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Homem Cis Rio de Janeiro

“A pandemia nos trouxe uma solidariedade que estava estocada em algum lugar”

Eu já fui do escritório para o home office. Desde 15 de março é em home office que nós estamos trabalhando. E tem funcionado. Graças a Deus essa questão do trabalho não é um problema.

No início, eu fiquei com muito receio. Muito medo. Muito medo. Mas, depois, acho que… talvez eu tenha me acostumado. Me centrado mais, meditado mais. Então, fui me acalmando. O medo ainda existe para me trazer cautela, mas a fobia grande já passou.

Catadores do Bem

O projeto social Catadores do Bem começou em 2012, ali de forma bem tímida, entre amigos que reuniam verba de outros amigos para comprar cestas básicas. Nosso público, nosso pessoal, nossos assistidos, sempre foram catadores de material reciclável. Então a gente quis trazer para os catadores aqui do nosso bairro – Irajá, zona norte, subúrbio do Rio de Janeiro – uma visibilidade maior.

“Como assim você só quer me entregar uma cesta básica?”

Nós sempre os víamos catando, ali pela manhã, em dia de coleta de lixo, e íamos até eles oferecendo cesta básica. No início foi muito difícil, porque eles tinham muitas suspeitas: “como assim você só quer me entregar uma cesta básica?”, “você tem algum partido político?”, “precisa do meu CPF, RG?”. “Não preciso de nada, só vou te entregar esse papelzinho aqui, que é uma senha, e no dia tal você aparece naquele endereço que você vai ganhar uma cesta básica”.

E ao longo dos anos a gente foi criando vários vínculos, afetivos mesmo, com esses trabalhadores, e a gente foi aumentando. Lá no início a gente conseguia, sei lá, dez cestas básicas. Hoje nós atendemos 90 famílias. Esse “bum” aconteceu há uns dois, três anos atrás. A gente começou a se organizar melhor. Acho que na época a gente assistia vinte famílias. E falamos: vamos organizar isso aqui. Aí a gente se mobilizou para ter mais voluntários. Hoje a gente tem trinta voluntários por evento. Já chegou a cinquenta voluntários. Um grupo de mobilização online. Tem um site bem específico para voluntariado, que é o Atados, eles nos ajudam. A gente oferece uma vaga: “ó, a gente precisa de voluntário para essa ação, em tal lugar”. E alguém lá se inscreve e participa do projeto.

Solidariedade muito além das cestas básicas

Além das cestas básicas, que é o pilar da nossa organização, a gente oferece materiais de segurança de trabalho – capacete, luva, corda -, damos carrinhos para eles conseguirem coletar e armazenar melhor os produtos que vão coletando. A gente trás também para eles, além da visibilidade, um reconhecimento.

A gente descobriu, através de pesquisa, que os catadores de material reciclável – que a gente vê pelas ruas de toda a cidade – são responsáveis por 90% da coleta de material reciclável do Brasil. Eles são agentes ambientais totalmente desvalorizados.

E são famílias muito humildes, muitas que criaram seus filhos, seus netos na coleta. E que pela primeira vez estão sendo reconhecidos. Pela primeira vez estão sendo vistos como trabalhadores, como pessoas responsáveis. São autônomos, estão ali produzindo sua renda.

Além disso, a gente também faz encaminhamento para a pessoa tirar certidão, identidade, CPF, depois leva para o Bolsa Família, fazer cadastro. Sempre tentando levantar aquela família. A gente dá cesta básica porque a gente entende que a renda que eles tinham acabado de produzir ainda é muito curta, também por causa do preço, que é muito desvalorizado, então a gente dá esse complemento.

A gente quer que eles tenham o direito assegurado, que é o Bolsa Família. E é incrível que até hoje a gente encontra famílias que não têm o Bolsa Família.

No centro do Rio de Janeiro, que é uma cidade grande, capital, e ainda tem gente sem RG, CPF. A gente vai lá e ajuda, aí eles tiram. As crianças precisam estar na escola, então os pais dão atestado de que estão na escola, lá da Secretaria direitinho. É uma exigência nossa, e isso vai trazendo mais senso de responsabilidade para eles também.

Credibilidade

A gente conseguiu, mesmo sendo um projeto social em que você precisa fazer o depósito em uma conta que é um CPF, uma pessoa física, a credibilidade das pessoas cresceu muito com o nosso projeto. Muito, muito, muito.

Eu posso dizer que em oito anos é a primeira vez, agora, mês passado, que a gente conseguiu o apoio de uma empresa, que deu para a gente 314 cestas básicas. Isso foi um marco para a nossa história.

Eu, que sou o Caio, sou fundador do projeto e sou administrador. Eu trabalho com administração de empresas. Então para eu estar no projeto faço questão de ter transparência financeira. “Olha, esse é o nosso extrato bancário. Isso é o que aconteceu na nossa conta. O que saiu, o que entrou, é isso”. E isso fica disponível para todo mundo responder, palpitar. Que afinal a gente também não pode esquecer que é pessoa física.

Acho que até agosto isso muda, do papel de ONG, já crescemos muito, muito, muito, precisamos realmente criar um novo formato, mais profissional, mais maduro, até para que a gente consiga ter mais ajuda de empresas.

Café da manhã, gincana, oficina

Um evento que a gente faz sempre no segundo sábado do mês acontece da seguinte forma: a gente recebe os cadastrados e eles participam do café da manhã. Normalmente tem…tinha, antes da pandemia, uma gincana de empatia, de entrosamento, de voluntários, em que as pessoas assistidas tinham oficina de penteados afro, para as mulheres, os homens, se sentirem belos, se identificarem como belos mesmo, aumentar a auto estima. Oficina para crianças, para pais ficarem à vontade lá. E ao fim desse evento, que dura a manhã toda, os voluntários chegavam oito horas da manhã e vão sair uma hora da tarde. E no tempo ocorrem oficinas. Ocorriam…antes da pandemia. Isso motivou muito.

Durante a pandemia, a gente precisou mudar o formato da gincana. Se não me engano, nossa oficina foi dia 14 de março, então a gente ainda tinha acabado de entrar ali, mas aconteceu – talvez por não saber exatamente o que era aquilo – acabou acontecendo. Em abril, nós já dispensamos o café da manhã e as oficinas. Nos concentramos apenas em fazer o cadastro, revisar os dados das pessoas e entregar cestas básicas. E desde então tem sido apenas isso. Sem café da manhã. Para diminuir também o número de voluntários. A gente ainda precisa deles, mas conseguiu reduzir bastante o número de voluntários participando.

Reduziram o quilo do plástico em 50%

Em abril, eram 60 famílias. Por causa da pandemia, a gente aumentou para 90 famílias. Porque eles ficaram sem renda. Os ferro velhos estavam fechados. Os pouquíssimos que abriram reduziram o quilo do plástico em 50%. E foi só diminuindo, diminuindo. Um valor que já é muito precário foi reduzindo ainda mais.

Agora em julho a gente conseguiu dar duas cestas básicas por família. Conseguimos apoio, além de duas cestas básicas, para dar um vale alimentação, para eles irem no mercado, para eles terem autonomia de comprar o que quiser no mercado. Biscoito para criança, leite, bolo, terem essa oportunidade também, não só ficar recebendo cesta básica, eles poderem escolher. E também estamos com um projeto para em setembro entregar um cartão de renda mínima, que a gente conseguiu com o projeto Pimp My Carroça, Cataki, que também apoiam trabalhadores autônomos catadores de material reciclável. Então vai ser um cartão de R$650, acho que 67 famílias foram aprovadas para receber. Para receber foi uma triagem muito grande.

A gente faz hoje parceria com ferros velhos. Os ferros velhos indicam pessoas, seu José, dona Maria, eles vendem aqui, de fato eles são catadores. Porque ainda mais em tempos de pandemia, muita gente desempregada, muita gente realmente necessitada, se fazia passar por catador. E como a gente é muito pequeno, não somos nem uma ONG, somos um projeto de amigos ainda, a gente se concentra em catadores. Nós queremos atender catadores. Não podemos ainda talvez salvar todo mundo. Então a gente foca ali nos catadores, talvez a grande parte esteja com a gente desde o início, isso é muito significativo para a gente.

“Olha, eu não preciso mais da cesta básica, posso abrir minha vaga para alguém”

É muito bacana quando uma pessoa consegue emprego, por exemplo, e ela vem até a gente e fala “olha, eu não preciso mais da cesta básica, posso abrir minha vaga para alguém, consegui um emprego bacana, qualquer coisa, se eu precisar voltar eu volto, tudo bem”. Eles têm esse senso de importância, sabem a dificuldade que é para dar todo mês o valor necessário.

É no sábado, né, e na sexta-feira à noite a gente teme não bater, mas a gente sempre bate. Nem que seja sábado de manhã aparece algum dinheiro, bate. Para render mais o dinheiro, a gente não compra cesta básica pronta. A gente vai no Atacadão, vai no mercado de atacado, compra produtos para a nossa cesta, até porque a nossa cesta é muito diferenciada, vai ter absorvente para as mulheres, vai ter produto de higiene, hoje vai ter detergente, vai ter água sanitária, justamente para conscientizar sobre a limpeza na pandemia.

A gente percebe muita preocupação dos catadores. Todos – podemos dizer que moram em comunidades, em favelas do Rio de Janeiro – têm a preocupação, mas não entendem total o perigo que está acontecendo. Mas desde abril nós entregamos máscara para eles, então em abril receberam, maio receberam, junho receberam. Para que possam não ter só uma, que possam limpar, trocar, dar para alguém, dar para um filho, a família toda utilizar. Isso é um projeto de educação mesmo, a gente está tentando passar para eles, alertar para eles.

Mesmo sem os eventos, a gente está ali

Está todo mundo com muita saudade dos eventos que aconteciam, da alegria que acontecia. Em junho teria nosso arraia, que é uma baita festa, aluga cadeira, mesa. É uma alegria sem fim. Não vai acontecer, infelizmente. Festa de dia das mães, dia dos pais, que foram inviabilizadas pela pandemia. Mas a gente está ali.

É legal que eles percebem a nossa persistência. A gente está aqui, com voluntários, correndo risco junto com vocês. A gente faz questão de estar aqui, todo mundo se cuidar, todo mundo vir de máscara, para participar aqui é necessário estar de máscara. E acredito que a gente seja muito valorizado por eles. É um afeto, realmente um afeto, que circula ali no nosso meio. E é extremamente cativante. Os voluntários vem e ficam no projeto. A rotatividade de voluntários não é grande, isso é um sinalizador muito bacana. Alguns voluntários de mais idade não puderam participar durante esse processo de pandemia, então os mais jovens estão com a gente nessa força tarefa.

Solidariedade em dias de pandemia

Está sendo tudo diferente do que a gente planejou para este ano, mas, ao mesmo tempo, a gente conseguiu saltar de 60 para 90 famílias. Tudo isso porque a gente ficou com muito medo. “Cara, será que a renda vai diminuir?”, “Tem muita gente perdendo emprego”, “Tem muita gente sendo prejudicada, de verdade”.

Mas aconteceu totalmente o contrário. Isso eu escuto dos nossos parceiros: a solidariedade em dias de pandemia aconteceu muito e os projetos puderam crescer. As famílias que perderam emprego, e algumas que já tinham sido catadoras voltaram a ser catadoras para manter se manter. E puderam ser assistidas pelo projeto. Justamente porque a solidariedade aumentou, a arrecadação aumentou.

Fomento empresarial à solidariedade

A ajuda que as empresas nos deram agora em julho foi fundamental. A gente conseguiu dar duas cestas básicas para os nossos catadores, conseguiu dar renda que eu falei. E nós distribuímos para outros projetos. “Isso já está suficiente. O que a gente faz com isso? Quem está precisando? Quem são nossos parceiros? Há pessoas que fazem um projeto parecido com o nosso e são de confiança?”. Nós conseguimos dar 110 cestas básicas. Isso para mim é emocionante demais. A gente conseguiu fazer muito pelo projeto que eu participo, e ainda fazer muito pelo outro projeto do outro.

Como falei, até março, eu sei o que é juntar dinheiro para 110 cestas básicas. É muito dinheiro: a gente está falando de uns 4 ou 5 mil reais. Uma cesta básica da nossa qualidade, né. Porque no nosso projeto de julho nós recebemos cestas básicas, mas não tinha por exemplo itens de higiene, absorvente, que é fundamental para as mulheres, não tinha fralda, que a gente dá todo mês para as mães, item de higiene, limpeza. Então, com o dinheiro que a gente conseguiu, nós fomos lá e complementamos para que a cesta não diminua o padrão. Nós temos um padrão altíssimo de qualidade, vamos manter esse padrão.

Pós-pandemia?

O pós-pandemia ainda é uma incógnita para mim, tenho muitas suspeitas. Mas, o que eu posso observar, e quero defender, é que a pandemia nos trouxe uma solidariedade que estava estocada em algum lugar.

Por que esse dinheiro não aconteceu antes? Por que os voluntários não chegaram antes? “Então, no pós pandemia, por favor, não vai embora, que a gente vai continuar precisando de vocês”. Porque a gente não quer sair de 90 e voltar para 60 famílias. E essas 30, vão para onde? Vão fazer o que? Então é uma coisa que eu quero muito focar no projeto, que isso se mantenha.

Nós somos capazes de ser mais solidários. Nós estamos comprovando isso. Os projetos parceiros estão comprovando isso. Mesmo com toda a crise econômica que encostou em todo mundo de alguma forma, a solidariedade aumentou.

Higiene

Acho que no pós pandemia a noção de higiene vai ficar mais apurada, vai ficar mais aguçada. Então, por exemplo, água sanitária, detergente na minha cesta, não quero mais tirar. Não sei como a gente vai pagar isso, mas não quero mais tirar.

E a gente vai aprendendo muito de pouquinho em pouquinho também. Há uns dois, três anos atrás, falaram, uma mulher pediu “será que vocês podem dar absorvente?”. Falei, caramba, lógico que a gente tem que dar absorvente. Há quatro anos não tinha café da manhã. Aí a gente estava na dinâmica do cadastro, de dar a cesta, e uma mulher falou: “preciso ir embora, não como desde ontem, então não estou me sentido bem, preciso ir embora comer alguma coisa”. Cara, se a gente quer que eles fiquem aqui felizes, a gente precisa dar café da manhã para eles, óbvio. Mas passou a ser óbvio naquele momento. A gente aprendeu com eles e desde então nunca mais largou isso.

Saúde

E acho que a valorização da saúde também vai ficar muito marcante no pós pandemia, acho que eles vão valorizar muito mais quando a gente entregar luva para eles, bota de proteção para eles, porque o cuidado com o corpo, a consciência do corpo pode estar mais aguçada. Isso é uma resistência que eles têm muito grande. Queriam só o carrinho, e desvalorizavam itens de segurança. Mas agora, com o medo que eles estão, mesmo não tendo talvez a noção total, eu acredito que vão valorizar isso.

Então para mim são esses dois pontos: a valorização da saúde por parte dos catadores e uma vontade de colaborar, ser voluntário, ajudar projetos que você confie por parte toda a sociedade.

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40 a 59 anos Homem Cis Parda Pós-Graduação Completa Rio de Janeiro

“Como professor de uma escola pública, pude perceber como as aulas remotas serviram para aumentar ainda mais as distâncias sociais”

Inicialmente, a instauração da pandemia trouxe algumas mudanças em meu estado emocional. Fez também com que eu tivesse que me adaptar à nova ordem mundial, instituída pela Organização Mundial de Saúde

Além de lidar com as mudanças que surgiram e com as emoções provenientes desse momento, percebi alterações comportamentais em meus filhos, que perderam o convívio com colegas de escola e aspectos da rotina, como saídas de casa para passeios e viagens. 

Somado à perda de contato com as pessoas, as crianças tiveram que lidar com as aulas remotas. Isso foi complexo para mim também, devido à falta de interação nas salas de aula e outros ambientes.  Apesar das dificuldades, as crianças se adaptaram bem durante esse processo.

Como professor de uma escola pública, pude perceber como as aulas remotas serviram para aumentar ainda mais as distâncias sociais. Devido ao fato de não possuírem acesso à internet, ou até mesmo computador em casa, muitos alunos não conseguiam acessar a plataforma.

Insegurança financeira

Perdi muitas possibilidades de realizar trabalhos devido ao fechamento provisório e, mesmo, permanente de espaços culturais durante o a pandemia. Mas ser funcionário público me permitiu trabalhar em casa e manter o meu salário. Assim, me sinto privilegiado, especialmente diante de tantos profissionais autônomos que perderam completamente os seus ganhos.

Foto montagem com três pessoas olhando através de visores de máquinas fotográficas acompanha relato do professor Alexandre Freitas para a Memória Popular da Pandemia. Relato aborda as dificuldades enfrentadas por ele, seus filhos e estudantes com o fim das aulas presenciais.

Porém, a insegurança financeira permanecia, já que apenas o salário do estado não seria suficiente para manter o orçamento familiar equilibrado. De certo modo, esse cenário profissional instável foi compensado pela necessidade das empresas em se adaptar aos novos desafios impostos, que fez com que passassem a inserir projetos de produção de vídeoaulas e vídeos institucionais de veiculação remota. Isso permitiu que eu pudesse realizar alguns trabalhos extras nessa área.

Retomada das aulas presenciais

Agora é esperar para ver o que nos reserva o próximo ano. Me preocupo bastante com o que ocorrerá com as escolas, no sentido da possibilidade de retomada das aulas presenciais. Pois, apesar das dificuldades referentes a esse processo de adaptação, me sinto inseguro com a ideia de meus filhos voltarem a frequentar uma sala de aula.

Como professor, falo também por mim: sinto muita falta da aula presencial. No entanto, compreendo a necessidade de ainda nos mantermos distanciados, em quarentena, nos preservando o máximo possível. Especialmente, quando há milhões de pessoas em todo o mundo perdendo suas vidas por causa desse vírus. Entre elas, o diretor da escola onde leciono.

Sou solteiro, tenho 46 anos, sou carioca e pai de Artur (de 12 anos) e Olívia (de 6 anos), filhos provenientes de 2 casamentos. Sou professor de Arte da rede estadual do Rio de Janeiro e ministro cursos e palestras sobre cinema e fotografia em diversos espaços culturais, além de realizar trabalhos de fotografia e vídeos institucionais. Anteriormente à pandemia, minha rotina consistia em sair para lecionar na escola e nos espaços culturais e, eventualmente, realizar trabalhos como fotógrafo e videomaker.  Como nos últimos anos os serviços nas áreas de foto e vídeo estavam mais escassos, priorizei o meu ofício como professor, dividindo-me entre os trabalhos e os cuidados de meus filhos, já que possuo uma guarda compartilhada com as suas mães. 

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40 a 59 anos Ceará Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Parda

“Surgiu um convite para a cozinha comunitária. Aceitei na hora. Queria ajudar e fazer parte de algo”

Acompanhei o início da pandemia pela televisão e via a preocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em achar maneiras de ajudar as famílias próximas. Nós aqui de casa – a qual conquistei na luta do movimento – recebemos ajuda com cestas básicas e máscaras.  

A princípio, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto montou uma cozinha comunitária. Logo, surgiu um convite para que eu fosse ajudar na cozinha. Aceitei na hora, pois queria ajudar e fazer parte de algo.

Foto de duas mulheres cozinhando com uma panela de pressão acomapnha relato da Memória Popular da Pandemia, que mostra como ajudar na cozinha comunitária do MTST trouxe a esperança de dias melhores à Maria Antônia.

Ajudar na cozinha comunitária foi um misto de sentimentos: me senti útil e feliz ao ver várias e várias pessoas comendo o que eu mesma preparei junto a algumas companheiras.  

A pandemia é grave, ela pode até matar. Mas o movimento faz com que tenhamos esperança no amanhã.

Sou dona de casa e há cinco anos tive meu primeiro contato com o MTST. Minha filha é militante do movimento e agradeço demais por tudo o que o movimento acrescentou em nossas vidas.  

Leia também:

“As atividades do MTST nos territórios ficaram mais intensas” – Maria Eduarda Rodrigues | Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – Pacatuba, PE

“Deixa quem quiser chamar de assistencialismo. Eu digo que é uma emergência, fome tem pressa” – Vânia Rosa | Presidente do Coletivo Rua Solidária – São João de Meriti, RJ

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Bahia Mulher Cis Pós-Graduação Incompleta Prta

“Por aqui ser uma comunidade da zona rural, muita gente vinha do centro da cidade para cá para poder ir para bares e continuar uma socialização”

Eu estava acompanhando a pandemia desde o início, desde que começaram os primeiros casos na China. E estava um pouco apreensiva desde lá. Minha família até brincava comigo que eu estava sendo precipitada.

À medida que as coisas começaram a avançar e começaram a surgir os primeiros casos da pandemia aqui na Bahia, em Feira de Santana e depois em Salvador, eu já comecei a tomar os cuidados.

Porque Salvador é uma cidade que a gente precisa de transporte público, enfim, na própria universidade a gente acaba tendo contato com muitas pessoas no dia a dia. Então, quando foram chegando os primeiros casos, eu já comecei a tomar os cuidados. Inicialmente, eram o uso de álcool em gel, chegar em casa tirar a roupa e tomar logo banho, esses cuidados assim. Ainda não estava inserido o uso de máscara e dessas questões.

Infodemia

Mas o primeiro impacto que eu senti quando começou mesmo o isolamento social foi psicológico. Eu me lembro que, nos primeiros dias da quarentena, eu ficava ali imersa nas notícias.

Eu acordava e a primeira coisa que eu fazia…eu pegava meu celular, entrava nas redes sociais, no Twitter, no Instagram, nos sites de notícias que eu costumo ver pela manhã, ouvia podcast. Geralmente meu pai estava também com a televisão ligada, então eu acabava consumindo essas notícias assim que eu acordava. E, durante o dia, eu ia atualizando o número de casos, quantas pessoas morreram, enfim, estava totalmente imersa e isso estava me fazendo um mal muito grande.

Até que minha mãe falou para mim: “você só fala disso agora, para de falar disso!”. Foi até engraçado na época, que ela só faltou me dar um sacode. E foi quando eu vim cair na real que aquilo estava me fazendo mal, porque eu estava muito ansiosa.

Eu não estava conseguindo fazer nada além de vivenciar a pandemia. Tomando os cuidados, mas vivenciar que eu digo a nível de informação. Então eu estava totalmente imersa nesse contexto e, depois que minha mãe falou isso, eu falei: “realmente, eu tenho que tomar algumas medidas de cuidado mesmo, para que eu não adoeça nesse processo”.

Uma pausa nas redes

E aí eu comecei a silenciar as palavras nas redes sociais. Comecei a silenciar no Twitter, no Instagram, parei de seguir algumas páginas também – que durante os “tempos normais”, digamos assim, tem um um conteúdo jornalístico diferente, mas que nesse período não tem como os veículos não estarem dando uma atenção maior a questão da pandemia.

Então eu fui adotando essas medidas mesmo de consumir menos notícias possíveis sobre a pandemia. Eu passei a ver umas duas vezes no dia, mais ou menos, para ver o que estava acontecendo. Não me deixando de me informar, porque é importante também, mas não deixando que as notícias chegassem a mim de qualquer forma.

Incialmente, eu achei que ia durar menos tempo do que tem durado. A gente já está avançado para uns quatro meses, mas inicialmente eu acreditava que seria uma coisa de uns dois meses. Enfim, eu estava acompanhando a realidade dos outros países também, então eu estava com um pouco mais assim de esperança, mas, ao mesmo tempo, com muito medo do que estava acontecendo. E de quando isso ia chegar na minha família, quando ia chegar nas pessoas mais próximas.

Da cabeça para o corpo

No início do ano, eu tinha iniciado uma psicoterapia que estava me ajudando bastante. Era presencial, agora é através das vídeo chamadas. Nos primeiros dias, eu falei assim “ah, eu acho que eu não vou continuar, porque acho que não vai funcionar, acho que vai durar pouco tempo também”. Mas, de fato, essa tem sido uma ferramenta que tem me ajudado muito, porque as coisas continuam acontecendo.

Nas nossas famílias, vão acontecendo problemas e, enfim, o mestrado, tantas outras coisas vão acontecendo também para além da pandemia, fora as milhares de notícias ruins que vem acontecendo nos últimos meses.

Então é um acúmulo de coisas muito grande, que eu tenho aprendido ainda a lidar, mas que o principal impacto que eu senti inicialmente foi isso – psicológico – mas que depois se reverteu no meu corpo também. Um cansaço físico enorme. Mesmo que eu não estivesse em um movimento muito grande de sair.

Mudanças na rotina

Minha vida é ir para universidade, fazer as coisas em Salvador, uma mobilidade muito grande durante o dia, não costumava ficar dois dias sem sair de casa. Ficava um dia, era o máximo. Então eu comecei a ter um cansaço físico muito grande, tive até um problema dermatológico, que eu acredito que tenha sido por conta disso. Porque eu nunca tinha tido, e aí, enfim, foram essas coisas assim que aconteceram.

Primeiro impacto que eu senti foi em relação ao meu psicológico, depois eu senti o meu corpo respondendo a isso, e à medida do tempo, fui tentando traçar estratégias para poder amenizar esses impactos sobre mim.

Universidade, estudo e militância

Atualmente faço mestrado no programa Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, na Universidade Federal da Bahia. Sou formada em serviço social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Quando a pandemia começou, estava bem no início das aulas, tanto na UFBA, quanto na UFRB. As atividades estavam sendo retomadas. Inclusive, eu só fui à universidade dois dias se não me engano.

Atualmente, faço parte do Portal Black Fem, um portal de artigos, notícias, conteúdos nas redes sociais, que é formado também por jovens negras de vários lugares do Brasil. A gente produz conteúdos que são publicados nosso site e Instagram, que são as duas ferramentas de comunicação sociais que a gente utiliza.

Também faço parte, desde 2018, do Coletivo Angela Davis, um grupo de pesquisa e ativismo em gênero, raça e subalternidades que se propõe, para além de estudar e fazer as pesquisas acadêmicas, também praticar um ativismo político junto a outros grupos e organizações, principalmente de mulheres negras.

Reuniões eram também socialização…

Quando começou a pandemia, o coletivo estava nesse processo de retomar as atividades. Semestralmente, a gente faz um calendário de atividades, já para o semestre inteiro, e a gente estava nesse processo ainda.

Anteriormente, nossas reuniões eram quinzenais, presenciais. Então quem não morava em Cachoeira se deslocava até Cachoeira. Além de ser um momento de reunião, era também um momento de confraternização, de troca mesmo. Depois, a gente saia para tomar uma cerveja, para almoçar, para fazer alguma coisa. Os laços se estreitavam a cada vez que a gente se encontrava.

…e passaram a ser online

A primeira estratégia que a gente encontrou, assim como outros grupos, foi de fazer as reuniões online. E as reuniões passaram a ser semanais. No cotidiano não teria como ser semanal, não daria tempo das pessoas se deslocarem. E como atualmente estamos todas em casa, ficou um pouco mais fácil de fazer as reuniões semanalmente.

Durante esse percurso, a gente foi encontrando formas de fazer as reuniões. A gente também foi pensando algumas ações que não deram certo e tiveram que ser reorganizadas. Muito porque é tudo muito novo. Embora a maioria das pessoas tenha acesso à tecnologia, já tenham mais familiaridade no uso das plataformas, ainda assim é tudo muito novo.

E tem acontecido muita coisa na internet, no Instagram, nas redes sociais, tem acontecido uma grande produção de conteúdo. A gente também estava tentando se inserir e pensar o que fazer para que as nossas reuniões não ficassem só entre nós.

O coletivo normalmente propõe ações e atividades para fora das pessoas que fazem parte do grupo. Foi um processo de adaptação, que teve erros, percalços, e, à medida do tempo, a gente foi encontrando alternativas. Nossa principal forma de comunicação hoje são as reuniões e o grupo no whatsapp, que já era bastante utilizado para mandar os informes.

Webinários e formações

Nós estamos com um projeto promovendo alguns webinários nas temáticas que envolvem o tema do racismo e do antirracismo atrelados a outras questões no contexto do Brasil e dos Estados Unidos. Pensando nos últimos acontecimentos, na morte do George Floyd, e em algumas outras coisas que o coletivo já queria propor, foi formada a Rede de Estudo e Formação em Racismo e Antirracismo. Atualmente, a rede vem desenvolvendo atividades.

Outra coisa que a gente tem promovido é um curso de formação nos estudos de gênero e raça. É um curso que costuma ser proposto para os integrantes do coletivo e que, nesse contexto de pandemia, curso foi aberto para mais pessoas.

Estou como aluna do curso também, então tem sido um momento muito interessante de aprendizado. Para ouvir outras pessoas do coletivo que são facilitadoras das temáticas, para ter contato com os textos, e também para ampliar a rede de pessoas. A gente percebe que tem muitas pessoas de outros estados, outros movimentos sociais, e algumas estudantes da graduação, que estão se interessando ou iniciando as pesquisa nesse campo de gênero e raça.

Viver a pandemia em zona rural

Meus pais moram na zona rural de Cachoeira, o que me traz de certa forma um pouco mais de tranquilidade. Porque aqui a gente não fica restrito ao espaço físico da casa. A gente tem um quintal grande, uma área grande. Durante o dia, meus pais, que são do grupo de risco, conseguem realizar outras atividades.

Aqui na minha comunidade, no início, as coisas não tinham mudado tanto, por conta do baixo índice de casos que tinha aqui em Cachoeira. Mas, à medida que o tempo foi passando, e as próprias pessoas da comunidade foram diagnosticadas com Covid-19, as coisas mudaram um pouco.

As pessoas passaram a ter uma outra articulação. Por ser uma comunidade de zona rural, as pessoas têm muito costume de dar uma coisa a outra, o que é produzido é compartilhado entre os vizinhos, ou de ir muito na casa dos vizinhos, ou de parar para conversar. Essa realidade tem sido um pouco mudada. A rua que eu moro é uma rua em que moram pessoas mais velhas, então passou-se a ter esse cuidado.

Por aqui ser uma comunidade da zona rural – como Cachoeira no início estava com os bares fechados – muita gente vinha do centro da cidade para cá para poder ir para bares e continuar uma socialização. Isso foi algo que estava me preocupando bastante, estava preocupando meus familiares e outras pessoas, porque era uma forma da comunidade estar um pouco mais vulnerável.

Aqui também a questão de transporte era muito específica, tem transporte com horário específico para sair, horário para voltar, isso também mudou.

Zona rural, reorganização financeira e novas tecnologias

Muitas pessoas que moram aqui vivem da feira, e tiveram que se reorganizar vender seus produtos. Conheço algumas pessoas que, por serem mais velhas, tiveram que dar um tempo de realizar a venda e comercializar os produtos que costumam vender, porque isso se tornou perigoso. Algumas pessoas da comunidade rural também implantaram o delivery, que era algo que antes não tinha.

Percebi que as pessoas foram buscando estratégias para conseguir uma renda. Muita gente aqui vive do que produz na roça, ou de algum trabalho não fixo. E agora que a gente está vivendo o contexto de pandemia, muitos trabalhos que não são fixos tiveram que parar ou diminuir. Por isso, de maneira gradual, as pessoas foram buscando essas estratégias de sobrevivência financeira.

Minha mãe, por exemplo, é professora. É uma pessoa de referência aqui na comunidade, é professora dos filhos dos alunos dela de vários anos atrás, porque ela já é professora há mais de 25 anos. E a vida dela de educação no campo é complemente diferente do que tem sido agora. Então ela está nesse processo de aprendizado e de tentar usar as tecnologias, que é algo que ela não utilizava. E eu tenho que auxiliar ela nesse processo de enviar atividade, de produzir atividade – ainda que seja difícil inclusive para mim, que não tenho nenhum domínio pedagógico, mas tem sido assim uma troca. Isso também impacta na vida dos alunos dela e das famílias. Porque acho que a escola aqui é muito um lugar de encontro, onde tem mais contato com as famílias e com as crianças.

No meio rural, ao ar livre, precisa de máscara?

O principal momento em que as pessoas passaram a se conscientizar e tomar medidas um pouco mais severas, como o uso da máscara…porque aqui a gente está ao ar livre, então algumas pessoas diziam que não precisa. Por estar está ao ar livre, no meio de árvore, encontramos poucas pessoas. Se eu estou aqui fora de casa, vejo uma pessoa passar agora e outra daqui a 10/15 minutos. Não tem uma quantidade de gente muito grande, principalmente na rua em que eu moro.

Planejamento de um futuro incerto

Antes da pandemia, eu nunca fui uma pessoa de me organizar muito para o futuro, pensar: “ah, minha vida daqui a 5 anos vai estar de certa forma”. Por exemplo, quando eu sai da graduação, não tinha tanto um projeto de vida traçado. Sabia que queria fazer um mestrado, a temática, mas, com o passar do tempo, eu comecei a pensar numa perspectiva mesmo de futuro

Tenho que escolher algo que vai me trazer um retorno. Claro que tem que ser algo que eu goste, mas estou caminhando para frente e preciso traçar um futuro assim do que eu quero, até porque traçar um futuro vai permitir traçar estratégias para chegar onde você almeja – pensava. Então na minha cabeça estava isso bem planejado.

Então, à medida que eu fui amadurecendo, ficando mais velha, entrei no mestrado, eu tinha um plano de vida traçado. Estava pesquisando programas de doutorado, pensando um projeto que eu pudesse encaixar.

Altos e baixos

Aí, quando chegou a pandemia, à princípio, eu estava pensando que ia ser uma coisa de dois meses . “Vou aproveitar para estudar, aprofundar minha pesquisa, ler mais” – pensava.

Mas, durante a pandemia, foi exatamente acontecendo o inverso. Muitos momentos de altos e baixos. Tinha semanas que eu super focada nos estudos. E outras semanas em que ficava sem fazer nada. Pegava algo para ler e não conseguia. Tentava assistir alguma coisa e não conseguia.

Eu perdi durante um tempo essa capacidade de articular um futuro. Ficava vivendo uma dia atrás do outro. Cheguei naquele momento de pensar: todos os dias são iguais, não sei quando vou sair disso, não tenho mais motivação para planejar nada, porque eu não sei quando é que as coisas vão voltar a acontecer.

Mas eu acho que, à medida que as coisas foram acontecendo, eu vi que algumas estratégias estavam dando certo, que as pessoas estavam encontrando estratégias para fazer as coisas acontecerem. Obviamente, não da mesma maneira que antes, mas as coisas estavam acontecendo. Eu precisava de alguma forma acompanhar isso; não podia parar e esperar a pandemia passar.

Atualmente eu tento encontrar uma perspectiva de quando as coisas vão melhorar. Porque passar vai demorar um tempo. Eu acredito que as coisas vão mudar muito, já tem mudado. Eu, pelo menos, sou uma pessoa muito afetiva, de encontrar as pessoas, abraçar, beijar, de ter o toque mesmo, então eu fico pensando muito sobre isso, de encontrar algumas pessoas e pensar “abraço ou não abraço?”.

De perto e de longe

Uma coisa que aconteceu ontem. Eu tenho um primo que eu considero como irmão. E ele já está aqui há três meses. Assim que começou a pandemia, demorou umas duas semanas, e ele veio para cá e está passando a pandemia meio com a gente.

E todas as vezes em que a gente se encontra, a gente se abraça. Só que dessa vez a gente não pode se abraçar. Foi a primeira vez que a gente se encontrou, ficou junto e não pode se abraçar. A gente tem uma relação muito próxima de carinho, de abraçar, de beijar. E aí quando foi ontem, foi um momento em família mesmo, eu estava indo para o banheiro e ele passou e me abraçou. Aí não teve como não abraçar de volta.

E minha dinda falou “e pode abraçar?”. Eu falei: “ai, tia, é a primeira vez que a gente passa três meses juntos e a gente não tinha se abraçado ainda”. A gente deu aquele abraço forte como se a gente estivesse há muito tempo sem se ver, quando na verdade a gente está passando a quarentena juntos, mas não podia ter esse momento do toque, do abraço. E eu sinto que foi algo que me marcou muito na hora, eu fiquei presa no abraço pensando “nossa, como isso era comum e agora não é… como de alguma forma a gente tem que se privar de viver isso, ainda que a gente esteja passando a quarentena inteira juntos na mesma casa”.

Isso aconteceu com o meu pai também, mais no início da quarentena.

Eu não tinha bolsa de mestrado e minha bolsa de mestrado chegou nesse processo de quarentena. Isso me deu um certo gás para pensar meu futuro. E no momento em que eu dei a notícia para o meu pai ele me abraçou. Eu não tive como não abraçar de volta. Porque isso era algo que era muito esperado por mim, por ele, por minha mãe, por minhas irmãs.

E eu fico muito pensando como a gente vai lidar com os afetos, com essa falta de abraçar as pessoas, de lidar com as pessoas que a gente ama. Eu fico pensando muito nisso e, ao mesmo tempo, não consigo chegar a uma resposta de como as coisas vão acontecer.

Eu sei que as coisas não vão ser da mesma forma, pelo menos eu não consigo imaginar, mas, ao mesmo tempo, eu não consigo pensar em viver sem encontrar as pessoas, encontrar meus amigos. E não ter aquele toque.

Minha irmã está em Salvador atualmente trabalhando. E isso tem sido uma falta muito grande para mim e para meus pais, porque a gente nunca ficou tanto tempo sem se ver. Tem sido muito difícil. E ela teve uma oportunidade de vir até aqui. Mas ela não veio. Porque ela disse que não ia conseguir chegar aqui e ficar de longe. Chegar e ficar no carro acenando. Para ela seria muito mais doloroso ver a gente de perto e não poder abraçar, do que ela distante fisicamente que é como a gente tem estado nesses últimos meses.

Planejamento sem cronograma

Eu tenho tentado planejar o meu futuro, mas sem pensar muito no tempo, em quando as coisas vão acontecer. Mas voltar aos meus planos antigos. Voltar a por a minha cabeça no lugar. Eu também tenho tentando escrever muitos dos meus pensamentos. Eu passo muito tempo sozinha, às vezes no quarto ouvindo música ou lendo uma coisa, e têm me surgido muitos questionamentos.

Chega uma hora que a gente não tem nenhuma coisa para fazer e o que resta é pensar. Então eu tenho me perguntado muito, feito várias perguntas para mim mesma, escrito as perguntas, lido depois e tentado encontrar respostas. E outras vezes não. Só deixando de registro para que futuramente eu possa acessar isso e tentar ver se o tempo me deu alguma resposta.

Mas, ao mesmo tempo, eu tenho tentado não me cobrar tanto. Porque, no início da pandemia, uma coisa que eu estava me cobrando muito era a produtividade. Tentar fazer as coisas, tentar acordar cedo e fazer isso e fazer aquilo. De certa forma eu consegui adquirir hábitos bons, que eu não tinha antes da pandemia, mas, por outro lado, eu ficava assim: “ah, eu tenho que fazer tudo, tenho que dar conta de tudo, esse é o momento que vou tirar para aprender todas as coisas que eu não tive tempo de aprender”. Só isso que não funcionou, pelo menos para mim. Chegou um momento em que eu não tinha mais energia para fazer as coisas, que eu trocava o dia pela noite, acordava de tarde, aí ficava tentando regular isso e não conseguia.

Tudo o que eu faço agora, me proponho a fazer ou não fazer, isso vai impactar no meu futuro.

Eu tenho aproveitado alguns espaços para fazer algumas coisas que antes eu não tinha coragem de fazer, ou que tinha mais vergonha – tipo aqui, gravar o vídeo, que é algo que eu não tenho nenhuma familiaridade. Durante os webinários eu mediei mesas e para mim foi muito angustiante, porque eu ficava muito com medo de errar, de fazer alguma coisa errada.

E tem muito essa coisa de necessitar da internet. Você combina uma coisa e no dia não tem internet acabou, você desmobiliza tudo.

Ainda tem isso. Além das inseguranças normais acontecem essas que estão fora do nosso alcance mesmo, que a gente não consegue controlar. Então eu fiquei muito angustiada. Mas eu contei com a ajuda de várias pessoas, que têm sido muito importantes nesse momento também. As redes de pessoas com quem eu me relaciono, meus amigos, meus familiares. A gente tem feito muita chamada de vídeo ou conversado muito nos grupos, tentado se ajudar muito, e isso tem me dado uma força. Mas eu tenho tentando usar esse momento também para romper. E isso também é fruto muito do que eu tenho tratado e conversado nos momentos de terapia, que sempre me fazem pensar e buscar algum tipo de estratégia para lidar com algumas questões.

Um alerta

Algumas pessoas costumam dizer que tem o lado bom da pandemia. Não vou dizer que isso em algum momento não passe pela cabeça da gente. Mas eu, particularmente, não consigo ver tanto um lado bom. Mas, ao mesmo tempo, a gente tem tentado encontrar estratégias para amenizar o momento que a gente tem vivido.

A pandemia é algo extremamente ruim em todos os níveis possíveis. Mas, ao mesmo tempo, é um alerta. É um alerta para o nosso corpo, para o nosso tempo, para a forma que a gente se relaciona com o meio ambiente, com a natureza, com o que a gente come.

Agora muita gente entrou nessa de “ah, vou ter uma alimentação melhor, faz minhas coisas em casa, deixar um hábito ruim, porque eu posso estar mais vulnerável na pandemia”. Eu estava vendo e pesquisando bastante coisa nesse sentido da imunidade. Que é uma corrida para conquistar algo que você não conquista em um mês, tem que ser algo gradual, que se conquista com bons hábitos.

Acho que a pandemia trouxe esse alerta, da forma que a gente se relaciona com as pessoas e de alguns hábitos. Eu não consigo me imaginar mais sem o tempo todo limpar meu celular. Mas isso era uma coisa que eu nem fazia antes . Eu via algumas pessoas falando “ah, tem que limpar o celular”. Eu pegava o celular, botava na bolsa, fazia todo esse movimento sem nenhuma preocupação. Então isso para mim não existe mais. Eu não consigo pensar mais em alguns hábitos que antes eram comuns como normais e isso vai acabar perdurando por mais tempo. Eu acho que a pandemia trouxe isso como alerta.

E uma nova forma de se organizar

Acho que trouxe também isso de criar uma nova forma de se organizar. Pensar as organizações, os grupos, da gente criar um sentido maior de comunidade. Eu acho que isso é algo muito importante, que os coletivos de pessoas negras geralmente tentam propor de se articular num contexto de comunidade. E a pandemia traz essa reflexão de comunidade. Por exemplo: eu moro em uma comunidade rural, mas, se eu for sair sempre, se for atender todos os meus desejos e minhas vontades, eu não vou estar pensando no senso comunitário. Porque a partir do momento que eu saio de casa, que eu saio sem máscara, que eu deixo de tomar algum cuidado, eu estou impactando na vida não só da minha família, mas de várias outras pessoas.

Então eu acho que trás para a gente esse sentido de comunidade – para além das paredes da nossa casa, para além dos nossos familiares e das pessoas mais próximas – de pensar num senso maior, pensar no coletivo, pensar de construir isso para um momento que não só esse.

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25 a 39 anos Mulher Cis Parda Pernambuco Pós-Graduação Completa

“Para nós, mulheres rurais, um dos desafios foi continuar nos articulando”

Antes de mais nada, moro em um município pequeno e para mim esse contexto da pandemia tem sido de grandes desafios:

Desafios quanto a ser mulher chefe de família, quanto a ser mãe de duas adolescentes, desafios enquanto militante em movimentos. Além de desafios frente aos encontros e desencontros da vida.

Acredito que vivemos aqui no Brasil um verdadeiro caos. A maioria das pessoas ignora o fato de estarmos passando por um momento muito sério, em que o vírus da Covid-19 já tirou a vida de milhares de seres humanos.

Durante essa pandemia, para nós, mulheres rurais, um dos desafios foi continuar nos articulando. Com o distanciamento social, nos vimos cada vez mais dependentes das mídias digitais como forma de continuarmos nos comunicando e nos articulando enquanto movimento social. 

Foi a partir daí, das dificuldades de muitas companheiras de não saber lidar com esse mundo digital, que percebi que nós, mulheres rurais, ainda somos totalmente analfabetas digitais e pessoas alheias a esse mundo digital. Mesmo frente a tudo isso, acredito que vamos sair desse período de pandemia mais fortalecidas(os).

Leia também:

“A adaptação não foi fácil. Tive momentos de estresse, nostalgia, e uma sensação de estar dentro de um círculo se fechando ao meu redor” – Andréia das Neves | Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais – Angelim (PE)

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18 a 24 anos Ceará Ensino Médio Completo Mulher Cis Prta

“As atividades do MTST nos territórios ficaram mais intensas”

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) sempre atuou nos territórios com diversas ações, fossem elas solidárias ou culturais. Em função da pandemia, essas atividades ficaram mais intensas.

Iniciamos uma vakinha online para que conseguíssemos comprar cestas básicas e produtos de higiene. Contamos também com doações de produtos, fabricamos e distribuímos máscaras, organizamos uma cozinha comunitária e realizamos sarais virtuais.  

Eu sempre fui uma militante ativa: participava de todas as atividades e, na pandemia, também não fiquei parada. Então, participei de todas as atividades, entreguei cesta básica e produtos de higiene, distribuí máscaras, organizei e apresentei quase todos os sarais.  

Antes de mais nada, fazer a distribuição de coisas tão básicas era como levar alegria para aquelas famílias.

Foto enviada por Maria Eduarda Rodrigues, em que aparecem duas pessoas com uma bandeira do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. A foto acompanha relato da Memória Popular da Pandemia sobre as atividades do MTST na como a distribuição de máscaras e cestas.

Não podíamos nos abraçar por conta da pandemia, mas nós comunicávamos através de olhares, sorrisos escondidos pelas máscaras e um “MUITO OBRIGADA!”.

É uma certeza de que não podíamos nos tocar e muito menos nos ver fisicamente, mas esses agradecimentos já enchiam o coração de esperança.  

Em conclusão, a pandemia trouxe o agravamento da falta de coisas que já tinham antes, como a falta da política pública na saúde e na habitação. Mas nada disso nos desanimou, pelo contrário, só nós deu mais motivos pra lutar. 

Leia também:

“Surgiu um convite para a cozinha comunitária. Aceitei na hora. Queria ajudar e fazer parte de algo” – Maria Antonia Rodrigues | Dona de casa – Pacatuba (PE)

“Me aproximei oferecendo o celular pra fazer o pedido do auxilio emergencial do governo” – Luciana Paiva Coronel | Professora – Porto Alegre, RS

“Deixa quem quiser chamar de assistencialismo. Eu digo que é uma emergência, fome tem pressa” – Vânia Rosa | Presidente do Coletivo Rua Solidária – São João de Meriti, RJ

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18 a 24 anos Branca Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Pernambuco

“A adaptação não foi fácil. Tive momentos de estresse, nostalgia, e uma sensação de estar dentro de um círculo se fechando ao meu redor”

A princípio, a adaptação a esse novo contexto de distanciamento social e isolamento não foi fácil. Principalmente no início. Sobretudo, tive que me habituar com o fato de não poder abraçar as pessoas que gosto, sendo que o abraço para mim é algo tão natural e espontâneo.  

Por gostar de estar sempre em movimento, engajada com atividades, o período mais difícil para mim foi o isolamento nos meses de pico da pandemia. 

Do mesmo modo, durante o isolamento, tempo em que fiquei praticamente sem sair de casa, no meio rural, sem contato com outras pessoas para além da minha família, tive momentos de muito estresse.

Às vezes, senti nostalgia, e uma sensação de estar dentro de um círculo se fechando ao meu redor. 

Adaptação da rotina

Sou mulher rural, estudante, feminista e integrante do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Pernambuco (MMTR-PE),

O período dentro de casa implicou em muitas coisas. Tive que me readaptar e reorganizar toda minha rotina, seja de estudos ou de trabalho. Não foi fácil, pois tive que assumir parte das atividades domésticas. Além da responsabilidade com meus dois irmãos mais novos, um de 7 e outro de 8 anos. 

Em meio a tudo isso, e enfrentando as limitações e algumas dificuldades, consegui me manter, sempre que possível e mesmo que de forma virtual, participando do movimento, estudando e trabalhando. Isso foi fundamental para preservar tanto minha saúde emocional quanto física. 

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25 a 39 anos Mulher Cis Pará Prta

“Muitos dos igarapés que alimentam o Xingu – como o Altamira, Panelas e Ambé -estão secando”

Aqui no Xingu, em primeiro lugar, o isolamento tem sido apenas físico. Porque estamos com mais conexão do que nunca para ajudar os nossos a ficar bem nesse contexto da pandemia.

Em segundo lugar, ficamos com muita preocupação com as pessoas de nossa cidade, com as nossas famílias na cidade, aldeias e nas reservas extrativistas. Por isso, realizamos vários vídeos informativos sobre a importância de usar máscaras, lavar as mãos e evitar aglomerações.

Pelo coletivo “Juventudes por Justiça Social e Ambiental” – que tem por objetivo lutar pelas políticas públicas sociais e ambientais do médio Xingu, colocando as juventudes (negra, periférica, indígena, ribeirinha e extrativista) como protagonistas – a gente continua lutando por aqui, seguindo as recomendações de cuidado.

Durante a pandemia, criamos um Instagram para dar visibilidade ao nosso coletivo e principalmente para comunicar com as pessoas. Tendo em vista a negligência do Estado na publicidade sobre a importância do isolamento social e na aplicação de políticas públicas de combate e prevenção, o Juventudes procurou usar os meios de comunicação alternativos, como o Zap, para informar a comunidade local sobre a importância dos cuidados preventivos à Covid-19.

Mas observamos que, no período da campanha eleitoral, pessoas fizeram campanha sem nenhuma preocupação com a saúde pública.

Tememos o aumento de casos de Covid-19 em nossa Altamira. 

Protestar e dar visibilidade à seca no Xingu

Temos uma articulação e mobilização com a pauta ambiental aqui no médio Xingu. O Rio Xingu tem a maior seca das últimas cinco décadas. Essa seca tem ligação direta com a instalação de Belo Monte em nosso Rio.

Belo Monte tem provocado a morte das árvores nas margens do Rio, mudanças nos depósitos de sedimentos por causa da mudança da cheia e vazante do Xingu… (a lista é extensa).

Em relação ao ano passado, o volume de água do rio sofreu uma diminuição de quase 40% no mês de outubro, e muitos dos igarapés que alimentam o Xingu – como o Altamira, Panelas e Ambé – estão secando.

Foi aí que decidimos fazer agendas de visibilidade ao caso. Nos organizamos com todos os cuidados preventivos à Covid-19 e fomos protestar no igarapé Altamira – seco – e em frente ao Ibama, escritório de Altamira.

Utilizamos uma metodologia de protesto criativo para chamar a atenção das pessoas e deixar as nossas vidas mais leves, porque a realidade tem sido dura ultimamente.

Nossa mobilização foi importante: gerou repercussão na imprensa local e a população começou a se posicionar nas redes sociais sobre o caso compartilhando memórias sobre suas vivências com os igarapés. 

Belo Monte é um mau exemplo!!!

#DerrubaBeloMonte 

#LiberteoFuturo 

#XinguVivo 

#AmazoniaCentrodoMundo

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Indígena Mulher Cis Raça/Cor

“Não teve dor maior que sentir a despedida do Pataxó de Coroa Vermelha”

Perdemos o primeiro parente Pataxó de Coroa Vermelha para a Covid-19 e não houve despedida. Por isso, foi ainda mais doloroso. Após ficar internado durante um tempo, o nosso Pataxó saiu do hospital com o corpo completamente lacrado. Ou seja, foi tirado de nós o último adeus. Não pudemos nem velar seu corpo, como é de costume na despedida em nossa cultura.

Foram momentos de calamidade esses. Além de não termos tido a chance da despedida do nosso Pataxó, para mim teve outra situação que também é muito difícil. Pois, tenho um filho que tem problemas respiratórios e imunidade baixa. E, devido a essa situação, ele precisou ficar mais tempo na casa da minha mãe. Porque eu sabia que ele precisava de mim por perto, mas minha mãe compreendia que eu precisava, juntamente, com meus colegas ajudar outras famílias em estado de vulnerabilidade.

Nossa equipe se colocou na linha de frente. Arriscamos as nossas vidas e a vidas das pessoas que mais amamos para tentar amenizar os problemas que nossas comunidades enfrentavam, além das saudade e da falta da despedida de seus entes.

Nada de despedidas, mas muitas dificuldades

A gente aqui em Coroa Vermelha, sempre tivemos muitas dificuldades, mas nenhuma se compara à qual estamos lidando nos últimos meses. Meu pai e minha mãe contam sempre das tribulações que tivemos nas épocas da baixa temporada e de inverno. É que aqui a gente já cresce nessa cultura de confeccionar e vender, para se preparar para as épocas ruins.

No início da pandemia, eu chorava muito dentro de casa em ver a situação de muitas famílias dentro da nossa aldeia. A nossa maior fonte de renda e de boa parte das famílias era resultado de vendas de artesanatos, de redes de hotéis e do funcionalismo público. Mas o dinheiro sumia a cada dia e as necessidades só aumentava.

Os hotéis fecharam e muitas pessoas ficaram sem seus respectivos empregos. Os funcionários públicos que trabalhavam na área da educação foram todos dispensados até sem direito ao auxílio emergencial, logo nos 3 primeiros meses. 

Muitos pais e mães de famílias estavam indo para as pedras pescar, pegar mariscos, mas havia dias que voltavam com nada, porque a concorrência passou a ser alta.

Solidariedade

Comecei a mobilizar um grupo menor do CONJUPAB, fizemos nossas primeiras reuniões online para vermos o que poderia ser feito. Então, fomos buscar parceria com alguns apoiadores. Fizemos a campanha do quilo; fomos aos comércios que se encontravam abertos para pedir alimentos, remédios, fraldas descartáveis, produtos de limpeza e máscaras; fizemos rifas, a gente conseguia os alimentos e dividia em cestas para doarmos as famílias que mais necessitavam no momento. Eram muitas, muitas mesmo!

Em algumas casas onde a gente chegava foi preciso doar duas cestas por semana, porque eram cheias de crianças. A gente saia com mais vontade de lutar para enfrentar aqueles dias terríveis, mas que foram de grande aprendizado.

Nosso conselho da juventude conseguiu atender mais 300 famílias vulnerabilizadas. Conquistamos 150 cestas básicas por meio do Instituto Mãe Terra e fizemos um rodízio para ajudar as outras comunidades dos municípios de Porto Seguro, Prado e Itamaraju. Fizemos algumas rifas solidárias: uma foi especifica para um dos nossos guerreiros que semana passada nos deixou, o Arauí Pataxó. Foi quando um parente, o Daniel Pataxó, nos doou um cocar de penas de arara no valor de 700 reais para ser rifado em prol do guerreiro. Fizemos uma mobilização arretada e com a graça de Tupã e força dos nossos encantados conseguimos entregar em mãos para a sua família o valor de R$3.700,00.

Eu sou Taiane Pataxó, nasci e me criei na aldeia Coroa Vermelha, tenho 30 anos de idade. Sou professora formada na área de humanas pelo IFBA- Campus Porto Seguro. Sou a segunda secretária do CONJUPAB -Conselho da Juventude Pataxó da Bahia, atualmente trabalho como secretaria execultiva na SEMAI- Secretaria de Assuntos Indígenas de Santa Cruz Cabrália.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Superior Completo Mulher Cis Parda

“É um momento que desencontra o nosso pensamento, no que pensamos sobre a Pedagogia de Terreiro, que aprendemos e construímos juntos”

Sou da comunidade do Caxuté e criadora da Pedagogia de Terreiro. Este é um momento difícil. Não só de hoje, mas de outrora. É um momento de encontro e desencontro. Desencontra o nosso pensamento, no que nós pensamos sobre a Pedagogia de Terreiro, que aprendemos e construímos juntos. Este é um momento que está separando nossos corpos dos nossos filhos e filha, dos nossos passados e antepassados, e dos viventes de hoje, que nos encontramos nessa pandemia.

Nós não podemos dialogar bem, e não podemos sentir o calor do outro. Isto é um momento de muita angústia no coração das comunidades tradicionais, porque as comunidades tradicionais se embasam no afago, no acalento, no colo, no carinho, na mãe.

A troca de experiência e viver e saber: um pesca seu peixe, o outro marisca, e trazem para nós quando não temos dinheiro, assim nós fazemos essa troca. Não podemos mandar ir os pescadores ao mangue; trazer o peixe, o caranguejo, o siri, o aratu para o nosso sustento.

Hoje, nós precisamos estar sempre de longe, sem poder encostar no outro por causa de uma pandemia de branco. E hoje temos um vírus que está virando tudo: virou nossos pensamentos, virou nosso viver, nossos saberes, nossos fazeres das nossas comunidades.

No mês de agosto, muitas pessoas de diversas localidades vêm à comunidade do Caxuté para participar da Kizomba Maianga de Kitengo. Este ano, não pôde ter essa troca de experiência por causa da evitação de aglomeração. Já que não podemos juntar nossos corpos, sentir os nossos calores, estamos vivendo um momento muito triste. Precisamos o tempo todo recorrer à nossa ancestralidade: que a gente se cuide, se fortaleça enquanto comunidade. A gente só tem a gritar ao nosso povo para ir ao mato, para ir para às matas, recorrer à nossa mata atlântica.

É difícil viver essa pandemia para os povos de matriz africana

Aí vem um outro lado: como nossos filhos da cidade podem encontrar esses matos, como é que uma casa com 10 ou 15 pessoas tem como se livrar de uma pandemia? Como é que tem como se alimentar e sair dessa aglomeração? Pois nós sabemos que nossos governantes não vão fazer nada para mudar isso, pois isto é a construção de uma política de derrotar o nosso povo preto, os nossos povos indígenas. É esse olhar que nós, de longe, avistamos quem vem; a gente vê quem vem, porque quando os pássaros gritam nas matas, a gente sabe quais são os pássaros que estão gritando forte ou fraco, nos seus cantos.

Quando nós estamos angustiados, quando nós estamos sofrendo, isso nos mata. Como tem matado nas travessias dos navios negreiros.

Então, a gente vê que isso é uma troca de negociação com nosso povo preto, nós temos que ter muito cuidado, porque é uma negociação que nos faz ver que nossos povos não podem ir ao hospital; então vamos para nossa mata. Corremos muitos riscos, vamos morrer nas casas, nas ruas, nos leitos de hospitais, pois não tem recursos para nós. Então, é difícil compreender, entender e viver nessa pandemia para os nossos povos de matriz africana, nossos povos de terreiro, nossos povos tradicionais. Estamos vivendo em um momento de muita angústia e a pior dor, o que mata, é o coração e a mente. Quando nós estamos angustiados, quando nós estamos sofrendo, isso nos mata. Como tem matado nas travessias dos navios negreiros.

O pós-pandemia não vai trazer o fim disto tudo, vai apaziguar, ela vai continuar; como o sarampo, a rubéola, outras e outras.

O que nós precisamos pensar nessa caminhada?

O que nós precisamos pensar nessa caminhada? Porque não vai acabar. Quando passar esse tempo… Porque há o tempo bom e o tempo ruim, nós estamos vivendo o tempo ruim.

Nós estamos nos fortalecendo com os nossos, começando a nos preparar com os nossos, a dialogar com os nossos, para que nós nos fortaleçamos. Na comunidade do Caxuté, é sempre dito pelo Caboclo, o Caboclo Pena Branca, o Caboclo Correia das Neves, ele diz assim: “Vamos plantar para os nossos filhos comer, para não comer batata de cemitério.”

Quando ele fala batata de cemitério, ele diz que, se não nos fortalecemos enquanto nós, só vai ter mais fracasso, mais derrotas nas nossas caminhadas. Porque, quem não consegue fazer nada dentro de um ano que para tudo, o que vai existir a não ser a pobreza? O que está acontecendo este ano é que no próximo ano vai existir mais pobreza ainda e comunidades mais fracassadas. Quem não tem terra, quem não tem um mecanismo, acesso a água, a plantar e colher, vai ficar difícil. Vão sobreviver de quê? Esse auxílio esse emergencial não vai existir.

Pedagogia de terreiro

A gente precisa auxiliar as comunidades tradicionais; de uma forma ou de outra abrir as escolas, criando outros mecanismos, outros meios de escola, para ensinar às crianças, como a Pedagogia do Terreiro, que abre a sua sala de aula no mar, no rio, no mangue, na terra. Para essa construção de aprendizagem, desse legado que nossos ancestrais deixaram para nós.

Nós vamos continuar o diálogo; que as comunidades, as escolas e as universidades possam estar cada vez mais contribuindo com isto, principalmente dentro dos espaços das universidades, para que se tenha um outro olhar perante nossos povos.