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60 anos ou mais Indígena Mulher Cis Prefiro não informar Roraima

“Com 100 anos minha mãe venceu o Covid-19”

Eu sou Anita de Almeida, tenho 75 anos, sou indígena da etnia Wapichana e estou ao lado da minha mãe. Minha mãe tem 100 anos e venceu o Covid-19. 

Ela ficou com Covid-19 em junho de 2020. Teve muita diarreia, febre e cansaço. Eu e minha irmã a curamos com remédio caseiro. Ninguém soube onde ela pegou a doença. Ela não saía de casa. Ela tinha 99 anos quando contraiu a doença e agora ela vai completar 101. 

Mesmo vencendo a doença, ela ficou com sequelas: sente muita dor no quadril e toma remédio todos os dias para diminuir essa dor. Além disso, está perdendo a visão e a audição. Buscamos especialistas para analisar sua visão e eles disseram que a retina da minha mãe está comprometida. Ela não vai mais conseguir recuperar a visão. 

Além disso, depois que a minha mãe adoeceu, não podemos mais deixá-la sozinha. Contratamos uma menina para fazer almoço, limpar a  casa porque minha mãe não pode fazer nada.

Superação: kit Covid-19 e remédios caseiros

Eu também fiquei com Covid-19. Devo ter pego a doença da minha mãe e foi a minha filha que cuidou de mim. Não cheguei a ficar internada. Fui ao médico e ele receitou ivermectina e cloroquina e eu tomei. Mas me curei mesmo após tomar o remédio caseiro. Era uma mistura de sálvia do campo com mel. Também tomávamos, tanto eu quanto minha mãe, água de coco com inhame e maçã. Assim fomos curadas. 

Em nenhum momento ficamos tristes porque nós temos um médico que é o médico dos médicos. Em nenhum momento a gente se desesperou.

Mas perdemos muito também. A minha irmã morreu de Covid-19 em 1° de junho. A gente fica triste por perder uma pessoa, um ente querido. Mas minha mãe é forte e hoje estamos aqui.

O jovem não acredita na pandemia

Já tomei a segunda dose da vacina. Temos que acreditar na medicina. Eu conheço gente que não acredita, que não vai tomar a vacina. Meu filho e minha nora pegaram o Covid-19 e mesmo assim se negam a tomar a vacina. 

O pessoal que mora aqui não acredita na pandemia. Ignora os hospitais lotados. O povo quer saber de sair, de farrear, de beber e não é assim. Tem muita gente morrendo e o povo não acredita, principalmente a juventude. O jovem não acredita, mas nós temos que acreditar porque essa pandemia ainda não acabou, ainda não passou e temos que nos resguardar.

Relato da mãe

Meu nome é Helena Leocádio da Silva, tenho 100 anos. Fiquei com as cadeiras doendo, depois as costelas. Mas tomei remédio e passou. Quando minha filha morreu, eu senti sua falta. Ainda estou sentindo muito a sua falta. Ela era tão nova.

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60 anos ou mais Homem Cis Parda Prefiro não informar Roraima

“Um dos momentos mais difíceis da pandemia foi chegar em casa e não ter o que comer”

Meu nome é Francisco Belchior. Sou autônomo e tenho 63 anos.

A pandemia afetou não só minha vida, como todas aquelas de pessoas mais vulneráveis. No meu caso, ela afetou principalmente a questão financeira. Eu tinha um pequeno comércio e a situação está muito difícil. 

Fome

Um dos momentos mais difíceis da pandemia foi chegar em casa e não ter o que comer. Isso aconteceu comigo mais de uma vez e felizmente contei com a ajuda de um amigo. 

Além da questão financeira, perdi uma irmã na pandemia e vários colegas. É triste perder um ente querido, da sua família.

A minha mensagem vai para as pessoas que sobreviveram à pandemia. É preciso ser forte porque não é qualquer um que aguenta passar por essa situação.

Relato de Francisco Belchior, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Prefiro não informar

Foi um dos dias mais importantes da pandemia

Trabalho com vendas e automóveis, em uma rotina muito intensa e que durante toda a pandemia sofreu uma grande instabilidade, o que impactou diretamente em minha vida.

Precisei de muita resiliência para conseguir continuar caminhando. Outro trabalho que realizo, de forma voluntária, porém muito profissional, é como palhaça, em hospitais, através da ONG Nariz Solidário.

Ficamos envoltos naquele imenso presente. Foi um dos dias mais importantes da pandemia.

É algo que sempre me ajudou a me perceber e perceber o outro de maneira singular e potente. Algo que também, devido à pandemia, foi amplamente afetado, já que as intervenções presenciais deixaram de acontecer.

Dias de acolhimento

Após longos meses parados, mas não tão parados assim, pois estivemos em constante estudo remotamente, — tivemos a oportunidade de retornar aos hospitais no mês de outubro de 2021, para uma ação de Dia das Crianças.

Tive ansiedade, calafrios, e um certo receio de estar ali mais uma vez, — mas agarrei novamente a oportunidade desse retorno tão importante para mim, e para aquelas crianças, seus familiares, e profissionais da saúde.

Para o retorno, o Nariz Solidário criou um jogo único no Brasil, para ressignificar a experiência hospitalar — uma espécie de jogo de cartas com elementos hospitalares como, por exemplo, luva que vira polvo, máscara que vira paraquedas, seringa que vira saxofone, e muito mais.

O dia finalmente chegou

Ali no Hospital Infantil Waldemar Monastier em Campo Largo, onde foi realizada a ação, estávamos em três pessoas: eu, com minha palhaça Jupira, meu amigo, palhaço Frutuoso e o Edu, da ONG.

A cada passo que, íamos evoluindo nos corredores, fomos notando que era uma visita diferente.

De longe, os olhares se abriam por trás das máscaras, curiosos — crianças acompanhadas de seus pais, pequenos pacientes obtendo sua alta médica, e, outros dando entrada no hospital.

Recepções calorosas foram nos envolvendo leito a leito, dentre pacientes, familiares, e funcionários de todas as áreas do hospital.

Ficamos envoltos naquele imenso presente. Foi um dos dias mais importantes para mim depois que começou a pandemia.

Em dias de olhar profundo

Em um dos encontros que realizamos, acabamo-nos por entrar em um quarto com quatro pequenas crianças acompanhadas de suas mães, que nos receberam com um grande sorriso.

Neste momento, enquanto eu e o Frutuoso fazíamos nossa aproximação sutil, segura e ‘palhacística’ – pares de olhos iam nos buscando e nos seguindo; olhos frágeis e ingênuos, mas também, muito fortes por conseguirem superar aqueles momentos.

Utilizamos uma língua muito conhecida pelos nenéns, o “Nenenêis”. As mães falam outra língua, a do “Mamanês”. Nesse papo poliglota fomos saindo, deixamos o jogo, mais uma frase em “Nenenêis”, e até aprendemos mais algumas em “Mamanês”.

Nesses encontros os olhos nos explodem por fora e nos implodem por dentro, algo que não se mensura no peito. Trouxe-me lembranças de uma infância cheia de amor, mas talvez, pouco explorada.

A importância dos acompanhantes para dias difíceis

Pude perceber como podemos estar tão rodeados de pessoas, mas tão sozinhas ao mesmo tempo, precisando de alguém como companhia. Percebi isso em um quarto com uma pré-adolescente, que estava muito triste. Havia passado há poucos minutos por um procedimento e estava naquele momento tão frágil, sem ter alguém do seu universo próximo.

Dias de acolhimento e 'palhaçaria' no Hospital

Ao entrar no quarto, sentimos a frieza da solidão em nosso paladar. Vi-me diante de um paradoxo gigante: o pensamento, a proposição ou o argumento que contraria os princípios   básicos e gerais que costumam orientar o pensamento humano, ou desafiam a opinião concebida, a crença ordinária e compartilhada pela maioria das pessoas do que é estar, “antes só, do que mal acompanhado”

Se tem algo que, aprendemos com essa pandemia, é olhar para o próximo com mais empatia. Ver muitas pessoas passando necessidade, ou em situações inimagináveis, mexe com nossa sensibilidade e com a vontade de oferecer ajuda a quem precisa.

Pequenas atitudes, como a doação de tempo, podem fazer toda a diferença para quem está em dificuldades.

Levarei comigo a percepção e a necessidade de estarmos mais juntos, estarmos mais ali, ao lado ou do lado, mais aqui, ao lado de mim mesma também, presente a qualquer momento e, considerando as necessidades do outro, e a minha, sendo ele próximo, ou não.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Indígena Mulher Cis Prefiro não informar Roraima

“Minha sogra sempre me apoiava e morreu no mesmo dia em que eu consegui um emprego”

Eu sou a Ana Pereira e tenho 26 anos. Eu sou da etnia Wapichana e nasci na Guiana Inglesa. Vim ao Brasil quando tinha cinco anos com minha mãe, depois que meu pai morreu, em busca de uma vida melhor. 

Eu estudei na Tabalascada, onde aprendi a falar português, já que eu falava inglês. Hoje em dia eu falo português, mas esqueci o ingles, é engraçado. 

Quando a pandemia chegou, eu já estava desempregada há três ano e ficou muito mais difícil encontrar trabalho. Com a pandemia, eu não conseguia arranjar emprego por não poder sair. Isso prejudicou a minha vida e a dos meus filhos.Tudo parou: trabalho, estudos.

Fiz faxina, fiz outros trabalhos pontuais para sobreviver. Meu marido pegou Covid e ficou desempregado. Ninguém queria contratá-lo por medo de se contagiar e então a situação ficou ainda mais difícil. 

O que nos ajudou foi a alimentação que a Escola distribuiu. Não tinha tudo o que queríamos, mas não faltou o pão de cada dia na mesa. 

Momento crítico

O pior dia da pandemia foi quando minha sogra morreu. Ela era uma segunda mãe para mim. Era ela que me ajudava com tudo. Ela ajudava todas as pessoas que chegavam pedindo ajuda em sua casa. Ela era muito guerreira. 

Nunca pensei que um dia pudesse passar por isso. Minha sogra era uma ótima pessoa. Ela sempre falava para eu não desistir de procurar emprego e morreu no mesmo dia em que eu consegui um trabalho. Foi muito difícil. Ela não estava com a gente para comemorar. 

Eu e o meu marido estamos tentando levar a vida, já que minha sogra sempre dizia que a vida continua, que não podemos parar. E é por isso que eu vou tomar a segunda dose da vacina e falo para todo mundo se vacinar. Afinal, temos que nos prevenir!

Relato de Ana Pereira, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Distrito Federal Mulher Cis Parda Prefiro não informar

“Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada”

Eu me chamo Jackeline, mas também sou conhecida como Fernanda. Tenho 33 anos, sou gaúcha, mãe solo de quatro filhos, trabalhadora sexual e resido na periferia do Distrito Federal, em Ceilândia. 

Quando a pandemia começou, eu morava em Anápolis/GO, onde tenho casa própria e trabalhava com carteira assinada em um restaurante. Por ter sido uma das últimas funcionárias a ser admitida, com a chegada da pandemia eu fui dispensada do serviço, pois o restaurante fechou as portas e passou a funcionar na modalidade de delivery.

Menos vendas, mais contas

Retornei para Brasília, onde eu já tinha morado em outro momento, para trabalhar com vendas nas ruas como ambulante com meu companheiro. O lucro não era tão ruim, dava para sobreviver. 

Em Brasília, vivia com minha família em uma casa de aluguel. Escolhi sair de Anápolis porque lá possui um órgão do governo que retira os vendedores das ruas da cidade e, por isso, quase não dá para viver dessa atividade no município. Em Brasília existe a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (AGEFIS), órgão similar ao que tem em Anápolis, porém os vendedores ambulantes se ajudam e evitam o recolhimento das mercadorias. “Todos correm juntos!” quando a AGEFIS chega.

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos.

Contas a pagar

Com o passar dos meses as coisas ficaram mais complicadas. As contas eram muitas: aluguel, água, energia, prestação do apartamento, alimentação, transporte e outras despesas. Com isso, voltei a realizar o trabalho sexual e meu companheiro, devido a baixa nas vendas nas ruas, começou a mexer com coisas ilícitas. 

Na época eu estava com dois meses de gravidez de gêmeos, porém, algumas semanas depois eu tive aborto espontâneo.Com a vinda para Brasília, meus filhos ficaram sem vaga nas escolas. Todos ficaram em casa, estressados, entediados e com os estudos prejudicados. Nesse período, eles começaram acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial Infantil e passaram a tomar remédios controlados.

Por conta das dificuldades financeiras, minha família foi despejada da casa onde morávamos. Apenas meu companheiro estava trabalhando e eu estava de resguardo por conta do abortamento.

Naquele período tão difícil, me aproximei da organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que nos ajudou, a mim e à minha família, com doação de cestas básicas, ajuda de custo quando participava de projetos, remédios, roupas e tantas outras coisas. 

Ainda assim, ainda tínhamos gastos, dívidas, frete de mudança para pagar, quatro filhos para sustentar e só recebíamos um auxílio. Com isso, meu companheiro continuou a atuar com coisas ilícitas e, um tempo depois, ele foi preso e me deixou sozinha. 

Redes de apoio

Eu me vi em uma situação muito difícil e retornei ao trabalho sexual. Afinal, tinha que ajudar meu companheiro no sistema prisional, mudar para uma casa com aluguel mais barato, pagar frete, sustentar meus filhos. Nessa época minha mãe passou a morar comigo. Ela usa marcapasso e não possui renda, mas tem me ajudado a cuidar das crianças.

As ruas estavam e continuam muito vazias, sem clientes. Quase não estou dando conta de pagar as contas. Alguns coletivos dos quais eu faço parte tem me ajudado bastante, como as Tulipas do Cerrado, Coletivo Aroeira e a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas. Com esses grupos eu tenho tido suporte, cuidados com a saúde mental e física, alimentação, ajuda jurídica com meu parceiro que ainda está privado de liberdade e me auxiliam a conquistar meus sonhos e atingir meus objetivos. 

Essas redes ajudam a reduzir os danos na vida das pessoas que estão em situações complicadas, como eu. Hoje eu consigo sobreviver, trabalhar, aprender, ensinar, etc. graças às pessoas que compõem essas redes. Posso afirmar que atualmente tenho uma família imensa no Distrito Federal, com quem posso contar a qualquer momento.

“Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito”

Pandemia: Como iremos sobreviver?

A pandemia ainda me traz medo e tristeza. Mesmo com tantas batalhas, o que mais me preocupa é viver sem ter a certeza do amanhã, sem saber se estarei aqui com meus filhos, medo de pegar Covid-19. 

Peço misericórdia a Deus! Perdi muitos amigos e clientes para o Covid-19 e não quero que isso aconteça comigo ou algum membro de minha família. Por fim, trago um apelo. O auxílio que recebo do governo e os ganhos financeiros com meu trabalho não dá para pagar com tranquilidade as despesas do mês, porque está tudo muito caro, os preços estão abusivos. 

Como iremos sobreviver? O que vai acontecer com a gente da classe baixa, trabalhadoras sexuais, pessoas vulneráveis, pessoas em situação de rua? Só somos vistos com preconceito. Emprego? Ninguém nos dá oportunidade. Ai de nós se não tivermos uma Juma Santos em nossas vidas. Ela é a minha segunda mãe, que cuida, acolhe e ajuda.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Superior Completo Homem Cis Parda Prefiro não informar

“A morte de companheiros deixou a comunidade cigana sem direito ao nosso tradicional ritual de despedida”

Muita coisa foi afetada por essa pandemia. Ela veio e bagunçou a vida de muita gente, mudou a nossa sobrevivência, balançou até a fé das pessoas. Mudou o sentido das coisas! Eu senti na pele toda essa mudança, porque presenciei a primeira morte de um irmão da comunidade cigana, em decorrência da Covid-19, aqui no Ceará. Foi o Barroso, aos 63 anos, no dia dois de Junho. Depois de alguns dias foi o Solimar… 

Foto de rosto e corpo de Antônio Ferreira dos Santos, apelidado de Barroso, acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida.

Barroso morava no Sobral, morreu na Santa Casa. Já o Solimar morreu na cidade de Crateús. Na verdade, recordo que quatro ciganos, aqui no Ceará, foram parar na UTI, por causa desse vírus. Dois conseguiram sobreviver e dois não resistiram… Mas eu sei que o primeiro Cigano a falecer por Covid foi no Estado da Bahia, na cidade de Jitaúna, a 383 quilômetros de Salvador, e enterrado em Jequié. Por isso, vou falar sobre o que é para nós ciganos perder uma pessoa querida durante a pandemia. 

Não esqueço daquele dois de Junho, dia da morte do nosso companheiro Barroso. Ele foi sepultado na cidade de Maracanaú, onde a mãe e familiares haviam sido sepultados. Barroso era conhecido assim porque aqui em Fortaleza tem um bar chamado Barroso e os ciganos foram os primeiros moradores desse bairro. Ele era o nosso grande artista, cantava muito bem, tocava violão… e acima de tudo era um grande amigo. A sua morte nos abalou profundamente. E pior! O outro irmão dele também foi para a UTI. Quando Barroso foi enterrado, dois dias depois o irmão saiu da UTI. Foi um baita susto! Uma porrada pra nós. 

Sem o nosso adeus

Para nós, essa questão de isolamento durante a pandemia da Covid-19 é de um impacto muito grande, especialmente no que diz respeito à falta do funeral, porque temos rituais e homenagens em nossa tradição e não podemos realizar nada, por causa do distanciamento. Somos um povo muito itinerante e gostamos de festa.

Essa questão fúnebre nos causa forte consternação, porque o nosso ritual, quando o grupo vive em barraca, por exemplo, tiramos tudo, queimamos tudo, as mulheres cortam o cabelo e se resguardam por um bom tempo. Algumas viúvas ficam dois/três anos sem se envolver com ninguém. E todo mundo respeita.

Outra situação que evitamos é com relação a nomes iguais. Se houver mais de um Barroso ou Rogério naquela comunidade, por exemplo, e estivermos em uma roda, evitamos falar o nome do que morreu por respeito aos demais e para não voltar aquela lembrança. Somos muito sentimentais e muito família. 

A espera

Já sabíamos que não podíamos fazer o nosso ritual devido às medidas de distanciamento social nessa pandemia. Foi muito triste.

Moro aqui na Caucária, região metropolitana de Fortaleza, onde fica o escritório central do Instituto Cigano do Brasil (ICB). O Joaquim cigano é irmão do Barroso e conselheiro nacional do ICB. Encontrei com ele e a família no cemitério de Maracanaú e aguardamos o corpo vim de Sobral. De Fortaleza à cidade de Sobral dá cerca de 220 quilômetros. Foi uma tortura.

Enquanto o corpo não chegava, fomos até a administração do cemitério adiantar a papelada. É um cemitério humilde, apenas um muro corta o caminho entre até onde o carro pode passar, porque não tem como entrar carro lá. 

Cena marcada na memória

Quando o carro da funerária chegou, foi uma cena que ficou na minha cabeça. Como eu disse, o muro dividia uma fila de sepulturas. Apenas o motorista e outra pessoa pegariam o caixão e levariam até a fileira, porque os coveiros não queriam tocar no caixão. Então, eu e o irmão do Barroso nos prontificamos a carregar o caixão. Já chegara a hora do meio dia quando os coveiros pegaram a alça do caixão e nos ajudaram. As irmãs do Barroso estavam do outro lado do muro em prantos.

O momento em que o caixão era levado até a gaveta foi emocionante. A cena que ficou marcada em minha memória foi a do caimento de uma chuva bem fina, no momento em que o corpo do Barroso era deixado ali dentro daquela gaveta. Entendemos que ali se tratava de um sinal de despedida. Ao mesmo tempo, as lágrimas caindo da face de todas as irmãs do Barroso que choravam muito, dizendo adeus ao irmão… aquelas imagens ficaram na minha mente. 

Foi quando tivemos a ideia de criar o memorial das vítimas da Covid-19 do povo cigano.

Subnotificação

O nosso povo é desconfiado, não gosta de fotos, não gosta de falar. 70% do nosso povo Calon é analfabeto. Ontem, fiquei sabendo da morte de dois ciganos, um em Eunápolis e outro em Petrolina. Todos no Nordeste.

Até o momento, estou sabendo de trinta e sete ciganos mortos, mas acredito que muitos mais ciganos se foram, vitimados pela pandemia. Porque o processo é muito rápido, e, quando o cigano é internado, ele não diz que é cigano. Muitas vezes por sofrer racismo.

Quando a pessoa morre, é logo encaminhada para a funerária. Não dá tempo de fazer nada. 

Mapa de óbitos pela Covid-19 produzido pelo Instituto Cigano Brasileiro. Mapa acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida. No mapa, é possível ver a seguinte distribuição das mortes. Ciganos Calon: MA - 1, CE - 2, PE - 5, PI - 2, AL - 1, BA - 8, GO - 5, MG - 1, ES - 4, MT - 2. Ciganos Rom: SP - 3, MG - 1.

Aqui no Ceará, não temos a cultura do acampamento, somos 108 famílias. A maior comunidade do Ceará fica no Sobral, onde vivia o Barroso. Solicitamos à Secretaria de Saúde, pedimos também à Cruz Vermelha, para fazer a desinfecção. Pedimos à Secretaria para fazer algo, teste, isolamento. Os gestores têm que fazer alguma coisa! 

A nossa preocupação é com o genocídio cigano, porque moramos todos muito próximos.

Despreparo e desencontro de informações

Tudo isso nos abalou, porque, além da Covid-19, vêm outras doenças: a depressão, a ansiedade. Somos muito inquietos, agitados, precisamos trabalhar. As mulheres estão se sentindo presas dentro de casa, os homens não estão podendo trabalhar. No lugar da alegria, uma das características do nosso povo, pairou um ar de tristeza e inconformidade. Nessa pandemia, houve até caso de suicídio em nossa comunidade. Está tudo muito difícil para a gente.

O governo não nos preparou, há muito desencontro de informações. Um tal de usa máscara, não usa máscara. Isso acaba chegando nos acampamentos do nosso povo cigano. 

Só em setembro, oito ciganos, que eu tenha informação, morreram, desde o dia primeiro até o dia 21. Nós, do ICB, realizamos algumas ações de conscientização para a nossa população se proteger.

Fizemos uma cartilha para divulgar, solicitamos ajuda financeira, mas ninguém nos ajudou. Então enviamos a cartilha virtual, elaboramos até máscaras com a frase “fique em casa”! Enfim, é um trabalho em conjunto e feito com amor para, sobretudo, proteger o nosso povo e evitar mais mortes.

A falta de políticas específicas agravou a situação

Fizemos a nossa parte, mas o que sentimos com tudo isso é que o Governo falha em campanhas específicas.

Colocam assim: “em situação de vulnerabilidade”. Isso acaba atingindo todo mundo. É necessário fazer campanhas para o povo cigano, povo quilombola, povo de terreiro.

Estamos dentro do decreto 6.040, que trata dos povos de comunidades tradicionais, mas eles não estão nem aí pra nada! O que falta para o Governo é criar vergonha na cara e fazer políticas ESPECÍFICAS! Não adianta fazer “em situação de vulnerabilidade” porque a gente fica na chuva!

Auxílio insuficiente

Agora, com esse tal auxílio emergencial… muitos povos ciganos não receberam esse auxílio. E tem mais: esses R$600 dá pra quê? Se não morrer de fome, depressão, ansiedade, ainda tem essa pandemia! Nós temos crianças autistas, muitas pessoas com doenças genéticas, e fomos praticamente esquecidos. Não há apoio. Somos atingidos por todas essas situações e com a Covid-19 os problemas só aumentaram.

A gente sempre pede acompanhamento médico, cestas básicas, testes para a Covid-19. Mas é tudo iniciativa do Instituto Cigano do Brasil. Precisamos acionar o Ministério Público (MP) para conseguir tratamento médico para nossos irmãos e irmãs que testaram positivo para a Covid-19. O povo cigano precisa de apoio. Porque tudo isso, sem contar o racismo que o nosso povo ainda sofre. 

Sou Rogério Ribeiro, cigano da etnia Calon. Nós, ciganos, estamos divididos em três grupos: Calón, Rom e Sinti. Há ainda seus subgrupos. Já estamos aqui nesta caminhada em terras brasileiras há 446 anos.  Sou presidente do Instituto Cigano do Brasil (ICB), que atua em 15 Estados, incluindo todos do Nordeste. Temos representação em Portugal, na Bélgica e na Grécia. O ICB foi pensado para atender todo o grupo cigano; temos menos de dois anos, mas muitos serviços prestados. 

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25 a 39 anos Estado Pará Prefiro não informar Prta

“Organizamos uma campanha virtual para atender famílias chefiadas por mulheres”

Desde o início da pandemia de Covid-19, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Altamira Campo e Cidade de Altamira, com apoio da Fundação Viver Produzir e Preservar, pautou ações para contribuir com as mulheres em situação de vulnerabilidade social.

A princípio, no mês de abril de 2020, junto com outras organizações, participamos de uma vakinha virtual, em que foram arrecadados R$60 mil. Como resultado, os movimentos compraram alimentos saudáveis produzidos pelas comunidades das três unidades de conservação da Terra do Meio e da Agricultura Familiar. Desse recurso, compramos 250 mega cestas e distribuímos às famílias. 

Além disso, o Movimento de Mulheres organizou outra campanha virtual para atender 50 famílias chefiadas por mulheres. A partir dessa campanha, arrecadamos R$30 mil para contribuir com as mulheres durante três meses. Da mesma campanha, já fizemos duas entregas, faltando uma, que será no começo de novembro.

Foto do Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Altamira acompanha relato que aborda as distribuições de cestas básicas e ações políticas realizadas na pandemia.

Por fim, a gente conseguiu se articular com a Rede de Cantinas da Terra do Meio, a Associação dos Pequenos Produtores e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), através do Projeto Somos Todos Amazônia, e conseguimos muitos produtos da agricultura familiar para doar às famílias. Além das cestas básicas, levamos também material de limpeza e material com informações de prevenção.

Mulheres periféricas são mais afetadas pela desigualdade

Percebemos, nesse tempo, a dura realidade da desigualdade que se abate sobre as famílias. Sobretudo, às mulheres da periferia.

O fato apenas confirma o que falamos a vida toda: os grandes projetos da Amazônia não produzem riquezas nem renda para seus habitantes.

Recurso de multa vira cesta básica

Além disso, participamos de outras campanhas que foram coordenadas pela Promotora Juliana. Nessa campanha a promotora recebeu 150 mil de uma multa. O Ministério do Trabalho tinha multado a Norte Energia, e todo o recurso foi revertido em cestas básicas. O Movimento de Mulheres, a Fundação Viver, Produzir e Preservar, entre outros, receberam as cestas e fizeram a entrega. Isso foi muito importante. Nessa mesma articulação da Promotora, a Empresa Equatorial de Energia doou 400 cestas e a promotora repassou para os movimentos fazerem as entregas.

Ação política

Além dessas ações de cidadania, nós participamos em ações políticas: enviamos documentos de reivindicações para o enfrentamento à Covid-19; apoiamos ações de comunidades ribeirinhas e indígenas e iniciativas de médicos e médicas de Altamira e região no combate à Covid-19; fizemos muitas intervenções na busca de leitos para as pessoas.

Diante de todo esse processo, enfrentamos a fúria dos negacionistas bolsonaristas.

Perdemos pessoas valiosas. Lutamos muito para a implantação do Hospital de Campanha, que chegou tarde e fechou cedo.

Mesmo com a diminuição dos casos, ainda estamos muito apreensivos. Considerando a abertura total do comércio, temos medo de uma segunda onda forte. Por fim, a única atividade que ainda não voltou presencial foram as escolas de ensino médio e fundamental.