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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Prta

A pandemia me machucou bastante

Quando a pandemia ainda não tinha chegado ao Brasil, eu já estava acompanhando as informações, por ser jornalista. E os dados que nós temos hoje sobre a pandemia são levantados pelo observatório de imprensa. Isso evidencia a importância desse ofício, tão atacado pelo governo vigente. Em 2019, eu atuava como assessor parlamentar de um deputado, que não se reelegeu e, por isso, fiquei desempregado.

Tenho 31 anos, nasci em Salvador, que é uma terra que eu amo, mas que não me ama. Digo isso por uma série de questões estruturais.: sou cristão, filho de pastor – mas costumo dizer que sou um cristão sem frescuras, porque eu bebo, xingo, fumo, transo e acredito em um ser que não me julga por essas questões. Tenho uma fé que, acima de tudo, acolhe e aceita as diferenças. 

Sou jornalista e, apesar de saber, me esforçar e receber feedbacks sobre a minha competência profissional, eu ainda carrego um complexo de inferioridade que me atrapalha bastante, mas que não me impede de realizar. Sou cantor, compositor, músico… também sou ativista, de vez em quando – porque ativismo não paga boleto. Desde cedo, o que me fez ser taxado como “rebelde” foi o fato de eu nunca ter aceitado a missão de ser exemplo. Eu nunca quis ser exemplo de nada – e meus pais queriam que eu fosse. 

Laços de família

Normalmente, só falo com as pessoas que tenho intimidade. Minha família era muito humilde. Lembro que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, meu pai ficou desempregado. Eu e meu irmão fomos matriculados numa escola em tempo integral, que ficava do outro lado da cidade. Acordávamos às 4 da manhã e chegávamos em casa às 20h/21h. Sem dinheiro para pagar passagem, subíamos no ônibus pela parte de trás, com o caderno dentro de um saco, e descíamos em um ponto muito distante e completávamos o trajeto até a escola caminhando.

Era um processo delicado. Na escola, me batiam e praticavam bullying comigo – em um tempo que nem se chamava de “bullying”. Aturei essas situações por algum tempo, até que um dia eu me revoltei e a introspecção se tornou violência. Passei a revidar as agressões. Apesar de gostar de estudar, eu não era estudioso, porque eu assimilava o ambiente da escola a algo parecido com uma cadeia. Ainda assim, passei a me envolver com o grêmio estudantil. 

Perdi vários anos na escola – era reflexo de eu estar tentando me encontrar em casa e me encontrar em meio aos questionamentos que a sociedade fazia sobre mim. Minha mãe faleceu em 2014, vítima de um infarto. E eu presenciei a passagem dela. Tínhamos acabado de chegar da igreja, ela tinha pregado naquele dia. Ela pregou sobre um texto que dizia:

“Deus amou o mundo de tal maneira que deu Seu Filho unigênito para que todo aquele que Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.

E nesse dia ela pereceu. E eu questiono a morte da minha mãe até hoje, porque sempre fui um ser questionador. Meu maior exemplo de fé era a minha mãe e de conduta cristã, o meu pai. A rigidez do meu pai me tornou mais introspectivo. 

Eu trabalhava no Pelourinho antes da pandemia

Eu trabalhava no Pelourinho como cinegrafista de turismo. Um amigo, que foi recrutado no colégio, pelo Gapa, para um processo de formação, me falou sobre a capacitação. Eu quis participar, mas já não havia mais vagas – mesmo assim, insisti. Após o curso, me tornei arte educador, trabalhando com música, através do hip-hop, e foi no Gapa, através das oficinas temáticas, que eu comecei a me enxergar enquanto pessoa preta, e perceber as diferenças de raça, de gênero e tudo mais que existia e ainda existe. 

Passei a estar muito mais atento aos preconceitos. Cheguei a cursar o técnico em música na UFBA e saí de lá, justamente, porque sentia que as pessoas tinham um pensamento muito elitista. Quando ingressei na faculdade de jornalismo, passei por dificuldades. Ia de bicicleta, ou tentava entrar no ônibus sem pagar, negociava com o motorista. Eu ainda não entendia muito do que se passava, mas a maneira como as pessoas me liam era consequência do racismo, dessa ideia de que o homem preto não tem sensibilidade. 

Quando namorei com uma mulher negra de traços finos, lida pela sociedade como branca. Eu, mais retinto, de cabelo crespo, traços negroides, enfrentava um tipo de preconceito, que eu nem sabia que era preconceito, quando perguntavam se eu era o segurança dela. Hoje, em outro relacionamento há 7 anos, ainda sinto essa falta dessa aceitação social. 

Do carnaval à pandemia

Como, na comunicação, eu tenho bastante possibilidades – trabalho com audiovisual, fotografia, jornalismo “convencional” e mais uma série de coisas – busquei trabalho como freelancer. Cheguei a participar da cobertura do carnaval para a Secretaria de Turismo. No penúltimo dia de carnaval eu me tranquei em casa e não saí mais – somente para o que era essencial. 

Moro com meu o irmão, mas nós sequer nos vemos. Eu passo o tempo dentro do quarto, e ele tem uma rotina de trabalho de uma média de 9h – do trabalho ele vai para a academia e quando chega, eu continuo no meu quarto. Segui isolado. A única pessoa com quem convivi durante quarentena foi a minha namorada, que, em home office, foi ficar comigo, não na minha casa, mas no meu quarto. Isso foi muito doido, porque a gente se conhecia, mas não tão intensamente – não dividindo por tanto tempo o mesmo ambiente. 

Eu sou um cara muito ativo, mas me vi mais uma vez ficando introspectivo, porque estava sem saber como lidar com essa fase de autoconhecimento, na qual eu conheci partes de mim que não gostei. Na mesma proporção em que eu desgostava da minha própria personalidade, eu passei a só olhar para mim, não conseguia enxergar a minha companheira. Estávamos afastados de tudo. 

Tive que depender do auxílio emergencial

O desemprego, que me forçou a depender do auxílio emergencial, também foi um fator de incômodo. Eram conflitos internos e externos. Cheguei a viajar quando surgiu uma proposta de trabalho a mais de mil quilômetros de Salvador e era a minha única saída – ou eu ia, ou a situação financeira ficaria ainda pior. Passei pouco mais de um mês fora e voltei. 

O meu maior medo na pandemia foi perder – tanto para o vírus quanto para os desafios da convivência – a pessoa que eu mais gosto depois de mim – a minha companheira. Foi uma fase muito difícil, de muito desentendimento. Mesmo estando no mesmo lugar, ficamos muito distantes. Não conseguíamos mais ter compreensão, cumplicidade. 

Eu venho de um processo de depressão muito grande, então, eu me cuido para não voltar a ter um pico de depressão severa. E tudo isso que passamos, me machucou bastante, porque dói viver isso com quem a gente ama. Mesmo assim, as pessoas me procuravam em casa pedindo ajuda, porque, como falei, sou ativista social – sou coidealizador do Coletivo Social Fábrica de Rimas – e sempre tentei apoiar a comunidade. 

Conseguimos pensar em estratégias, criamos a Geladeira Solidária, uma iniciativa que repercutiu na imprensa e foi copiada por instituições, até mesmo em outras cidades. Quase 800 famílias foram ajudadas por esse projeto.

O desejo de um futuro próspero após a pandemia

Eu quero conseguir construir um futuro para mim no qual eu tenha o suficiente para prosperar as pessoas que eu amo e, se eu constituir uma família, não deixar que eles passem pelo que eu passei. Infelizmente, eu acho que as pessoas sairão dessa pandemia mais egoístas.

Em compensação, penso que as pessoas se olharão mais.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Médio Completo Homem Cis Parda

A pandemia forçou nossa renovação

Foi neste momento que começou a pandemia. Antes de tudo, nós estávamos com uma perspectiva muito boa para o Festival de 2020. Sendo que, em 2019, a gente estava com um projeto bem legal de artistas, para fazer umas fantasias para 2020. Desde então, a gente estava fazendo o show de turistas e, quando veio a pandemia, a gente teve que parar.

Meu nome é Diego Cruz Azevedo. Atualmente sou figurinista do Boi-Bumbá Caprichoso. Comecei sendo figurinista em 2017, na gestão do presidente Babá Tupinambá. Mas venho trabalhando desde 1998 com o tio Deco, fazendo tribo e tuxaua, na agremiação.

Então, assim, comecei com ele, depois fui para a Escolinha do Boi-Bumbá Caprichoso e aprendi mais ainda. Fiz desenho, fiz artesanato de luxo e depois eu fiz dança. E depois da Escolinha eu comecei já a ingressar na vida de artista. Então, trabalhando com meu tio e com outros artistas do Boi-Bumbá Caprichoso que sempre me convidaram pra trabalhar. Aí, aprendi muito trabalhando no Festival.

Eu comecei a viajar pra São Paulo, sendo reconhecido pelo meu trabalho. Na gestão do Babá Tupinambá, em 2017, foi que eu fui convidado pelo presidente do Conselho de Artes, Éricky Nakanome, pra ingressar no quadro oficial de artistas, para fazer a Marujada. Desde então, eu estou no quadro de artistas.

“Perdi alguns parentes na pandemia”

Com a pandemia, todo mundo ficou nas suas casas, com os cuidados básicos pra não pegar a doença. Perdi alguns parentes na pandemia. Quando vieram as lives dos Bois, os diretores me convidaram para participar, para fazer fantasia, com o intuito de não ficar parado. Então a gente sempre ficou ajudando aqui na agremiação, nas lives. Quando tinha algum evento do Boi, a gente ia, mas ia sempre prevenido. Então, com isso, a gente teve que aprender a lidar com a pandemia, porque já não voltamos ao normal.

 Com a pandemia de Covid-19 que foi acontecendo, nós tivemos que nos renovar. Então, com essas lives do Boi, eu tenho uma equipe de seis pessoas – como eu não podia contratar muitas pessoas, eu sempre ficava revezando com os meninos que sempre me ajudam.

Eu ficava revezando, porque, é claro, sempre dependemos muito do festival. A nossa renda é o Festival. Então, como o evento não aconteceu, a nossa renda ficou muito baixa. Além disso, eu sempre revezava com as pessoas mais carentes que eu, para poder, de alguma forma, ajudar com o sustento de suas famílias.

A esperança da vacina

Com a chegada da vacina, já deu mais uma esperança pra gente. Reuni mais pessoas para o trabalho e isso ajudou mais ainda o Caprichoso a fazer as fantasias – que são os figurinos que a gente começou a fazer com a minha equipe.

Fora as equipes dos outros artistas também que começaram a se juntar. Começou a renovar a nossa vida de novo. Não ao ponto de estar tudo normal, mas a vida já começou a melhorar.

A expectativa que nós estamos tendo é de que para o ano que vem, seja o melhor Festival de todos os tempos. Porque é uma espera de dois anos, e por isso, o Festival vai ser grande! E, com isso, o Caprichoso vem muito bonito. Além do mais, temos conversas corriqueiras com o Conselho, que repassa todos as informações necessárias, portanto, a expectativa é alta para o ano que vem.

Ser mais é abranger o coleguismo, a amizade.

Perdemos muitos amigos na pandemia, mas, os que permaneceram em nosso meio, a gente tem que acolher.

A pandemia veio e mostrou pra gente que a gente tem que gostar do próximo, para podermos ir para a frente. E você que ainda não se vacinou, vacine-se.

 Eu já tomei as minhas duas doses, e aqui, o pessoal do Caprichoso, para conseguirmos fazer tudo o que quisermos, precisamos estar completamente vacinados.

A vacinação garante maior tempo de vida para as pessoas.

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Prta

“A pandemia me pegou em um momento muito desafiador”

A pandemia me pegou em um momento muito desafiador. Eu havia abandonado a faculdade de Hotelaria alguns anos antes, porque eu precisava trabalhar.

A maioria das pessoas me chamam de Juli. Nasci em Salvador. Morei um tempo em Feira de Santana com minha família, mas a música trouxe o meu pai de volta para o Candeal.

Meu pai, músico, foi um dos fundadores da Timbalada. Mas a música, infelizmente, não é suficiente para sustentar as pessoas. O sonho da maioria da população que nasce no Candeal é viver de música. Mas, infelizmente, as oportunidades não chegam para todos da forma que se espera e muitos se frustram — foi o que aconteceu com o meu pai.

Houve um tempo que a única alternativa para ele foi sair do país. Dos EUA, ele mandava dinheiro para que minha mãe e eu — que chegamos a tentar ir morar com ele, mas não conseguimos, — nos mantivéssemos. Com esse dinheiro foi que compramos nossa casa. Eu não achava a minha infância estranha, mas, hoje, ao olhar para trás, eu consigo identificar coisas que passaram despercebidas.

O racismo estrutural no Brasil

Como eu tive o privilégio de crescer no Candeal, tive acesso a curso de inglês, aulas de violino e estudei em colégio particular. O dinheiro que meu pai conseguia fazer no carnaval, era destinado a pagar as mensalidades de todo o ano letivo da escola. A gente não sabia o que iria comer durante o ano, mas a escola estava paga. E era esse “bastidor” que reverberava na maneira como eu identificava e enfrentava pequenas e grandes diferenças entre mim e meus colegas, como, por exemplo, o fato de que todo mundo tinha um celular e eu não tinha — e isso gerava exclusão.

Meus colegas não me incluíam porque eu sequer sabia sobre o que eles falavam. Com 9 anos, eu pedi para que alisassem o meu cabelo porque todas as referências ao meu redor eram de cabelos lisos — tanto na família quanto na escola — e eu pensava ter algo de errado comigo e com o meu cabelo. Isso só mudou quando eu acessei a universidade e tive contato com outros questionamentos e passei a fazer reflexões sobre tudo isso que eu, antes, não percebia.

Eu me limitava muito por medo da opinião alheia. Deixava de ser quem eu era para que minhas tias, por exemplo, não falassem e nem me julgassem mal. Quando mudei para um colégio público, meus colegas marcaram de ir ao cinema. Como eu não tinha dinheiro, resolvi vender brigadeiro para conseguir.

Ainda lembro do orgulho que meu pai sentiu de mim por isso. Daí para a frente, comecei a lidar com vendas e ir vendendo outras coisas. Descobri esse gosto e talento.

Os problemas gerados pela pandemia

Eu havia abandonado a faculdade de Hotelaria alguns anos antes, porque eu precisava trabalhar. Meu pai só estava tocando em casamentos — quando tinha casamento —, recebendo R$100 por cada cerimônia… se um mês tem, em média, 4 fins de semana, ele receberia R$200 no mês se conseguisse tocar em duas festas.

Nesse ponto, eu já ganhara um irmão. O dinheiro não era suficiente. Nem o xerox da faculdade eu conseguia tirar, por isso, também, tranquei o curso. Além disso, eu, que escolhera Hotelaria por acreditar que me renderia maiores oportunidades por ter inglês fluente, já firmara a certeza de que queria mesmo Psicologia. Passei a trabalhar com vendas de suplementação alimentar.

Como já disse, eu amo vender e me sentia bem exercendo aquele ofício. Mas, por conta da pandemia, a emprese fechou.

Isso me deixou sem chão — mas, não só isso. Meus pais, há alguns anos, já estavam se desentendendo. Acontece que meu pai estava adoecendo lentamente. Ele tinha dificuldade de lidar com o fato de não conseguir manter sozinho a nossa casa e ter eu e minha mãe sendo as principais mantenedoras. Hoje, eu entendo que isso despertou nele um processo depressivo — que o fez se sentir estagnado.

Emocional abalado pela pandemia

Tentamos de tudo para ajudá-lo, mas quanto mais a gente tentava, mais ele ficava estagnado. Ele sempre bebeu, mas passou a beber cada vez mais. Eu sofria com isso, mas não dava vazão, me ocupava com o trabalho. Quando eles se separaram, isso me afetou absolutamente, porque sou muito apegada à minha família. Caí de vez… nesse momento eu iniciei um processo de depressão profunda. Não dormia nem de dia e nem de noite — só conseguia chorar.

Fazendo terapia, entendi que eu não via o meu pai como um ser humano, mas como sobre-humano — por isso, não entendia a dor dele. Quando meu pai saiu, ele não pensou em muita coisa. Eu entendo que ele não estava bem, mas ninguém estava. Todo esse peso recaiu sobre a minha mãe. Ele retornou para os Estados Unidos — onde mora até hoje — para reencontrar um irmão dele que estava lá, na tentativa de reconstruir a vida dele — ele dizia que não tinha mais nada.

Depois que ele foi embora, ele e minha mãe voltaram a conversar e reataram o relacionamento — à distância.

A partir disso, algumas coisas começaram a melhorar, inclusive, porque ele começou a mandar dinheiro. Apesar disso, eu continuava no mesmo estado. A minha maior dificuldade nesse período é que eu sou uma pessoa muito sensível. Quando eu tentava recuperar as forças, eu declinava novamente. Não conseguia constatar os fatos, as pessoas morrendo, tantas tragédias juntas. Tudo aquilo me assustava e eu só conseguia chorar. Pensava “como morre tanta gente e ninguém faz nada?”.

Já não sou a mesma de antes da pandemia

Por mais que eu evitasse assistir aos jornais, a energia parecia mais tensa e eu sentia e absorvia isso. Esse foi o start para eu buscar uma conexão com a minha espiritualidade. Parei de me voltar tanto para fora e me voltei para dentro. Foi aí que eu consegui voltar à superfície. Eu sentia como se algo estivesse me segurando até que eu me reestabelecesse.

Chegamos a viajar durante a pandemia e, ao chegar lá, descobrimos que a família toda estava doente, mas eu, minha mãe e meu irmão, não tivemos nenhum sintoma e ajudamos a cuidar deles. Eu não tive medo do vírus, mas me sentia desesperada pela quantidade de mortes. Ficava me perguntando como as pessoas estavam encarando tudo isso, principalmente quem perdera pessoas, porque era uma dor muito grande.

Já sei que não sou mais a pessoa que eu era. Não tenho como voltar… não sei sequer como estão os meus laços de amizade e nem como serão, porque assim como não sou mais a mesma pessoa, tenho certeza de que os meus amigos também não são. Não tem nem como se manter igual. Mesmo sem ter perdido alguém próximo, não tem como não se sentir “perdendo algo”.

Aprendi que nós precisamos fazer uns pelos outros. Por mais que a dor seja grande, precisamos olhar para fora, porque, talvez, a dor do outro seja ainda maior do que a nossa. Eu tenho esperança de que as pessoas melhorem, que nada do que vivemos seja esquecido.

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta

Foi assim, nessa fase, que me deparei com a pandemia

Eu tenho 23 anos. Curso Bacharelado Interdisciplinar em Artes desde 2017 e teria me formado em 2020, se não fosse a pandemia. Passei a maior parte da minha vida em Cajazeiras.

Meus pais são separados. Minha mãe criou a mim e meu irmão. Ela é empregada doméstica e sempre trabalhou em casas situadas em bairro considerados nobres, como Rio Vermelho e Barra, para onde eu ia com ela — já que ela me matriculou em colégios públicos próximos à área em que trabalhava. Assim, saíamos juntos, e, depois que a minha aula terminava, eu ficava com ela até que fosse liberada do serviço e voltássemos para casa.

Sempre existiram algumas questões que me afastavam da minha família. Meu pai, ausente, morando em outra cidade, só nos ajudava quando conseguia algum trabalho. Meu irmão, usuário de drogas, se envolveu com o tráfico e chegou a ser preso. Minha mãe conseguiu um advogado para libertá-lo. Questões como essas geraram um afastamento familiar. Mas minha mãe sempre trabalhou para colocar comida na mesa e nos dar o mínimo.

Os abismos da realidade

Éramos vulneráveis e nem tínhamos essa consciência. O mais doido de tudo isso era que enquanto eu vivenciava essa realidade em casa — e convivia nos colégios com colegas, na maioria pretos, como eu, que vinham de um contexto similar —, na casa dos patrões da minha mãe eu percebia outra categoria de arranjo familiar. Era completamente desigual. Eu experienciava um “não-lugar”. Não me sentia pertencente a nenhum dos mundos.

Em Cajazeiras ou no colégio, eu tinha pouco tempo, e no trabalho da minha mãe, eu sabia que não fazia parte daquele lugar. Esses trânsitos me impediam de criar vínculos e relações estáveis, duradouras. Eu era bem introvertido.

Sou gay e minha mãe age com indiferença, como se não soubesse.

Sempre fui a pessoa mais escura da minha família. Eu sabia que muito do que eu passava na vida era, primeiro, por conta da minha cor, e também, por perceberem minha sexualidade dissidente.

A desigualdade é anterior à pandemia

Eu ainda era uma criança quando já me preocupava em, quando comprar o pão para a família que a minha mãe trabalhava, não parecer ou ser confundido com um delinquente, por exemplo. Eu pensava desde as roupas que usaria, que não estivessem minimamente rasgadas, até a maneira como andaria. A neta da patroa da minha mãe tinha a minha idade e era com ela (e com os amigos e familiares dela) que eu tinha algum tempo para brincar, de vez em quando. E, obviamente, existia um contraste gritante… sofrendo violências que, pela pouca idade, eu nem sequer percebia na época, sendo excluído de algumas brincadeiras.

Era um recorte de classe, mas que, principalmente no Brasil, está intrinsecamente ligado ao recorte de raça. O subconsciente e inconsciente coletivo de que preto é pobre e branco é rico. E as pessoas ao meu redor acreditavam que eu deveria enxergar naquele lugar uma oportunidade de transformação — apesar das violências. Eu era visto como um exemplo, principalmente porque, comparado ao meu irmão — que apontavam como alguém que “deu errado” — eu era alguém em que se podia depositar alguma confiança de que “daria certo”.

Isso era extremamente incômodo para mim, porque eu não queria ocupar esse lugar de expectativas. Fiz o possível para me esquivar dessa perspectiva. Até por tentar enxergar meu irmão de forma mais humana e, sem desresponsabilizar ele, entender os contextos e perceber quais as responsabilidades dele, do Estado, da família, da sociedade. Enquanto isso, fui tomando consciência, cada vez mais, sobre a minha raça e sexualidade.

A chegada da pandemia

Por conta da universidade, primeiro, fui morar com um casal de amigos, no Alto das Pombas. Envolvi-me bastante com o movimento estudantil, e essa foi a maior oportunidade de fazer coisas novas, que eu tinha vontade. Além disso, a fazer parte de um coletivo de teatro, e nele, eu estava atuando. Em 2019, eu sentia que a minha vida estava fluindo bem e eu estava dando conta de tudo, até comecei um namoro.

Quando ainda só ouvíamos os rumores e não sabíamos a dimensão de tudo que viveríamos, fomos vivendo normalmente e deixando para ver como seria quando chegasse aqui. Até aí, eu estava muito conectado às pessoas.

A cada passo que eu dava no campus da universidade, eu falava com alguém. Eram muitas relações. O distanciamento social me impactou. E os amigos, com quem eu morava viajaram… passei 7 meses sozinho, recebendo visitas apenas do meu namorado. Foi uma época meio louca, porque era preciso se preparar tecnologicamente, porque era através da tecnologia que se manteriam as relações.

Houve muita briga no meu curso por questões administrativas e afins. Eu temi muito por minha mãe. Eu não estava com ela, mas ela ainda trabalhava na casa das pessoas de classe média. Ela chegou a ficar um tempo parada, mas depois retornou. E não tem como não pontuar que a primeira pessoa a morrer por Covid no Brasil foi uma empregada doméstica. Ela ficou bem.

Não perdi familiares, mas vizinhos e conhecidos faleceram.

Uma possível esperança para o pós-pandemia?

O que mais me dava medo dessa pandemia era essa ideia de uma “coisa invisível” que, em algum momento, poderia pegar em mim. E aí tinha toda aquela paranoia, limpando tudo, separando as roupas que eram usadas e tudo mais. Hoje eu avalio que foi ótimo estar só — não completamente só, porque, como disse, via meu namorado aos fins de semana. Mas penso que se eu estivesse com mais alguém em casa… acredito que ficaria louco.

A pior parte da pandemia era estar em espaços virtuais nos quais eu não me sentia contemplado, não tinha tanto acesso e o medo dessa ameaça iminente, o que me gerou crises de ansiedade. Fiquei bloqueado para o choro, as lágrimas não vinham.

E um momento muito difícil foi a morte do meu namorado — que não foi por Covid — sobre a qual eu ainda nem consigo elaborar.

A sensação que eu tenho é de que a vida parou. Tudo ficou estagnado em algum lugar, paralisado, esperando o momento de reiniciar. Agora, espero que eu consiga retomar tudo de onde parei. Quero muito conseguir tirar do passado para o presente tudo o que eu iniciei, e precisei pausar. Mas, por enquanto, tanto individual quanto coletivamente, não existe alegria, estamos longe de estar bem.

 Espero sairmos dessa preparados e com forças para encarar coisas piores.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Mulher Trans Prta

“Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas não era verdade”

Me reconheci como trans em 2002, entre 13 e 14 anos, quando tomei meu primeiro hormônio escondida.

Sou de Ilhéus, mas moro em Salvador desde 2014. Sou graduada em Educação Física. Tive dificuldade de conseguir emprego na área de formação, por isso, passei a atuar na área de ‘telemarketing’.

Estou envolvida no ativismo trans desde 2008. Minha relação com meu pai não é tão boa. Os pais criam expectativas sobre os filhos, de forma geral, e quando esse filho é trans (ou até mesmo cis-gay), eles acreditam que não terão netos, uma descendência. Já com a minha mãe, tenho uma relação de amizade.

Se reconhecer como uma pessoa trans

Roubava calcinhas da minha irmã, para usar e sair na rua. O que foi definitivo para eu saber que sou trans tão cedo, foi o fato de ter referências, como Roberta Close, uma mulher trans da minha cidade, que viajou para a Itália e depois retornou transformada — quando eu nem sabia o que era silicone.

 A partir dessas referências, pude entender ser aquele corpo, aquela forma que eu queria assumir. Elas — mulheres trans famosas e precursoras na visibilidade — foram muito importantes para muitas se verem nelas, assim como nós somos e seremos importantes para outras. Durante o ensino médio enfrentei dificuldades com o preconceito e cheguei a evadir devido à discriminação, visto que eu era impedida de acessar o banheiro feminino, sendo a única trans da escola — tinham muitos gays.

Às vezes eu tinha que sair da escola para usar o banheiro da casa de uma colega que ficava do lado — já cheguei a urinar na roupa.

Também tive questões com o ensino de disciplina ligada à religião, que usava de práticas evangelísticas e cristãs, cujo discurso era transfóbico e não contemplava outras religiões.

Uma juventude conturbada

Voltando a falar da minha relação com a minha mãe… é muito fraternal. No início houve a não aceitação, mas as coisas mudaram, principalmente, quando me tornei a única filha – entre mais 3 mulheres e 4 homens cis – que se formou numa faculdade.

Isso é motivo de orgulho para mim, e motivo de orgulho para ela, ainda mais tendo outros filhos que se envolveram no mundo do tráfico.

Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas percebeu, na prática, que isso não era uma verdade. Por isso, costumava dizer que — “eu não lhe dava orgulho em um ponto (por ser trans ) — mas dava orgulho de outras formas”

Eu precisei tentar compreender muitas falas dela, como essa.

Entender que ela já é uma mulher de mais de 60 anos e sua formação foi outra. Eu passei a interpretar não apenas o que ela dizia, mas o que ela queria dizer. Esse acolhimento é importante, inclusive, devido ao que minha mãe já sofreu, sendo agredida e espancada pelo meu pai, em um contexto machista e de subserviência. Entretanto, ela sempre foi batalhadora… não esperava pelo meu pai, mas ia à luta, trabalhava e fazia todo o possível para trazer o sustento para a nossa casa.

As dificuldades de uma pessoa trans

Depois de um tempo eles se separaram, e nós, os filhos, ficávamos com ela. Após me formar no ensino médio, trabalhei na Secretaria de Educação.

Lá, tive meu nome social respeitado.

Experiência importante para que eu me posicionasse na faculdade, em Itabuna, quanto a preservação do nome social — eu e uma colega fomos as primeiras trans da faculdade a termos o nome social na caderneta — e, também, quanto ao uso do banheiro feminino.

Estagiando no SESI, em Ilhéus, em 2011, não era aceita como mulher trans, mas tratada como homem cis gay.

Era difícil não ter o meu nome respeitado, mas eu precisava daquele dinheiro, porque não queria ter que me prostituir, como já havia feito algumas vezes.

Em 2014, mudei para Salvador e saí do SESI, mas retornei em 2016. Foi quando eu disse que só aceitaria voltar se tivesse a minha identidade de gênero plenamente respeitada, o que me foi negado, de modo que recusei me submeter àquela condição de trabalho.

O mercado de trabalho para pessoas trans

De volta a Salvador, encarei a dificuldade de conseguir um emprego. Dizem que a culpa é da falta de formação, mas quando formamos, continuamos amargando o desemprego. Isso é cansativo… marcas, empresas e instituições que se promovem se afirmando inclusivas porque oferecem um curso, uma oficina, mas que não mudam a realidade e nem oferecem o que realmente precisamos, que é trabalho.

Passei a atuar na área de telemarketing, mas como o dinheiro só é suficiente para pagar as contas básicas, ainda faço alguns trabalhos de prostituição. Durante a pandemia de Covid-19, mantive a minha rotina de trabalho, porém, com todas as limitações impostas pelos protocolos sanitários de prevenção ao coronavírus.

Tive medo, mas não me infectei pelo vírus. Eu cheguei a sair, sim, durante o lockdown, até por uma questão de necessidade. Eu sentia urgência em aproveitar a vida, que é tão curta. Mas prezei por minha mãe, que estava em Ilhéus, em quarentena.

Não tive nenhuma perda significativa de pessoas. Apenas conhecidos distantes, o que, de alguma forma, me entristecia, mas não impactava tanto. O que realmente me impactou foi, já em 2021, ter ficado desempregada. O que garantiu o meu sustento fora os clientes que mantive enquanto garota de programa.

Os anseios do pós-pandemia

As ajudas dos projetos e iniciativas sociais, que ofereceram cestas básicas para pessoas em vulnerabilidade, incluindo pessoas trans, também foram de suma importância para eu conseguir passar por esses momentos de isolamento social.

Usei o tempo em casa para aprender a cozinhar melhor, fazer cursos online e estudar — aproveitei para assistir filmes, séries e aprendi a me cuidar mais e dar valor a minha vida.

Quero muito conseguir voltar a trabalhar e dentro da minha área de formação.

Desejo tocar projetos sociais e de ativismo que ajudem as minhas iguais, e espero o momento em que esse presidente saia do cargo, para podermos ressignificar tudo ao nosso redor, retomando políticas públicas e enfrentando o preconceito e a discriminação.

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta

“Foi quando ficou mais forte a negritude em mim”

A questão da negritude chegou-me dentro da academia, me impulsionando ao ativismo. Eu, primeiro, vi o racismo enquanto estrutura, antes de vê-lo como uma problemática nas particularidades da minha vida, porque nunca sofri violências individuais explícitas.

Sou um jovem negro de 24 anos. Filho único. Costumo dizer que me tornei negro… 

O universo das escolas particulares

Sempre fui bolsista em escola particular. Apesar de nunca ter passado por privações, tínhamos limitações. E isso se evidenciava quando eu comparava a minha realidade com a de colegas do colégio. Colegas, esses, com quem não conseguia construir relações por falta de afinidades.

Eu era introspectivo e não me sentia pertencente a nenhum dos grupos que existiam lá. Romanticamente, eu nunca tive o meu interesse despertado por ninguém. O meu foco era, realmente, nos estudos.

Universidade e o olhar para a negritude

Na universidade, foi onde comecei a ter vivências de juventude. Eu senti como se tivesse ganhado uma missão: como cursava no turno noturno, as minhas experiências eram um tanto diferentes das de outros jovens na universidade… Eu lidava com colegas mais maduros, em sua grande maioria mulheres, pessoas que trabalhavam no turno oposto ao que estudavam, e, logo de cara, fui pego pela militância e fui atuar no movimento estudantil. 

Esse tipo de contexto também fazia com que minha socialização fosse um tanto limitada.

Ter entrado em contato com o Gapa foi um divisor de águas, principalmente por ser um movimento social que pautava temáticas de sexualidade, o que ia me trazendo provocações e compreensões que ainda não tinha. Passei a me questionar sobre meus desejos (ou a falta deles).

No Rio de Janeiro, em um encontro do movimento estudantil, eu tive uma primeira experiência com um rapaz. Ao retornar para Salvador, resolvi me desenvolver mais nesse aspecto. Conversando com uma colega, ela me apresentou algo que eu nunca pensara em usar: os aplicativos de relacionamento. Ao questioná-la, ela me disse que não tinha expectativas, que apenas passava algum tempo olhando os perfis das pessoas e que se não conhecesse ninguém, ao menos poderia fazer amizades.

Pandemia e o boicote às descobertas

Aquilo me interessou e comecei a ver, nisso, a possibilidade de começar a me relacionar. Após dois encontros e muita animação por desbravar essa área da minha existência, veio a pandemia, mudando todos os planos e dificultando essas oportunidades.

O início da pandemia me encontrou num momento de muita atividade, conciliando faculdade e trabalho. Como sou da área de Saúde Coletiva, a pandemia não me assustou a ponto de me paralisar, por entender todos os processos que estavam acontecendo. 

Eu já tinha vivido um momento de isolamento social, em 2015, quando, ao finalizar o Ensino Médio, fiquei integralmente em casa, estudando para o vestibular. Sem sair, sem ver amigos… Isso me gerou um pico de ansiedade, visto que eu só tinha 18 anos. Mas foi uma fase, também, em que pude refletir sobre estar só, entender e aprender a lidar com isso. Lidar, inclusive, com a falta de privacidade que acontece, vez ou outra, com meus pais. Sendo assim, consegui lidar bem com o fato de estar em casa durante o lockdown. 

A minha dificuldade era que, apesar de ter familiaridade com aquela realidade, o momento de vida que eu estava vivendo era de querer ir para fora e explorar espaços que eu ainda não explorara. Em meio a isso, mergulhei na espiritualidade. Sou da religião Messiância e sempre fui muito requisitado… fui me aproximando mais. Me dedicava ao audiovisual — que se tornou essencial. Passei a priorizar estas relações. E, por isso mesmo, não senti medo, apesar do caos. Eu me sentia muito protegido.

“Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza em minha negritude”

Também desenvolvi o TCC durante a quarentena, mas o mais marcante, para mim, nesse momento foram as mudanças das minhas percepções sobre mim mesmo. Eu passei a enxergar coisas que eu nunca enxergara. Ao deixar cabelo e barba crescerem — coisas que eu não deixava antes —, vi nascer em mim um homem que eu não vira ainda. Foi quando ficou mais forte a negritude em mim. Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza neles. Eu não me via como alguém bonito. Todo empoderamento que, com a militância, vinha à tona de fora para dentro, com essa transformação estética, passou a florescer de dentro para fora. 

Além disso, com a pandemia, eu entendi que a vida é urgente e demanda urgência. Tudo que aconteceu é, também, resultado de uma conjuntura política que trouxe à tona muitas vulnerabilidades e, agora, entendendo-as.

 Quero usar minhas forças para lutar contra elas, sem deixar de acreditar num futuro melhor. 

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60 anos ou mais Bahia Ensino Médio Completo Mulher Trans Parda

Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura.

Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.

Tenho 60 anos e acredito que envelhecer é um privilégio, principalmente para a mulher trans.

O nome que escolhi é um fragmento do meu nome de registro — bíblico — um apelido pelo qual já me chamavam. Venho de uma família de 12 irmãos, cristãos adventistas do sétimo dia. Nasci em Mundo Novo e fui criada em João Dourado, uma vila.

Descobri muito cedo que era diversa, não porque eu pensava ser, mas porque minha mãe dizia que eu era diferente, meus irmãos e irmãs diziam que eu era diferente, a igreja dizia que eu era diferente.

Eu não sabia o que era “ser diferente”

Eu só sabia que não gostava das mesmas coisas que eles, por isso resolvi silenciar, por não suportar ser apontada como culpada por tudo, justamente pelas minhas diferenças. .

Aos 14 anos, cursando o segundo grau, eu cantava e era ensinada a tocar instrumento pela esposa do pastor, que me adorava. Todo mundo dizia ao meu pai que eu era uma criança maravilhosa, mas ele não conseguia aceitar a minha natureza tão distinta dos meus outros irmãos.

Eu não gostava de jogar bola, ir para a roça e tomar banho no açude.

Me identificava muito mais com as minhas irmãs. Eu ficava muito revoltada, questionando o porquê de me chamarem “veado”, “salta moita”, — visto que eu nem sequer tinha experiências sexuais ou manifestava desejos.

Sonhava e imaginava que minha vida seria transformada de uma hora para outra, mas não sabia como.

Tinha muito apreço pela igreja. Ainda aos 14 anos, perdi o meu pai. Foi quando minha mãe entendeu que seria melhor para eu morar com as minhas irmãs em Salvador, onde elas já estudavam.

A passagem por Salvador e Rio

Passava um tempo com cada uma delas. Elas não eram perversas comigo, mas havia, sim, uma repressão, que hoje eu consigo entender com mais facilidade. Aos 16 anos, fui ajudante de cabeleireira e, aos 19, concluí o segundo grau.

 Estudando à noite, eu via mais meninos gays, com liberdade de serem quem eram. Fiz amizades e, nessa fase, eu me entendi enquanto homem gay, porque eram as referências mais fortes que se tinha. Ainda não sabia o que era “trans”.

Sabia que gostava de homens e que não me identificava com as vivências mais comuns. Tive meu primeiro relacionamento gay ótimo. Mas melhor ainda foi ter descoberto os palcos.

Me tornei transformista, comecei a fazer shows na noite e ter muito sucesso em Salvador. Fui eleita Miss Beleza Gay, Miss Universo, e aos 22 fui para o Rio de Janeiro, me apresentando.

Eu representava o Nordeste, interpretando Sarah Jane com o sucesso “A Roda”. Numa noite, no Teatro Brigitte Blair, conheci Claudia Celeste — a primeira travesti a atuar como atriz em novelas brasileiras — que se tornou a minha referência.

Quando a vi, entendi ser aquela forma feminina que eu queria assumir. Encontrei-a no camarim, conversamos, ela me convidou para a sua casa e me ensinou todos os próximos passos. Entendi que não seria fácil incorporar o universo trans, mas estava decidida. Liguei para Salvador, para me desligar do salão onde trabalhava como ajudante, e no dia seguinte, já comecei a tomar os hormônios. Fiquei três anos no Rio sem ver a minha família. Já estava transformada, gloriosa. Os homens já paravam os carros — e é importante falar, nesse ponto, que não são as mulheres trans que buscam pela prostituição, mas a prostituição que nos chama.

“Somos empurradas para essa vida.”

Imagine: eu trabalhava no salão ganhando 250 reais por semana, o valor de um programa ou até mais.

Nós, transexuais, somos essência.

Nós apenas pomos para fora o que existe dentro. Por isso, arriscamos pôr silicone e fazer cirurgias — nós nos expomos à morte numa mesa de cirurgia para conseguirmos expressar a nossa feminilidade.

Passados os três anos, voltei para Salvador para visitar as minhas irmãs. Imaginei que, por estarem na universidade, entenderiam meu processo de mudança. Ao adentrar a casa, me encontrei logo com dois dos meus irmãos. Foi um momento violentíssimo. Para eles, foi como se eu tivesse virado um monstro.

Toda a minha infância veio à tona. Aquilo me deixou destruída, decaí muito. Dali, busquei apoio com amigas, pois acreditava que não conseguiria bancar a transição para a minha família. Apesar da dor e sofrimento, eu não conseguia sentir ódio.

Não voltei mais para o Rio e quase cheguei a desistir por conta do desânimo em que eu me encontrava.

Mas eu já estava tão bonitinha — porque nós ficamos bonitinhas no início; linda, nós ficamos depois que entende a vida e nossa alma.

 Retomei os shows em Salvador e tive sucesso. Representava Gretchen, justamente porque os taxistas mexiam comigo e me chamavam assim por causa do excesso de silicone e harmonização. Aproveitei para ganhar dinheiro fazendo programas com esses mesmos homens. Um tempo depois, uma amiga me disse que deveria ser “puta” na Europa.

Apesar de estar em um relacionamento em que eu amava muito o meu companheiro, decidi abrir mão e me aventurar – principalmente porque eu vivia insatisfeita com o sexo.

A genitália me causava um incômodo que eu ainda não sabia como chamar — hoje, sei: disforia.

A estadia na Itália e o câncer

No fim desse percurso, descobri um câncer no intestino. Veio o pânico. Com toda a vivência cristã que tive desde a minha criação, pensava que todos estavam certos — que era um “castigo de Deus devido ao pecado”.

Foi muito difícil, porque eu sempre acreditei em Deus. Nunca mudei de religião. Eu me considero adventista do sétimo dia, porque essa fé me bastou.

E, apesar de renunciarem a nós, a família é a nossa base. Conversei muito com Deus. Iniciei o tratamento, usei bolsa de colostomia por quase três anos e consegui vencer o câncer. Gastara metade das economias que havia feito — inclusive, para a cirurgia de resignação.

Nessa etapa, minha irmã disse ter entendido o que eu queria e vendeu o próprio apartamento – passando a morar junto comigo – para que eu pudesse ir para a Tailândia realizar o meu sonho.

Eu ressurgi das cinzas. No meu retorno aos palcos, ainda fragilizada, bem mais magra, ouvi alguém da plateia fazer um comentário infeliz que — após me posicionar — me fez abandonar os palcos. Aquilo me magoou ainda mais porque o ambiente era uma casa gay, e eu esperava — e desejava — ser acolhida e respeitada naquele lugar.

Mais uma vez, encontrei apoio e suporte nas amigas. Sentia haver perdido um pouco da estrutura para enfrentar a vida. E um câncer também nos fragiliza.

Mas a cirurgia foi a gota d’água de felicidade para mim. Eu me sentia em paz comigo, até mesmo sexualmente. Encontrei uma pessoa, aproveitei a nossa relação e logo em seguida descobri outro câncer, agora na tireoide.

Dessa vez, foi menos intenso. Até porque, por algum motivo, o médico disse que as minhas cordas vocais estavam limpas e que já não era mais um câncer. Retirei a tireoide e segui trabalhando como cabeleireira.

O início da pandemia

Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia de Covid-19, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.

Muitas pessoas indicavam o meu trabalho como profissional de beleza: “Dicca, vem fazer uma escova”, “Dicca, vem me maquiar”, e, claro, eu ia e fazia preços mais baratos.

Durante a pandemia eu perdi duas irmãs, mas não por Covid-19.

Uma, logo no início, que estava lutando contra um câncer, e outra por um infarto fulminante. Com a perda de minhas irmãs, perdi também o equilíbrio. Porque a família é a base da gente – isso é uma verdade.

Por mais que eles tenham nos renunciados, nós nutrimos amor, de alguma forma, por essas pessoas. Por isso dói tanto. A irmã que ficou comigo, dependia muito de mim. Eu fiquei muito para baixo.

A vulnerabilidade causada pela pandemia

Foi quando fui salva por minhas amizades outra vez. Fomos nos apoiando e encontrando formas de ajudar umas as outras. E eu não tenho vergonha de pedir. Chegou um momento em que eu não tinha dinheiro nenhum.

Estava morando em um apartamento próprio, mas precisava pagar condomínio, contas de luz; precisava do básico: tomar banho, escovar os dentes, tomar os remédios para o estômago, tireoide e pressão.

Cabeleireira, com 60 anos, nunca tive carteira assinada e não recebo nenhuma assistência de serviço social.

Sempre fui militante, porque toda trans é militante. Quando ela dá a cara para a sociedade, ela está militando. Eu só não cheguei ao extremo de uma tristeza profunda — para não dizer “depressão”, pois não gosto dessa palavra — devido às pessoas que conheciam a minha história e me acolheram.

Buscamos por esperança e pelo fim da pandemia

O fim da pandemia não é tão esperançoso. Os contextos e dificuldades só se agravaram. Tenho muitas limitações. Apesar de tudo, eu sou uma pessoa feliz. Meu sonho é conseguir uma aposentadoria ou auxílio que me possibilite descansar, sabendo que terei, pelo menos, o básico para me manter.

Eu não tenho mais condição de ir para as ruas. Não condições físicas, pois, mesmo com a minha idade, ainda tenho um corpo bonito e poderia colocar um vestidinho preto para me prostituir. Isso ainda acontece vez ou outra. Mas não tenho mais estrutura para isso.

Nós realmente precisamos aprender a amar e valorizar os amigos.

Mais do que com palavras. Com atitudes reais. Estender a mão antes de alguém “cair no buraco”.

Na pandemia, eu aprendi a falar a palavra “amor”, mas, muito mais, viver ela. Amar é um sentimento nobre.

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40 a 59 anos Bahia Branca Ensino Médio Completo Mulher Trans

Nós, mulheres travestis, juntas, temos força

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Chamo-me Ranella Marcia, tenho 50 anos, sou virginiana, moro na Pituba (BA) e sou casada há 26 anos.

Meu histórico de vida é de muita luta.

Orgulho-me de ter superado a expectativa de vida de uma travesti, que neste país é de 35 anos. De ter superado, também, a marginalização que nos nega o amor e a relação estável.

A luta de uma travesti por respeito

Sempre fui muito “para frente”. Sempre me entendi como travesti, mesmo sem saber direito o que significava.

Fui muito criticada por “não ter limites” e mostrar quem era. Esperei um tempo para me tornar a mulher que eu queria em respeito a minha avó.

Eu me identificava muito com revistas. Fazia diversos recortes — adorava recortar imagens de bonecas de biquíni, roupas e fazer colagens. Minha avó nem sequer me deixava chegar na cozinha, pois não era “coisa de homem” — os papéis eram muito bem definidos.

Quando ela se foi, em 1994, eu “explodi”. Conheci meu marido nessa época. Eu sabia que gostava de homem.

Logo, me reconhecia como uma mulher heterossexual. Hoje, me considero bi, porque entendi que o que importa é o prazer, independente de quem seja.

Processos de se reconhecer como travesti

Por um tempo, quando morei em Cajazeiras, tive uma vivência de gay afeminada, bem louca, o que chamam hoje de “lacradora”. Tanto que era conhecida como “Xuxa da Cajazeira 8”.

 Isso porque, antes, só se considerava como travesti as pessoas que tinham uma estética realmente feminina, com cabelo grande, silicone e seios. Estudei a troncos e barrancos, porque sofria bullying e agressão. E não era só agressão verbal, mas física. Mesmo assim, sempre fui uma liderança no colégio. Fazia parte do teatro e jogava futebol — isso fazia com que eu conseguisse fazer amizades.

Já no segundo grau, comecei a ter problemas com o uso do banheiro. Além disso, comecei na prostituição. Por diversas vezes, após assistir às aulas, troquei a farda pela “roupa de puta” dentro próprio colégio e fui para as ruas da Pituba.

Quando estagiei nos Correios fui muito discriminada.

Foram idas e vindas pelo período de dois anos. Após conhecer o homem que hoje é meu marido. Fomos morar no Centro e eu parei de estudar. As idas e vindas também foram uma constante quando morei na Itália.

Ao retornar definitivamente, participei de um curso na área de Administração. Lá, questionei: “o curso já temos, e o emprego?”. Como resposta, questionaram a minha formação: “como vocês querem emprego se vocês não estudam?”. Foi nesse momento que decidi retomar os estudos e concluir o segundo grau. Após ocorrido o, me coloquei como uma liderança.

Fui a primeira travesti a ter o nome social na caderneta da escola.

Foi quando enfrentei uma professora que me chamava pelo nome de registro.

Exigi que ela me chamasse pelo nome que escolhi e fui apoiada por todos os colegas da turma, que ameaçaram deixar a professora dando aula sozinha caso ela não mudasse a conduta.

 Ali, também, eu percebi como poderia me articular. Aquele apoio foi muito importante. Isso me formou como alguém que, hoje, é ativista pelos direitos da comunidade trans, que luta por si, mas também, por tantas outras iguais.

Ajudei algumas meninas travestis durante a pandemia

Consegui viver bem durante a pandemia devido ao aluguel casas. O que precisei fazer foi negociar reajustes com meus inquilinos, diminuindo os preços e fazendo acordos. Houve mudanças no acolhimento das travestis que moram em meus imóveis também, dando preferência àquelas que não trabalhavam na rua, mas que atendiam em domicílio os clientes.

Tudo isso, para a segurança delas, e também, pelo meu marido, que faz parte do grupo de risco.

O fato de não pagar aluguel e ter renda foi muito importante para mim. Além disso, eu sou muito organizada. Todos os gastos são bem regrados, sempre deixo uma reserva.

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Meu marido é um grande parceiro. Ele que resolve as coisas para mim, inclusive burocracias e finanças. Eu realmente não sei como eu conseguiria lidar com a perda dele. Antes da pandemia eu costumava viajar muito. Com o lockdown, fiquei mais em casa, e pude aproveitar a companhia do meu marido. Também pude curtir e observar o crescimento dos meus animais de estimação. Coisas simples e importantes que me fizeram bem.

Tranquilizei-me muito com a vacinação. A maior parte da minha vida acontece fora de casa. Assim que meu marido tomou a dose única, me senti à vontade para retornar às ruas.

A Covid-19 tirou de mim três grandes amigas

Em muitos momentos, me arrependia de agir por impulso, mas, depois de 2 meses de quarentena, eu já não aguentava mais ficar trancada em casa sem ter o que fazer. Cozinhava, limpava a casa e já não havia com o que me distrair.

Uma das coisas que mais senti falta foi da presença das minhas amigas, que assumem o comando da minha casa quando me visitam – tiram a MPB, que costumo ouvir, e põem lambada enquanto bebemos cerveja.

As pouquíssimas pessoas que foram à minha casa durante a quarentena. Todos seguiam rigorosamente os protocolos de segurança, como, por exemplo, numa comemoração pequena de aniversário que fiz.

Perdi três amigas maravilhosas para à Covid-19. Nesse tempo, por outro motivo, também perdi Vida Bruno, que morou comigo durante a pandemia. Um amigo para todas as horas, momentos e empreitadas.

Estávamos planejando projetos para ajudar pessoas trans, público para o qual ele tinha uma sensibilidade fora do comum. Nesse período caótico, eu enxerguei a força que nós temos.

A batalha das travestis por respeito e dignidade

Vivemos com muito medo de transfobia, ouvimos palavras que nos rebaixam e reduzem a nada, mas a verdade é que resistimos e nos suportamos em meio a essa crise sanitária — que afetou tantos outros setores.

Eu consegui abrir portas para muitas, e outras vieram juntas, abraçando e fortalecendo o movimento. Eu entendi que nós temos, sim, poder, e assumimos esse poder que descobrimos em nós.

Podemos tudo!

Podemos e vamos crescer e ocupar lugares cada vez maiores.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Prta

“Será que pensam que, por ter HIV, não tenho capacidade?”

Chamo-me Marcia Moreira e gosto de ser chamada assim. Tenho 42 anos. Vivo com HIV desde 1999. Descobri durante a gravidez do meu segundo filho. Quando eu tive o diagnóstico, o meu primogênito já tinha 3 anos. Eu tinha 23 anos, ainda morava com meus pais e trabalhava em uma grande rede de supermercados.

Estava há 5 anos na empresa e trabalhava bastante — nunca tirei férias. Quando recebi o resultado do exame, eu nem sequer fazia ideia do que era o HIV. Eu só “sabia” que qualquer pessoa poderia se infectar, menos eu.

Tive um namorado, aos 17 anos, com quem perdi a minha virgindade e de quem eu adquiri o vírus. Ele era usuário de drogas injetáveis e sempre dizia que não faria o teste para HIV, porque ele sabia das altas possibilidades de ter, — não só pelo uso de drogas, mas por práticas sexuais deliberadas — e temia por isso.

Vivendo com HIV

Quando descobri minha sorologia, não entrei em contato com ele, pois fui informada de que ele não morava mais em Salvador. Depois dele, só mantive relações com o pai do meu primeiro filho, a quem procurei — tanto ele quanto o meu primogênito, são HIV negativo.

Busquei, também, o pai do meu segundo filho, que algumas pessoas afirmam ser positivo, no entanto, ele nunca me informou o seu diagnóstico. Meu filho mais novo, também é HIV negativo. Ao conversar com um médico, que acompanhava o meu tratamento, em dois dias ele conseguiu pôr muita informação em minha cabeça, e isso mudou toda a minha perspectiva.

Eu e meu filho fomos como um objeto de estudo para o Hospital das Clínicas, porque os processos ainda eram muito novos. É necessário falar sobre a gravidez de mulheres soropositivas, principalmente porque a desinformação faz parecer impossível. Eu mesma, fui induzida a fazer uma laqueadura logo um mês após o parto.

Uma violência que naquela época eu nem sequer percebia ou entendia. Outro momento difícil fazer e refazer os exames. Com a entrega dos resultados, o hospital inteiro olhava-me com estranheza, como uma plateia, assistindo-me receber o diagnóstico — que era o primeiro dado pelo médico a uma mulher.

Liguei para minha mãe e meu irmão me buscarem. Chorei muito, desmaiei. Ali eu constatei a quão problemática e falha era a questão do sigilo. Meus exames estavam bons, inclusive a carga viral estava controlada. Eu estava — e permaneci — muito deprimida.

O estigma sobre o HIV

Esperaram eu terminar o tempo de estabilidade, e, como eu colocara muitos atestados do CEDAP — que na época se chamava CREAIDS — sofri o estigma. A propósito, a mudança de nome para CEDAP foi uma luta do Gapa, no sentido de assegurar às pessoas assistência às vítimas de discriminação em sigilo, — garantido por lei — porque todo mundo que acessava aquele serviço era estigmatizado como alguém que tinha AIDS — ainda que não tivesse.

O momento em que eu fui demitida foi um dos piores da minha vida. Eu senti que, por ter HIV, eu era inútil.

Aquilo me fez tão mal. Fiquei mais deprimida do que qualquer coisa.

Eu tinha muitas expectativas, mas aquilo me frustrou. Até que, numa visita ao ginecologista, conheci uma mulher cujo filho nascera no mesmo dia que o meu, e que também era HIV positivo.

Ele me falou que o Gapa operava uma brinquedoteca no Centro Médico João das Botas. Lá, conheci um grupo de pessoas que vivem com HIV. Aquilo me cativou.

Fez-se abrir um novo mundo para mim. Ao conversar com a coordenadora, Gladys, em menos de duas horas ela me fez entender que eu era alguém que podia viver dignamente. Passei a integrar o Gapa, primeiro, pela brinquedoteca, e depois, como secretária.

Pandemia, HIV e vulnerabilidade social

À época, estávamos desenvolvendo um novo projeto de pesquisa quando, começamos a ter informações sobre o início da pandemia, ainda fora do país.

E a pandemia chegou abruptamente. Já trabalhávamos com PVH, que estavam com o benefício cessado, devido à gestão do atual presidente, que implicou em diversos cortes.

 Atendemos diversas pessoas em crises financeiras, que não tinham alimento em casa. Iniciamos as campanhas para ajudar essas famílias, arrecadando principalmente comida.

Este trabalho era realizado, mas as doações que conseguimos nesses tempos, já não eram como antes — vinham em menor quantidade. Houve fases muito difíceis. Até que, recebemos a notícia do falecimento de uma pessoa muito querida.

Diversos amigos foram morrendo, e nem todos eram por Covid-19, o que também nos impactou muito. Um de nossos coordenadores, uma pessoa muito saudável, adoecera drasticamente, a ponto de ficar em coma.  Nós não entendíamos e pensávamos: “se ele ficou dessa maneira, então, nós vamos morrer”. Isso nos causou pânico.

Ele conseguiu se recuperar, mas ainda com algumas limitações. De um dia para o outro, no trabalho, a ordem era: “vão para a casa agora, vocês não podem ficar aqui”, — eu perguntava — “como assim?”.

A ordem se repetia

Retornei à casa e passei 1 anos e 3 meses sem sair. Passamos por diversos acontecimentos.

As pessoas ao redor tentavam me proteger e pediam para eu tomar cuidado. Fiquei administrando doações de alimentos entre pessoas e seguindo à risca os protocolos de higienização.

Durante a quarentena, comecei morando numa casa que meu pai me deu, uma ‘kitnet’. Estava morando lá com o meu marido. Meu filho mais velho já é casado e tem um filho. Já o mais novo, estava morando com meus pais e minha irmã. Como minha irmã engravidou — pariu em janeiro — meu filho ajudava nos cuidados com os meus pais, mais idosos.

Já no mês de abril, minha mãe me deu uma casa com dois quartos, e, com a casa, meu filho veio morar comigo também. Ele se mudou já com a namorada, que passava mais tempo lá em casa do que na casa dela.

Após comprar uma moto, ele sofreu uma queda e machucou o punho. Agora, eu tinha mais essa demanda além do trabalho. Sendo que eu já achava ruim trabalhar em casa, com tantas reuniões e a dificuldade de concentração.

“Eu cozinhei péssimas comidas”.

Comi muita besteira, muito ‘fastfood’. Quase sempre inventavam algo, não tínhamos hora para dormir com tantas lives e bebidas que nunca terminavam — principalmente aos finais de semana.

Minhas tias me veem como uma potência. Destacam o meu otimismo e a forma como lido com a vida. Achavam que eu ficaria “apagada” depois de tudo que enfrentei, mas superei as inúmeras dificuldades.

Quando aconteceu o lockdown, meu filho e minha nora se infectaram com Covid-19. Corri todos os riscos possíveis e imagináveis cuidando deles. Eu fiquei muito tensa, porque nossa maior preocupação era com os meus pais.

Nós falávamos demais por ligações de vídeo e áudio. Chorávamos e, depois, chegávamos a evitar as ligações de tão melancólicas que se tornaram.

Todos muito sensíveis.

Seguia dizendo que iria dar tudo certo. E após todo esse tormento, cheguei a ganhar mais uma neta — do meu caçula.

Eu vi o parto dela, mas mantivemos à distância e os cuidados necessários. Isso foi uma felicidade — um nascimento em meio à tantas mortes. Eu sinto uma desaceleração e uma sensação de alívio, principalmente porque, após tanta agonia, eu tive um episódio de alta pressão arterial — marcando 23 por 12.

Fui internada e descobri um pseudo tumor na cabeça, — uma pressão intracraniana que me causa fortes dores de cabeça.

Uma Mulher-Maravilha

Sinto os sintomas de alguém que tem um tumor, porém, sem o tumor. Estou passando pelo processo de diagnóstico e tratamento. Por fim, esse período todo me fez perceber e entender que eu sou uma mulher muito forte — sou quase uma Mulher-Maravilha.

Depois de tudo que eu passei até hoje, eu posso afirmar que sou, sim, uma mulher forte.

E eu espero que as pessoas consigam se curar. Todos nós, sobreviventes, estamos tentando nos curar de algo, de alguma dor.

Eu espero que todos consigam se curar.

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60 anos ou mais Bahia Ensino Fundamental Completo Mulher Cis Parda

Perdi muita gente durante a pandemia

Perdi muita gente durante a pandemia. Tiveram duas pessoas que me fazem muita falta. Uma delas foi uma grande companheira de caminhada, que lutava comigo há muitos anos.

Chamo-me Rosária, nasci no Uruguai, mas moro no Brasil há 34 anos.

 Sou uma das filhas de um casal que gerou 11 mulheres. Casei-me, tive 3 filhas e saí do meu país devido à violência doméstica em meu matrimônio.

Meu marido era um homem muito forte, da Marinha, e muito violento, de modo que ninguém conseguia contê-lo ou mudar a situação. O pior momento, que me fez decidir vir de vez para o Brasil, foi quando fugi para a casa dos meus pais e, ao saber que meu marido estava a caminho da casa deles para me buscar, fugi com as minhas filhas — que eu levava sempre para todo lugar.

A fuga para o Brasil

Ao chegar na casa dos meus pais e não me encontrar, ele bateu nos meus pais. Depois, ele foi até a casa desses amigos, que tinha apenas uma porta, pela qual eu não poderia fugir. Saímos pelas janelas, usando cordões de sandálias que amarramos para descermos.

Depois desse acontecimento, prometi a mim mesma que jamais permitiria que algo como aquilo, acontecesse de novo.

Conheci alguém que gostava muito de mim, com quem entrei em contato, e que me apoiou, me trazendo para o Rio Grande do Sul, no Brasil.

Após 21 anos, voltei ao Uruguai e, mais tarde, retornando ao Brasil, descobri que esse outro companheiro também era violento.

Foi na Bahia que eu realmente soube quem era ele — que sempre ia e voltava para o Uruguai. Ele não trabalhava, eu não trabalhava, mas na minha casa sempre tinha tudo do bom e do melhor.

Ele me dizia ter uma transportadora de frutas, e eu acreditava. Quando ele ficou internado, no Rio Grande do Sul, fui ao encontro dele e descobri que ele era um assaltante de bancos muito perigoso — tanto no Brasil, quanto no Uruguai. Ele foi preso, e eu, que fiquei com muito dinheiro, sempre o visitava.

Uma mulher corajosa

Mas chegou um momento que o dinheiro acabou, as viagens de visitação cessaram, e ele disse não querer mais  saber de mim. Então, me vi liberta. Eu e minha filhas fomos vivendo e construindo nossas vidas.

Ao saber que alguém estava me procurando e oferecendo 50 reais — muito dinheiro na época — para quem me encontrasse, fui para Sergipe, onde passei 3 anos e voltei. Apaixonei-me por um baiano, com quem tive uma filha. Vivemos juntos por 12 anos.

Ele enfrentava o racismo de forma muito séria. Ajudei ele, que era usuário de drogas, mas, mesmo assim, ele ficou muito doente.

Teve diarreia, manchas pelo corpo, e diagnosticado com AIDS. Fiquei firme com ele, por 3 meses. No hospital, assistia palestras e recebia informações sobre HIV/AIDS, mas os grupos de risco que eles apresentavam — usuários de drogas, prostitutas, homossexuais — não se enquadravam no meu perfil. Por isso, fiquei tranquila. Mas, após uma médica conversar comigo, me dei conta de que eu poderia, sim, ter sido infectada, e, ainda, ter transmitido às minhas filhas e netas, pelo leite materno.

Elas não foram infectadas, mas eu recebi o resultado positivo para HIV. Meu mundo caiu, eu pensava que morreria a qualquer momento. Fui para o enterro do meu companheiro e não pude mais entrar em casa. Foi aí que encontrei o Gapa. Eu pensava “nunca mais ninguém vai me abraçar, me beijar ou chegar perto de mim”. Mas fui abraçada pelo Gapa, e minha vida mudou.

A rotina antes da pandemia

Passei a estudar, me informar, capacitar e a me engajar no ativismo.

O Gapa se tornou essencial na minha vida, em todas as áreas: emocionais, profissionais, relacionais.

Tenho problemas cardíacos, como “pré-infartos”, e minha filha passou a ser a minha companheira, cuidar de mim.

Antes da pandemia, eu trabalhava no Balcão de Justiça como mediadora de conflitos. Fazia, também, faxinas. Além disso, congelava alimentos para os clientes, na casa dela. Trabalhava quatro vezes por semana, ganhando 100 reais por visita.

Eu tinha um bom salário. E, nessa altura, chega à pandemia.

A pandemia desnudou os abismos sociais

Eu, como representante estadual da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP), me pus à disposição, com outras pessoas do ativismo, para articular estratégias para que a pandemia não afetasse o PVH, — principalmente com a retirada de medicamentos.

Queríamos, por exemplo, que todas as pessoas que tivessem a carga viral indetectável e o CD4 estável, recebessem medicação suficiente para 3 meses, para evitar que saíssem de casa.

É muito difícil falar apenas sobre mim, pois, a minha experiência é pensada sempre de forma coletiva, seja pela minha família ou pelo ativismo. Eu me doo.

Recebi muitas ligações e isso me incomodou porque, diante das limitações, eu não conseguia atender como atendia antes. Eu constatava o desespero das pessoas, a vontade de suicídio das pessoas, a falta de alimento e suporte.

A partir disso, eu me retirei de todos os grupos de movimentos que participava, e fiquei apenas me dedicando ao Gapa e a Rede de Comunidade Saudável.

Tivemos muitos problemas, mas, mesmo assim, ajudamos as pessoas a fazerem o recadastramento do SUS e a inscrição para o Auxílio Emergencial.

Nunca tive medo de morrer. Saí de uma reunião, entrei em casa, e passei um ano e meio sem sair — ninguém entrava lá também. Minha filha era quem fazia minhas compras e pegava a minha medicação.

O pavor da pandemia

Eu me preocupava muito com uma outra filha que mora comigo, pois ela tem escoliose, de modo que o osso da coluna pressiona o pulmão e, com esse problema respiratório, ela fazia parte do grupo de risco.

Assim como eu, devido ao problema cardíaco. Contudo, eu nem lembrava de mim, só pensava nela. Tudo que chegava em casa era deixado na porta, eu recolhia tomando todos os cuidados, usando muito álcool e depois lavava.

Após ter tomado às duas doses da vacina, fui diagnosticada com Covid-19. Busquei acompanhamento médico, fiquei internada no Couto Maia e, enquanto eu estava lá, soube que a minha filha também havia testado positivo para o coronavírus.

Não faço ideia de como isso pode ter acontecido, diante de tantos cuidados tomados.

A minha felicidade é estar viva, e ver muitas das pessoas que conseguimos ajudar, vivas também.

Aprendi a ter fé e a acreditar mais em mim, porque, antes desse momento difícil, eu não acreditava muito em mim.

 Mas, hoje, eu acredito, e sei que tenho forças para fazer muita coisa.