado chegou nesse processo de quarentena. Isso me deu um certo gás para pensar meu futuro. E no momento em que eu dei a notícia para o meu pai ele me abraçou. Eu não tive como não abraçar de volta. Porque isso era algo que era muito esperado por mim, por ele, por minha mãe, por minhas irmãs.

E eu fico muito pensando como a gente vai lidar com os afetos, com essa falta de abraçar as pessoas, de lidar com as pessoas que a gente ama. Eu fico pensando muito nisso e, ao mesmo tempo, não consigo chegar a uma resposta de como as coisas vão acontecer.

Eu sei que as coisas não vão ser da mesma forma, pelo menos eu não consigo imaginar, mas, ao mesmo tempo, eu não consigo pensar em viver sem encontrar as pessoas, encontrar meus amigos. E não ter aquele toque.

Minha irmã está em Salvador atualmente trabalhando. E isso tem sido uma falta muito grande para mim e para meus pais, porque a gente nunca ficou tanto tempo sem se ver. Tem sido muito difícil. E ela teve uma oportunidade de vir até aqui. Mas ela não veio. Porque ela disse que não ia conseguir chegar aqui e ficar de longe. Chegar e ficar no carro acenando. Para ela seria muito mais doloroso ver a gente de perto e não poder abraçar, do que ela distante fisicamente que é como a gente tem estado nesses últimos meses.

Planejamento sem cronograma

Eu tenho tentado planejar o meu futuro, mas sem pensar muito no tempo, em quando as coisas vão acontecer. Mas voltar aos meus planos antigos. Voltar a por a minha cabeça no lugar. Eu também tenho tentando escrever muitos dos meus pensamentos. Eu passo muito tempo sozinha, às vezes no quarto ouvindo música ou lendo uma coisa, e têm me surgido muitos questionamentos.

Chega uma hora que a gente não tem nenhuma coisa para fazer e o que resta é pensar. Então eu tenho me perguntado muito, feito várias perguntas para mim mesma, escrito as perguntas, lido depois e tentado encontrar respostas. E outras vezes não. Só deixando de registro para que futuramente eu possa acessar isso e tentar ver se o tempo me deu alguma resposta.

Mas, ao mesmo tempo, eu tenho tentado não me cobrar tanto. Porque, no início da pandemia, uma coisa que eu estava me cobrando muito era a produtividade. Tentar fazer as coisas, tentar acordar cedo e fazer isso e fazer aquilo. De certa forma eu consegui adquirir hábitos bons, que eu não tinha antes da pandemia, mas, por outro lado, eu ficava assim: “ah, eu tenho que fazer tudo, tenho que dar conta de tudo, esse é o momento que vou tirar para aprender todas as coisas que eu não tive tempo de aprender”. Só isso que não funcionou, pelo menos para mim. Chegou um momento em que eu não tinha mais energia para fazer as coisas, que eu trocava o dia pela noite, acordava de tarde, aí ficava tentando regular isso e não conseguia.

Tudo o que eu faço agora, me proponho a fazer ou não fazer, isso vai impactar no meu futuro.

Eu tenho aproveitado alguns espaços para fazer algumas coisas que antes eu não tinha coragem de fazer, ou que tinha mais vergonha – tipo aqui, gravar o vídeo, que é algo que eu não tenho nenhuma familiaridade. Durante os webinários eu mediei mesas e para mim foi muito angustiante, porque eu ficava muito com medo de errar, de fazer alguma coisa errada.

E tem muito essa coisa de necessitar da internet. Você combina uma coisa e no dia não tem internet acabou, você desmobiliza tudo.

Ainda tem isso. Além das inseguranças normais acontecem essas que estão fora do nosso alcance mesmo, que a gente não consegue controlar. Então eu fiquei muito angustiada. Mas eu contei com a ajuda de várias pessoas, que têm sido muito importantes nesse momento também. As redes de pessoas com quem eu me relaciono, meus amigos, meus familiares. A gente tem feito muita chamada de vídeo ou conversado muito nos grupos, tentado se ajudar muito, e isso tem me dado uma força. Mas eu tenho tentando usar esse momento também para romper. E isso também é fruto muito do que eu tenho tratado e conversado nos momentos de terapia, que sempre me fazem pensar e buscar algum tipo de estratégia para lidar com algumas questões.

Um alerta

Algumas pessoas costumam dizer que tem o lado bom da pandemia. Não vou dizer que isso em algum momento não passe pela cabeça da gente. Mas eu, particularmente, não consigo ver tanto um lado bom. Mas, ao mesmo tempo, a gente tem tentado encontrar estratégias para amenizar o momento que a gente tem vivido.

A pandemia é algo extremamente ruim em todos os níveis possíveis. Mas, ao mesmo tempo, é um alerta. É um alerta para o nosso corpo, para o nosso tempo, para a forma que a gente se relaciona com o meio ambiente, com a natureza, com o que a gente come.

Agora muita gente entrou nessa de “ah, vou ter uma alimentação melhor, faz minhas coisas em casa, deixar um hábito ruim, porque eu posso estar mais vulnerável na pandemia”. Eu estava vendo e pesquisando bastante coisa nesse sentido da imunidade. Que é uma corrida para conquistar algo que você não conquista em um mês, tem que ser algo gradual, que se conquista com bons hábitos.

Acho que a pandemia trouxe esse alerta, da forma que a gente se relaciona com as pessoas e de alguns hábitos. Eu não consigo me imaginar mais sem o tempo todo limpar meu celular. Mas isso era uma coisa que eu nem fazia antes . Eu via algumas pessoas falando “ah, tem que limpar o celular”. Eu pegava o celular, botava na bolsa, fazia todo esse movimento sem nenhuma preocupação. Então isso para mim não existe mais. Eu não consigo pensar mais em alguns hábitos que antes eram comuns como normais e isso vai acabar perdurando por mais tempo. Eu acho que a pandemia trouxe isso como alerta.

E uma nova forma de se organizar

Acho que trouxe também isso de criar uma nova forma de se organizar. Pensar as organizações, os grupos, da gente criar um sentido maior de comunidade. Eu acho que isso é algo muito importante, que os coletivos de pessoas negras geralmente tentam propor de se articular num contexto de comunidade. E a pandemia traz essa reflexão de comunidade. Por exemplo: eu moro em uma comunidade rural, mas, se eu for sair sempre, se for atender todos os meus desejos e minhas vontades, eu não vou estar pensando no senso comunitário. Porque a partir do momento que eu saio de casa, que eu saio sem máscara, que eu deixo de tomar algum cuidado, eu estou impactando na vida não só da minha família, mas de várias outras pessoas.

Então eu acho que trás para a gente esse sentido de comunidade – para além das paredes da nossa casa, para além dos nossos familiares e das pessoas mais próximas – de pensar num senso maior, pensar no coletivo, pensar de construir isso para um momento que não só esse.

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“A continuidade dos trabalhos em casa tem sido conciliada com um aumento de carga de trabalho doméstico”

Esse difícil momento vivenciado, com a pandemia e a falta de políticas públicas para o seu enfrentamento, nos causa enorme angústia e falta de perspectiva. Dentro desse contexto, eu avalio que fui mais diretamente impactada com a carga de trabalho.

Desde a primeira semana de isolamento social, estou trabalhando em home office. Desde a segunda quinzena de março, estou em casa com um filho de 4 anos sem creche. Meu companheiro segue trabalhando presencialmente cerca de uma a duas vezes por semana.

Nesse sentido, a continuidade dos trabalhos em casa – com uma carga ainda maior de urgência e demandas em razão da pandemia – tem sido conciliada com um aumento da carga de trabalho doméstico, ainda maior por conta de uma  maior permanência em casa e, principalmente, por não contar com a creche e ter menos possibilidades de redes de apoio.

Temos vivido uma rotina incessante de trabalhos. Muitas vezes, é difícil dizer onde começa onde termina cada um deles.

Mães, pais, cuidador@s, como vocês estão vivendo?

Há cerca de um mês, relatei em uma rede social:

“Mães, pais, cuidador@s, como vocês estão vivendo? Por aqui tá uma mistura incessante de: deixa os brinquedos espalhados pela casa com limpa o tempo todo; deixa a criança fazer o que quiser com precisamos de alguma rotina. Fazer as tarefas de casa no meio das tarefas de trabalho e vice versa. Eu não sei mais onde termina e onde começa nada. Ainda teremos muito tempo pela frente assim, né?”

Inclusive, já faz tempos que desistimos de manter qualquer rotina escolar com o Caio, nosso filho. Ele já não tem o menor interesse, e nós também não temos tempo e energia para nos dedicarmos.

Assim, vamos sobrevivendo e fazendo as coisas dentro de nossas limitações para preservar a nossa saúde física e mental.

No meio de tudo isso, minha pesquisa de mestrado – justamente sobre os impactos dos trabalhos dos cuidados na vida das mulheres e a política de creches públicas – está completamente suspensa por conta dessa carga de trabalho.

Precisamos falar de trabalho doméstico

Fica a convicção ainda maior da urgência de falarmos de trabalho doméstico, de trabalho de cuidados, de como eles sustentam toda a engrenagem de nosso sistema. De avançarmos, realmente, na divisão desses trabalhos com toda a sociedade: incluindo homens, poder público e empresas.