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60 anos ou mais Bahia Ensino Médio Completo Mulher Trans Parda

Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura.

Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.

Tenho 60 anos e acredito que envelhecer é um privilégio, principalmente para a mulher trans.

O nome que escolhi é um fragmento do meu nome de registro — bíblico — um apelido pelo qual já me chamavam. Venho de uma família de 12 irmãos, cristãos adventistas do sétimo dia. Nasci em Mundo Novo e fui criada em João Dourado, uma vila.

Descobri muito cedo que era diversa, não porque eu pensava ser, mas porque minha mãe dizia que eu era diferente, meus irmãos e irmãs diziam que eu era diferente, a igreja dizia que eu era diferente.

Eu não sabia o que era “ser diferente”

Eu só sabia que não gostava das mesmas coisas que eles, por isso resolvi silenciar, por não suportar ser apontada como culpada por tudo, justamente pelas minhas diferenças. .

Aos 14 anos, cursando o segundo grau, eu cantava e era ensinada a tocar instrumento pela esposa do pastor, que me adorava. Todo mundo dizia ao meu pai que eu era uma criança maravilhosa, mas ele não conseguia aceitar a minha natureza tão distinta dos meus outros irmãos.

Eu não gostava de jogar bola, ir para a roça e tomar banho no açude.

Me identificava muito mais com as minhas irmãs. Eu ficava muito revoltada, questionando o porquê de me chamarem “veado”, “salta moita”, — visto que eu nem sequer tinha experiências sexuais ou manifestava desejos.

Sonhava e imaginava que minha vida seria transformada de uma hora para outra, mas não sabia como.

Tinha muito apreço pela igreja. Ainda aos 14 anos, perdi o meu pai. Foi quando minha mãe entendeu que seria melhor para eu morar com as minhas irmãs em Salvador, onde elas já estudavam.

A passagem por Salvador e Rio

Passava um tempo com cada uma delas. Elas não eram perversas comigo, mas havia, sim, uma repressão, que hoje eu consigo entender com mais facilidade. Aos 16 anos, fui ajudante de cabeleireira e, aos 19, concluí o segundo grau.

 Estudando à noite, eu via mais meninos gays, com liberdade de serem quem eram. Fiz amizades e, nessa fase, eu me entendi enquanto homem gay, porque eram as referências mais fortes que se tinha. Ainda não sabia o que era “trans”.

Sabia que gostava de homens e que não me identificava com as vivências mais comuns. Tive meu primeiro relacionamento gay ótimo. Mas melhor ainda foi ter descoberto os palcos.

Me tornei transformista, comecei a fazer shows na noite e ter muito sucesso em Salvador. Fui eleita Miss Beleza Gay, Miss Universo, e aos 22 fui para o Rio de Janeiro, me apresentando.

Eu representava o Nordeste, interpretando Sarah Jane com o sucesso “A Roda”. Numa noite, no Teatro Brigitte Blair, conheci Claudia Celeste — a primeira travesti a atuar como atriz em novelas brasileiras — que se tornou a minha referência.

Quando a vi, entendi ser aquela forma feminina que eu queria assumir. Encontrei-a no camarim, conversamos, ela me convidou para a sua casa e me ensinou todos os próximos passos. Entendi que não seria fácil incorporar o universo trans, mas estava decidida. Liguei para Salvador, para me desligar do salão onde trabalhava como ajudante, e no dia seguinte, já comecei a tomar os hormônios. Fiquei três anos no Rio sem ver a minha família. Já estava transformada, gloriosa. Os homens já paravam os carros — e é importante falar, nesse ponto, que não são as mulheres trans que buscam pela prostituição, mas a prostituição que nos chama.

“Somos empurradas para essa vida.”

Imagine: eu trabalhava no salão ganhando 250 reais por semana, o valor de um programa ou até mais.

Nós, transexuais, somos essência.

Nós apenas pomos para fora o que existe dentro. Por isso, arriscamos pôr silicone e fazer cirurgias — nós nos expomos à morte numa mesa de cirurgia para conseguirmos expressar a nossa feminilidade.

Passados os três anos, voltei para Salvador para visitar as minhas irmãs. Imaginei que, por estarem na universidade, entenderiam meu processo de mudança. Ao adentrar a casa, me encontrei logo com dois dos meus irmãos. Foi um momento violentíssimo. Para eles, foi como se eu tivesse virado um monstro.

Toda a minha infância veio à tona. Aquilo me deixou destruída, decaí muito. Dali, busquei apoio com amigas, pois acreditava que não conseguiria bancar a transição para a minha família. Apesar da dor e sofrimento, eu não conseguia sentir ódio.

Não voltei mais para o Rio e quase cheguei a desistir por conta do desânimo em que eu me encontrava.

Mas eu já estava tão bonitinha — porque nós ficamos bonitinhas no início; linda, nós ficamos depois que entende a vida e nossa alma.

 Retomei os shows em Salvador e tive sucesso. Representava Gretchen, justamente porque os taxistas mexiam comigo e me chamavam assim por causa do excesso de silicone e harmonização. Aproveitei para ganhar dinheiro fazendo programas com esses mesmos homens. Um tempo depois, uma amiga me disse que deveria ser “puta” na Europa.

Apesar de estar em um relacionamento em que eu amava muito o meu companheiro, decidi abrir mão e me aventurar – principalmente porque eu vivia insatisfeita com o sexo.

A genitália me causava um incômodo que eu ainda não sabia como chamar — hoje, sei: disforia.

A estadia na Itália e o câncer

No fim desse percurso, descobri um câncer no intestino. Veio o pânico. Com toda a vivência cristã que tive desde a minha criação, pensava que todos estavam certos — que era um “castigo de Deus devido ao pecado”.

Foi muito difícil, porque eu sempre acreditei em Deus. Nunca mudei de religião. Eu me considero adventista do sétimo dia, porque essa fé me bastou.

E, apesar de renunciarem a nós, a família é a nossa base. Conversei muito com Deus. Iniciei o tratamento, usei bolsa de colostomia por quase três anos e consegui vencer o câncer. Gastara metade das economias que havia feito — inclusive, para a cirurgia de resignação.

Nessa etapa, minha irmã disse ter entendido o que eu queria e vendeu o próprio apartamento – passando a morar junto comigo – para que eu pudesse ir para a Tailândia realizar o meu sonho.

Eu ressurgi das cinzas. No meu retorno aos palcos, ainda fragilizada, bem mais magra, ouvi alguém da plateia fazer um comentário infeliz que — após me posicionar — me fez abandonar os palcos. Aquilo me magoou ainda mais porque o ambiente era uma casa gay, e eu esperava — e desejava — ser acolhida e respeitada naquele lugar.

Mais uma vez, encontrei apoio e suporte nas amigas. Sentia haver perdido um pouco da estrutura para enfrentar a vida. E um câncer também nos fragiliza.

Mas a cirurgia foi a gota d’água de felicidade para mim. Eu me sentia em paz comigo, até mesmo sexualmente. Encontrei uma pessoa, aproveitei a nossa relação e logo em seguida descobri outro câncer, agora na tireoide.

Dessa vez, foi menos intenso. Até porque, por algum motivo, o médico disse que as minhas cordas vocais estavam limpas e que já não era mais um câncer. Retirei a tireoide e segui trabalhando como cabeleireira.

O início da pandemia

Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia de Covid-19, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.

Muitas pessoas indicavam o meu trabalho como profissional de beleza: “Dicca, vem fazer uma escova”, “Dicca, vem me maquiar”, e, claro, eu ia e fazia preços mais baratos.

Durante a pandemia eu perdi duas irmãs, mas não por Covid-19.

Uma, logo no início, que estava lutando contra um câncer, e outra por um infarto fulminante. Com a perda de minhas irmãs, perdi também o equilíbrio. Porque a família é a base da gente – isso é uma verdade.

Por mais que eles tenham nos renunciados, nós nutrimos amor, de alguma forma, por essas pessoas. Por isso dói tanto. A irmã que ficou comigo, dependia muito de mim. Eu fiquei muito para baixo.

A vulnerabilidade causada pela pandemia

Foi quando fui salva por minhas amizades outra vez. Fomos nos apoiando e encontrando formas de ajudar umas as outras. E eu não tenho vergonha de pedir. Chegou um momento em que eu não tinha dinheiro nenhum.

Estava morando em um apartamento próprio, mas precisava pagar condomínio, contas de luz; precisava do básico: tomar banho, escovar os dentes, tomar os remédios para o estômago, tireoide e pressão.

Cabeleireira, com 60 anos, nunca tive carteira assinada e não recebo nenhuma assistência de serviço social.

Sempre fui militante, porque toda trans é militante. Quando ela dá a cara para a sociedade, ela está militando. Eu só não cheguei ao extremo de uma tristeza profunda — para não dizer “depressão”, pois não gosto dessa palavra — devido às pessoas que conheciam a minha história e me acolheram.

Buscamos por esperança e pelo fim da pandemia

O fim da pandemia não é tão esperançoso. Os contextos e dificuldades só se agravaram. Tenho muitas limitações. Apesar de tudo, eu sou uma pessoa feliz. Meu sonho é conseguir uma aposentadoria ou auxílio que me possibilite descansar, sabendo que terei, pelo menos, o básico para me manter.

Eu não tenho mais condição de ir para as ruas. Não condições físicas, pois, mesmo com a minha idade, ainda tenho um corpo bonito e poderia colocar um vestidinho preto para me prostituir. Isso ainda acontece vez ou outra. Mas não tenho mais estrutura para isso.

Nós realmente precisamos aprender a amar e valorizar os amigos.

Mais do que com palavras. Com atitudes reais. Estender a mão antes de alguém “cair no buraco”.

Na pandemia, eu aprendi a falar a palavra “amor”, mas, muito mais, viver ela. Amar é um sentimento nobre.

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40 a 59 anos Bahia Branca Ensino Médio Completo Mulher Trans

Nós, mulheres travestis, juntas, temos força

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Chamo-me Ranella Marcia, tenho 50 anos, sou virginiana, moro na Pituba (BA) e sou casada há 26 anos.

Meu histórico de vida é de muita luta.

Orgulho-me de ter superado a expectativa de vida de uma travesti, que neste país é de 35 anos. De ter superado, também, a marginalização que nos nega o amor e a relação estável.

A luta de uma travesti por respeito

Sempre fui muito “para frente”. Sempre me entendi como travesti, mesmo sem saber direito o que significava.

Fui muito criticada por “não ter limites” e mostrar quem era. Esperei um tempo para me tornar a mulher que eu queria em respeito a minha avó.

Eu me identificava muito com revistas. Fazia diversos recortes — adorava recortar imagens de bonecas de biquíni, roupas e fazer colagens. Minha avó nem sequer me deixava chegar na cozinha, pois não era “coisa de homem” — os papéis eram muito bem definidos.

Quando ela se foi, em 1994, eu “explodi”. Conheci meu marido nessa época. Eu sabia que gostava de homem.

Logo, me reconhecia como uma mulher heterossexual. Hoje, me considero bi, porque entendi que o que importa é o prazer, independente de quem seja.

Processos de se reconhecer como travesti

Por um tempo, quando morei em Cajazeiras, tive uma vivência de gay afeminada, bem louca, o que chamam hoje de “lacradora”. Tanto que era conhecida como “Xuxa da Cajazeira 8”.

 Isso porque, antes, só se considerava como travesti as pessoas que tinham uma estética realmente feminina, com cabelo grande, silicone e seios. Estudei a troncos e barrancos, porque sofria bullying e agressão. E não era só agressão verbal, mas física. Mesmo assim, sempre fui uma liderança no colégio. Fazia parte do teatro e jogava futebol — isso fazia com que eu conseguisse fazer amizades.

Já no segundo grau, comecei a ter problemas com o uso do banheiro. Além disso, comecei na prostituição. Por diversas vezes, após assistir às aulas, troquei a farda pela “roupa de puta” dentro próprio colégio e fui para as ruas da Pituba.

Quando estagiei nos Correios fui muito discriminada.

Foram idas e vindas pelo período de dois anos. Após conhecer o homem que hoje é meu marido. Fomos morar no Centro e eu parei de estudar. As idas e vindas também foram uma constante quando morei na Itália.

Ao retornar definitivamente, participei de um curso na área de Administração. Lá, questionei: “o curso já temos, e o emprego?”. Como resposta, questionaram a minha formação: “como vocês querem emprego se vocês não estudam?”. Foi nesse momento que decidi retomar os estudos e concluir o segundo grau. Após ocorrido o, me coloquei como uma liderança.

Fui a primeira travesti a ter o nome social na caderneta da escola.

Foi quando enfrentei uma professora que me chamava pelo nome de registro.

Exigi que ela me chamasse pelo nome que escolhi e fui apoiada por todos os colegas da turma, que ameaçaram deixar a professora dando aula sozinha caso ela não mudasse a conduta.

 Ali, também, eu percebi como poderia me articular. Aquele apoio foi muito importante. Isso me formou como alguém que, hoje, é ativista pelos direitos da comunidade trans, que luta por si, mas também, por tantas outras iguais.

Ajudei algumas meninas travestis durante a pandemia

Consegui viver bem durante a pandemia devido ao aluguel casas. O que precisei fazer foi negociar reajustes com meus inquilinos, diminuindo os preços e fazendo acordos. Houve mudanças no acolhimento das travestis que moram em meus imóveis também, dando preferência àquelas que não trabalhavam na rua, mas que atendiam em domicílio os clientes.

Tudo isso, para a segurança delas, e também, pelo meu marido, que faz parte do grupo de risco.

O fato de não pagar aluguel e ter renda foi muito importante para mim. Além disso, eu sou muito organizada. Todos os gastos são bem regrados, sempre deixo uma reserva.

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Meu marido é um grande parceiro. Ele que resolve as coisas para mim, inclusive burocracias e finanças. Eu realmente não sei como eu conseguiria lidar com a perda dele. Antes da pandemia eu costumava viajar muito. Com o lockdown, fiquei mais em casa, e pude aproveitar a companhia do meu marido. Também pude curtir e observar o crescimento dos meus animais de estimação. Coisas simples e importantes que me fizeram bem.

Tranquilizei-me muito com a vacinação. A maior parte da minha vida acontece fora de casa. Assim que meu marido tomou a dose única, me senti à vontade para retornar às ruas.

A Covid-19 tirou de mim três grandes amigas

Em muitos momentos, me arrependia de agir por impulso, mas, depois de 2 meses de quarentena, eu já não aguentava mais ficar trancada em casa sem ter o que fazer. Cozinhava, limpava a casa e já não havia com o que me distrair.

Uma das coisas que mais senti falta foi da presença das minhas amigas, que assumem o comando da minha casa quando me visitam – tiram a MPB, que costumo ouvir, e põem lambada enquanto bebemos cerveja.

As pouquíssimas pessoas que foram à minha casa durante a quarentena. Todos seguiam rigorosamente os protocolos de segurança, como, por exemplo, numa comemoração pequena de aniversário que fiz.

Perdi três amigas maravilhosas para à Covid-19. Nesse tempo, por outro motivo, também perdi Vida Bruno, que morou comigo durante a pandemia. Um amigo para todas as horas, momentos e empreitadas.

Estávamos planejando projetos para ajudar pessoas trans, público para o qual ele tinha uma sensibilidade fora do comum. Nesse período caótico, eu enxerguei a força que nós temos.

A batalha das travestis por respeito e dignidade

Vivemos com muito medo de transfobia, ouvimos palavras que nos rebaixam e reduzem a nada, mas a verdade é que resistimos e nos suportamos em meio a essa crise sanitária — que afetou tantos outros setores.

Eu consegui abrir portas para muitas, e outras vieram juntas, abraçando e fortalecendo o movimento. Eu entendi que nós temos, sim, poder, e assumimos esse poder que descobrimos em nós.

Podemos tudo!

Podemos e vamos crescer e ocupar lugares cada vez maiores.

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25 a 39 anos Ensino Superior Completo Mulher Trans Pará Parda

Queremos o expurgo da Covid-19

No primeiro ano da pandemia de Covid-19, eu passei algumas problemáticas relacionadas à moradia, já que eu residia no espaço cultural Das Liliths .

Eu sou Xan Marçall, uma kaaboka amazônida de Belém do Pará. Resido em Salvador há 15 anos. Sou travesti, filha de uma mulher branca carioca e de um pai preto e kaaboko da Amazônia.

Tenho 35 anos e vivo com HIV há 6 anos. Atuo como professora de Arte e Teatro na educação básica, trabalhando com crianças e adolescentes com métodos de criação colaborativa.

Faço parte de um coletivo de teatro em Salvador chamado Das Liliths, e juntes, realizamos um trabalho pioneiro nas artes, por meio da busca de histórias LGBTQIA+ ancestrais no processo de construção identitária do Brasil.

Ir para Salvador foi uma forma de tentar uma vida menos difícil do que a que vivia em Belém, sobretudo, porque a realidade amazônica, sendo eu, também, filha da periferia, me colocava frente a muitas adversidades.

O primeiro ano de Covid-19

Com o fechamento dos comércios e a não realização de atividades artísticas e culturais presenciais, não tivemos como gerar renda e fomos obrigadas a entregar o espaço. Assim, me deparei com alguns dilemas.

 Estive, inclusive, adoentada nesse período.

Encontramos uma nova moradia.

Nesta residência eu tive 19 dias de tranquilidade, até receber um aviso de evacuação emergencial do imóvel. A residência estava situada em uma região de alto risco de desabamento.

Fui para casa de um amigo que me hospedou durante 1 mês. Depois disso, audaciosamente, eu retornei para a casa que estava sob risco de desabamento e, passei a viver lá durante o ano de 2020 — acreditando que ela não ia desabar.

Não desabou!

Recebi cestas básicas, algo que me tranquilizou e me permitiu dar atenção a outros setores da minha vida. No entanto, o atendimento básico de saúde voltado à minha vivência positiva foi totalmente negligenciado.

HIV e negligência em meio à Covid-19

Minhas consultas essenciais foram interrompidas, como infectologista, clínico geral, dentista e exames ambulatoriais. Além disso, me prescreveram uma receita para eu poder pegar medicamentos e enfiar ‘goela baixo’, sem nenhum acompanhamento médico.

No fim de 2020, eu voltei para Belém para realizar um trabalho — a previsão era ficar apenas 15 dias e já vai completar 1 ano que estou no Pará.

Neste meio tempo, muitas coisas aconteceram, e o ano de 2021 foi envolto em problemas familiares e abandono de tratamento por falta de orientação. Tudo por conta de burocracias e falta de informação básica no sistema de saúde — que não é compartilhada.

Nesse turbilhão todo, pensei que ia surtar, embora, estivesse um pouco mais segura financeiramente, por estar na casa da minha família. Entretanto, os outros problemas ainda me alcançavam e afetavam.

Por fim, consegui resolver a minha situação e retomar meu tratamento — que teve intervalos de não adesão — e, então, fui compreendendo que não aderir ao tratamento é algo muito sério, mas que também não pode ser resumido a questões rasas, pois envolvem muitas camadas.

“Existem, sim, casos de pessoas que abandonam o tratamento porque não querem, e outras, que não conseguem aderir por falta de dinheiro, saúde mental, tempo de deslocamento, negligência no acompanhamento, informações obscuras e má qualidade de alimentação.”

HIV, Covid e outras questões…

O ano se encerra, e eu estou tomando as rédeas da minha cabeça, pensando que, nessa pandemia de Covid-19, além do expurgo desse vírus, queremos e reivindicamos também a cura da AIDS, que já tem 40 anos — e segue em curso.

Sigo, remediada, com uma quantidade química tóxica em meu organismo. Lutando, resistindo e esperançando por dias melhores.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Prta

“Será que pensam que, por ter HIV, não tenho capacidade?”

Chamo-me Marcia Moreira e gosto de ser chamada assim. Tenho 42 anos. Vivo com HIV desde 1999. Descobri durante a gravidez do meu segundo filho. Quando eu tive o diagnóstico, o meu primogênito já tinha 3 anos. Eu tinha 23 anos, ainda morava com meus pais e trabalhava em uma grande rede de supermercados.

Estava há 5 anos na empresa e trabalhava bastante — nunca tirei férias. Quando recebi o resultado do exame, eu nem sequer fazia ideia do que era o HIV. Eu só “sabia” que qualquer pessoa poderia se infectar, menos eu.

Tive um namorado, aos 17 anos, com quem perdi a minha virgindade e de quem eu adquiri o vírus. Ele era usuário de drogas injetáveis e sempre dizia que não faria o teste para HIV, porque ele sabia das altas possibilidades de ter, — não só pelo uso de drogas, mas por práticas sexuais deliberadas — e temia por isso.

Vivendo com HIV

Quando descobri minha sorologia, não entrei em contato com ele, pois fui informada de que ele não morava mais em Salvador. Depois dele, só mantive relações com o pai do meu primeiro filho, a quem procurei — tanto ele quanto o meu primogênito, são HIV negativo.

Busquei, também, o pai do meu segundo filho, que algumas pessoas afirmam ser positivo, no entanto, ele nunca me informou o seu diagnóstico. Meu filho mais novo, também é HIV negativo. Ao conversar com um médico, que acompanhava o meu tratamento, em dois dias ele conseguiu pôr muita informação em minha cabeça, e isso mudou toda a minha perspectiva.

Eu e meu filho fomos como um objeto de estudo para o Hospital das Clínicas, porque os processos ainda eram muito novos. É necessário falar sobre a gravidez de mulheres soropositivas, principalmente porque a desinformação faz parecer impossível. Eu mesma, fui induzida a fazer uma laqueadura logo um mês após o parto.

Uma violência que naquela época eu nem sequer percebia ou entendia. Outro momento difícil fazer e refazer os exames. Com a entrega dos resultados, o hospital inteiro olhava-me com estranheza, como uma plateia, assistindo-me receber o diagnóstico — que era o primeiro dado pelo médico a uma mulher.

Liguei para minha mãe e meu irmão me buscarem. Chorei muito, desmaiei. Ali eu constatei a quão problemática e falha era a questão do sigilo. Meus exames estavam bons, inclusive a carga viral estava controlada. Eu estava — e permaneci — muito deprimida.

O estigma sobre o HIV

Esperaram eu terminar o tempo de estabilidade, e, como eu colocara muitos atestados do CEDAP — que na época se chamava CREAIDS — sofri o estigma. A propósito, a mudança de nome para CEDAP foi uma luta do Gapa, no sentido de assegurar às pessoas assistência às vítimas de discriminação em sigilo, — garantido por lei — porque todo mundo que acessava aquele serviço era estigmatizado como alguém que tinha AIDS — ainda que não tivesse.

O momento em que eu fui demitida foi um dos piores da minha vida. Eu senti que, por ter HIV, eu era inútil.

Aquilo me fez tão mal. Fiquei mais deprimida do que qualquer coisa.

Eu tinha muitas expectativas, mas aquilo me frustrou. Até que, numa visita ao ginecologista, conheci uma mulher cujo filho nascera no mesmo dia que o meu, e que também era HIV positivo.

Ele me falou que o Gapa operava uma brinquedoteca no Centro Médico João das Botas. Lá, conheci um grupo de pessoas que vivem com HIV. Aquilo me cativou.

Fez-se abrir um novo mundo para mim. Ao conversar com a coordenadora, Gladys, em menos de duas horas ela me fez entender que eu era alguém que podia viver dignamente. Passei a integrar o Gapa, primeiro, pela brinquedoteca, e depois, como secretária.

Pandemia, HIV e vulnerabilidade social

À época, estávamos desenvolvendo um novo projeto de pesquisa quando, começamos a ter informações sobre o início da pandemia, ainda fora do país.

E a pandemia chegou abruptamente. Já trabalhávamos com PVH, que estavam com o benefício cessado, devido à gestão do atual presidente, que implicou em diversos cortes.

 Atendemos diversas pessoas em crises financeiras, que não tinham alimento em casa. Iniciamos as campanhas para ajudar essas famílias, arrecadando principalmente comida.

Este trabalho era realizado, mas as doações que conseguimos nesses tempos, já não eram como antes — vinham em menor quantidade. Houve fases muito difíceis. Até que, recebemos a notícia do falecimento de uma pessoa muito querida.

Diversos amigos foram morrendo, e nem todos eram por Covid-19, o que também nos impactou muito. Um de nossos coordenadores, uma pessoa muito saudável, adoecera drasticamente, a ponto de ficar em coma.  Nós não entendíamos e pensávamos: “se ele ficou dessa maneira, então, nós vamos morrer”. Isso nos causou pânico.

Ele conseguiu se recuperar, mas ainda com algumas limitações. De um dia para o outro, no trabalho, a ordem era: “vão para a casa agora, vocês não podem ficar aqui”, — eu perguntava — “como assim?”.

A ordem se repetia

Retornei à casa e passei 1 anos e 3 meses sem sair. Passamos por diversos acontecimentos.

As pessoas ao redor tentavam me proteger e pediam para eu tomar cuidado. Fiquei administrando doações de alimentos entre pessoas e seguindo à risca os protocolos de higienização.

Durante a quarentena, comecei morando numa casa que meu pai me deu, uma ‘kitnet’. Estava morando lá com o meu marido. Meu filho mais velho já é casado e tem um filho. Já o mais novo, estava morando com meus pais e minha irmã. Como minha irmã engravidou — pariu em janeiro — meu filho ajudava nos cuidados com os meus pais, mais idosos.

Já no mês de abril, minha mãe me deu uma casa com dois quartos, e, com a casa, meu filho veio morar comigo também. Ele se mudou já com a namorada, que passava mais tempo lá em casa do que na casa dela.

Após comprar uma moto, ele sofreu uma queda e machucou o punho. Agora, eu tinha mais essa demanda além do trabalho. Sendo que eu já achava ruim trabalhar em casa, com tantas reuniões e a dificuldade de concentração.

“Eu cozinhei péssimas comidas”.

Comi muita besteira, muito ‘fastfood’. Quase sempre inventavam algo, não tínhamos hora para dormir com tantas lives e bebidas que nunca terminavam — principalmente aos finais de semana.

Minhas tias me veem como uma potência. Destacam o meu otimismo e a forma como lido com a vida. Achavam que eu ficaria “apagada” depois de tudo que enfrentei, mas superei as inúmeras dificuldades.

Quando aconteceu o lockdown, meu filho e minha nora se infectaram com Covid-19. Corri todos os riscos possíveis e imagináveis cuidando deles. Eu fiquei muito tensa, porque nossa maior preocupação era com os meus pais.

Nós falávamos demais por ligações de vídeo e áudio. Chorávamos e, depois, chegávamos a evitar as ligações de tão melancólicas que se tornaram.

Todos muito sensíveis.

Seguia dizendo que iria dar tudo certo. E após todo esse tormento, cheguei a ganhar mais uma neta — do meu caçula.

Eu vi o parto dela, mas mantivemos à distância e os cuidados necessários. Isso foi uma felicidade — um nascimento em meio à tantas mortes. Eu sinto uma desaceleração e uma sensação de alívio, principalmente porque, após tanta agonia, eu tive um episódio de alta pressão arterial — marcando 23 por 12.

Fui internada e descobri um pseudo tumor na cabeça, — uma pressão intracraniana que me causa fortes dores de cabeça.

Uma Mulher-Maravilha

Sinto os sintomas de alguém que tem um tumor, porém, sem o tumor. Estou passando pelo processo de diagnóstico e tratamento. Por fim, esse período todo me fez perceber e entender que eu sou uma mulher muito forte — sou quase uma Mulher-Maravilha.

Depois de tudo que eu passei até hoje, eu posso afirmar que sou, sim, uma mulher forte.

E eu espero que as pessoas consigam se curar. Todos nós, sobreviventes, estamos tentando nos curar de algo, de alguma dor.

Eu espero que todos consigam se curar.

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60 anos ou mais Bahia Ensino Fundamental Completo Mulher Cis Parda

Perdi muita gente durante a pandemia

Perdi muita gente durante a pandemia. Tiveram duas pessoas que me fazem muita falta. Uma delas foi uma grande companheira de caminhada, que lutava comigo há muitos anos.

Chamo-me Rosária, nasci no Uruguai, mas moro no Brasil há 34 anos.

 Sou uma das filhas de um casal que gerou 11 mulheres. Casei-me, tive 3 filhas e saí do meu país devido à violência doméstica em meu matrimônio.

Meu marido era um homem muito forte, da Marinha, e muito violento, de modo que ninguém conseguia contê-lo ou mudar a situação. O pior momento, que me fez decidir vir de vez para o Brasil, foi quando fugi para a casa dos meus pais e, ao saber que meu marido estava a caminho da casa deles para me buscar, fugi com as minhas filhas — que eu levava sempre para todo lugar.

A fuga para o Brasil

Ao chegar na casa dos meus pais e não me encontrar, ele bateu nos meus pais. Depois, ele foi até a casa desses amigos, que tinha apenas uma porta, pela qual eu não poderia fugir. Saímos pelas janelas, usando cordões de sandálias que amarramos para descermos.

Depois desse acontecimento, prometi a mim mesma que jamais permitiria que algo como aquilo, acontecesse de novo.

Conheci alguém que gostava muito de mim, com quem entrei em contato, e que me apoiou, me trazendo para o Rio Grande do Sul, no Brasil.

Após 21 anos, voltei ao Uruguai e, mais tarde, retornando ao Brasil, descobri que esse outro companheiro também era violento.

Foi na Bahia que eu realmente soube quem era ele — que sempre ia e voltava para o Uruguai. Ele não trabalhava, eu não trabalhava, mas na minha casa sempre tinha tudo do bom e do melhor.

Ele me dizia ter uma transportadora de frutas, e eu acreditava. Quando ele ficou internado, no Rio Grande do Sul, fui ao encontro dele e descobri que ele era um assaltante de bancos muito perigoso — tanto no Brasil, quanto no Uruguai. Ele foi preso, e eu, que fiquei com muito dinheiro, sempre o visitava.

Uma mulher corajosa

Mas chegou um momento que o dinheiro acabou, as viagens de visitação cessaram, e ele disse não querer mais  saber de mim. Então, me vi liberta. Eu e minha filhas fomos vivendo e construindo nossas vidas.

Ao saber que alguém estava me procurando e oferecendo 50 reais — muito dinheiro na época — para quem me encontrasse, fui para Sergipe, onde passei 3 anos e voltei. Apaixonei-me por um baiano, com quem tive uma filha. Vivemos juntos por 12 anos.

Ele enfrentava o racismo de forma muito séria. Ajudei ele, que era usuário de drogas, mas, mesmo assim, ele ficou muito doente.

Teve diarreia, manchas pelo corpo, e diagnosticado com AIDS. Fiquei firme com ele, por 3 meses. No hospital, assistia palestras e recebia informações sobre HIV/AIDS, mas os grupos de risco que eles apresentavam — usuários de drogas, prostitutas, homossexuais — não se enquadravam no meu perfil. Por isso, fiquei tranquila. Mas, após uma médica conversar comigo, me dei conta de que eu poderia, sim, ter sido infectada, e, ainda, ter transmitido às minhas filhas e netas, pelo leite materno.

Elas não foram infectadas, mas eu recebi o resultado positivo para HIV. Meu mundo caiu, eu pensava que morreria a qualquer momento. Fui para o enterro do meu companheiro e não pude mais entrar em casa. Foi aí que encontrei o Gapa. Eu pensava “nunca mais ninguém vai me abraçar, me beijar ou chegar perto de mim”. Mas fui abraçada pelo Gapa, e minha vida mudou.

A rotina antes da pandemia

Passei a estudar, me informar, capacitar e a me engajar no ativismo.

O Gapa se tornou essencial na minha vida, em todas as áreas: emocionais, profissionais, relacionais.

Tenho problemas cardíacos, como “pré-infartos”, e minha filha passou a ser a minha companheira, cuidar de mim.

Antes da pandemia, eu trabalhava no Balcão de Justiça como mediadora de conflitos. Fazia, também, faxinas. Além disso, congelava alimentos para os clientes, na casa dela. Trabalhava quatro vezes por semana, ganhando 100 reais por visita.

Eu tinha um bom salário. E, nessa altura, chega à pandemia.

A pandemia desnudou os abismos sociais

Eu, como representante estadual da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP), me pus à disposição, com outras pessoas do ativismo, para articular estratégias para que a pandemia não afetasse o PVH, — principalmente com a retirada de medicamentos.

Queríamos, por exemplo, que todas as pessoas que tivessem a carga viral indetectável e o CD4 estável, recebessem medicação suficiente para 3 meses, para evitar que saíssem de casa.

É muito difícil falar apenas sobre mim, pois, a minha experiência é pensada sempre de forma coletiva, seja pela minha família ou pelo ativismo. Eu me doo.

Recebi muitas ligações e isso me incomodou porque, diante das limitações, eu não conseguia atender como atendia antes. Eu constatava o desespero das pessoas, a vontade de suicídio das pessoas, a falta de alimento e suporte.

A partir disso, eu me retirei de todos os grupos de movimentos que participava, e fiquei apenas me dedicando ao Gapa e a Rede de Comunidade Saudável.

Tivemos muitos problemas, mas, mesmo assim, ajudamos as pessoas a fazerem o recadastramento do SUS e a inscrição para o Auxílio Emergencial.

Nunca tive medo de morrer. Saí de uma reunião, entrei em casa, e passei um ano e meio sem sair — ninguém entrava lá também. Minha filha era quem fazia minhas compras e pegava a minha medicação.

O pavor da pandemia

Eu me preocupava muito com uma outra filha que mora comigo, pois ela tem escoliose, de modo que o osso da coluna pressiona o pulmão e, com esse problema respiratório, ela fazia parte do grupo de risco.

Assim como eu, devido ao problema cardíaco. Contudo, eu nem lembrava de mim, só pensava nela. Tudo que chegava em casa era deixado na porta, eu recolhia tomando todos os cuidados, usando muito álcool e depois lavava.

Após ter tomado às duas doses da vacina, fui diagnosticada com Covid-19. Busquei acompanhamento médico, fiquei internada no Couto Maia e, enquanto eu estava lá, soube que a minha filha também havia testado positivo para o coronavírus.

Não faço ideia de como isso pode ter acontecido, diante de tantos cuidados tomados.

A minha felicidade é estar viva, e ver muitas das pessoas que conseguimos ajudar, vivas também.

Aprendi a ter fé e a acreditar mais em mim, porque, antes desse momento difícil, eu não acreditava muito em mim.

 Mas, hoje, eu acredito, e sei que tenho forças para fazer muita coisa.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Médio Incompleto Homem Cis Prta

De todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior

Praticamente, de todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior. No final de 2019, começamos a trabalhar na praia, alugando piscinas, e fomos morar juntos, dividindo aluguel com a minha mãe.

Chamo-me Heberti, tenho 25 anos, sou ator e estudante Teatro na UFBA.

Estou presente na militância partidária do movimento estudantil, trabalho com o Secretário de Cultura do PT, e sou Diretor da União Estadual dos Estudantes da Bahia.

Uma infância de relacionamentos difíceis

Meus pais se separaram quando eu tinha apenas 14 anos. Os desafios da minha história começam antes mesmo de eu nascer: um “golpe da barriga” ao contrário.

Meu pai descobriu que minha mãe pensava em se separar dele e, então, ele decidiu furar o preservativo, pois sabia que, em 1995, uma mulher preta, solteira e grávida, enfrentaria diversos dilemas.

Quando ela descobriu a gravidez, comunicou-lhe, que, rindo, disse que já sabia que isso aconteceria, que era proposital, — e deu certo. Ela se manteve casada com ele.

Nunca fui o filho favorito, desejado. Sempre fui uma criança afeminada e tímida.

Expressava meus sentimentos abertamente. A primeira violência homofóbica de que tenho lembrança de ter sofrido foi, ainda, aos 6 anos, quando, na rua, meu pai me agarrou pelo braço e gritou: “fale como homem”.

A partir desse dia me tornei ainda mais calado e atento a esse tipo de agressão. As outras crianças me batiam, me trancavam no banheiro da escola, e os adultos faziam “piadas”.

A escola e a descoberta da sorologia

Desenvolvi um trauma com a escola. O período do Ensino Médio foi mais tranquilo.

Descobri a minha sorologia em dezembro de 2016, enquanto participava de um evento com o Gapa.

Eu já realizava estudos sobre HIV/AIDS há cerca de um ano. Naquele dia, usando meu figurino de apresentação para aquela ocasião, “inventei” de fazer a testagem.

Deu positivo.

Peguei a minha mochila, saí do evento sem que ninguém visse, fiz o exame comprobatório e retornei. Lá, contei para uma colaboradora do Gapa de confiança.

O meu mundo só não caiu porque eu já tinha informações suficientes para entender que, aquele diagnóstico, não seria o meu fim.

Consegui resolver tudo muito rápido. Em uma semana eu já iniciara o tratamento, e estava tomando a medicação.

Fiz tudo sozinho, sem contar para ninguém. A primeira pessoa da minha família para quem contei foi a minha irmã mais nova, sendo minha cúmplice em tudo, porque eu precisava que alguém tivesse ciência caso, algum efeito colateral dos remédios, me acometesse.

O que também me manteve mais tranquilo, na época do descobrimento, foi o fato de estar namorando um garoto mais novo, com quem eu ainda não tinha me relacionado sexualmente.

 Após seis meses, eu já estava indetectável. O tratamento foi muito tranquilo.

Sempre fui extremamente agitado, do tipo de pessoa que acumula demandas e faz mil coisas simultaneamente. Passava o dia na rua e ficava extremamente sobrecarregado. Mas não eram apenas as demandas do cotidiano que me sugavam, — além de não ser tão simples lidar com o diagnóstico, pois havia uma rotina nova a ser incorporada.

Eu também perdia muita energia com as minhas relações interpessoais, principalmente as românticas.

Desgastes emocionais

Tive alguns parceiros muito problemáticos. Eu tinha muitas crises de ansiedade, crises depressivas. Cheguei a tentar suicídio, ingerindo diversos remédios, inclusive, os antirretrovirais.

Passei três dias internados, fazendo lavagem. Foi este o momento em que toda a minha família soube da minha sorologia.

Depois de 2017, as coisas se tornaram mais tranquilas, eu comecei a ter noção de que precisava equilibrar tudo o que eu fazia, porque seria impossível dar atenção a tudo que eu me propunha.

Não conseguiria abraçar o mundo.

Relacionamentos tóxicos

Em 2019, eu iniciei um relacionamento. Eu só decidi namorar essa pessoa, pois, eu era tratado como um deus na terra. Ele agia como se tivesse conquistado a pessoa mais perfeita do mundo.

Ninguém nunca havia me tratado assim. Eu passei uma boa parte da infância, sozinho, apanhando de outras crianças na rua e sofrendo humilhações do meu pai em casa. Ver alguém me tratar daquela forma me parecia interessante.

Estive preso em um relacionamento abusivo

Ele começou a me manipular, exigia que eu vivesse para ele, porque “ele vivia para mim”. Uma obsessão.

A manipulação era tamanha, que ele chegava a me chantagear para mantermos relações sexuais com outras pessoas, ao mesmo tempo.

Em meio ao caos, ele também se descobriu soropositivo. Como eu era obrigado a manter relações sexuais sem preservativo, eu fui reinfectado.

Ele já tinha até invadido o meu quarto com uma faca, após uma discussão.

Desenvolvi insônia.

Eu tinha medo de dormir, de ser atacado, chegava a passar mais de 48h acordado, e precisei passar a tomar medicamentos para dormir. E não apenas para dormir, mas para conter as crises de ansiedade, que foram se tornando mais comuns.

Não foi fácil, mas consegui me livrar desse relacionamento.

Eu fiquei o tempo todo em casa, com ele.

Quando consegui, enfim, me libertar, também senti uma necessidade muito grande de sair de casa. Por isso, acabei descumprindo a quarentena. Durante a pandemia, eu precisei encontrar formas de trabalhar, como a arte, e comecei a postar monólogos, nas redes sociais.

Com relação ao meu tratamento, moro perto do Hospital das Clínicas, onde eu sou acompanhado. Então, não enfrentei grandes dificuldades. Eles passaram a liberar remédios para dois, até três meses.

Em um relacionamento com a solitude

Hoje, eu vivo um novo relacionamento. Todas as minhas relações sempre foram acolhidas pela minha família, e me sinto privilegiado nesse aspecto. A minha relação com a minha mãe é ótima, mesmo sendo evangélica. Não existe distância entre nós.

Ainda estou me curando dos traumas.

Mas a minha relação com meu pai não é boa. Eu, nem sequer, o chamo “pai”, ou o considero como tal, — todos sabem que me refiro a ele quando digo “o outro”. Apenas cumpro as minhas obrigações sociais como “filho”.

Agora, que ele está extremamente doente, preciso ir ao hospital e ajudar. Eu vou, mas faço apenas o que preciso.

Eu espero que quando a pandemia acabar, eu possa voltar à rotina, retomando contatos com tudo e todos que deixei de acessar desde dezembro de 2019, — como as salas de ensaio, os teatros e as pessoas.

Enquanto isso não acontece, vou vivendo essa realidade com o maior aprendizado, até então, que tem sido lidar, não com a solidão, mas com a solitude.

 Aprendi a ficar comigo.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Mulher Cis Prta

Eu sentia falta da minha rotina

Eu sentia falta da minha rotina. Esse foi o maior impacto que senti. No começo, eu pensava que ter aquele tempo seria bom, que conseguiria ter mais calma. Mas à medida que o tempo passava, senti que fui perdendo o controle. Apesar de ter mais tempo, eu não conseguia produzir por conta da ansiedade e da pressão.

Tenho 28 anos, sou uma mulher preta, cotista e feminista. Nascida e criada na região do subúrbio ferroviário, numa família evangélica pentecostal, com 3 irmãs e um irmão.

Uma infância cheia de limites, e tolhida, principalmente em questões de liberdade e autoconhecimento corporal. Apesar disso, desde muito nova, eu era questionadora.

Uma ideia falsa e uma rotina verdadeira

Com 17 anos, quando tive a primeira oportunidade de fazer um curso que oferecia uma bolsa com um valor simbólico, por exemplo, com o dinheiro que recebi – comprei a minha primeira calça – peça de roupa proibida pela igreja e, consequentemente, pelos meus pais.

Era como um grito de liberdade.

Meus pais não receberam muito bem, me apontavam como revoltada, insubmissa. Minha irmã mais velha, dizia: “como você está tendo essa ousadia? Nem eu mesma tive essa coragem”.

Mas sempre que eu identificava um desejo meu, eu buscava caminhos para realizá-lo.

obrigada a frequentar, pois em diversas vezes, me sentia desconfortável.

Não sei como e nem com quem aprendi, mas eu desenvolvi esse senso de estabelecer os meus limites.

Conhecendo o mundo

Essa experiência de conhecer o mundo, saindo das vivências domésticas, e fora do bairro, me fez desabrochar. Após entrar na faculdade, com 18 anos, no bacharelado em Direito, paguei meu primeiro curso profissionalizante: um curso de maquiagem, que era algo que — também, segundo a igreja — eu não poderia usar.

Tornei-me maquiadora profissional, atuante na área da beleza e, mesmo com todas as questões envolvidas, meu pai foi na minha formatura. Essa área, inclusive, se tornou muto importante para mim, pois é como uma fonte de liberdade e expressão.

O curso de Direito é muito técnico, e a maquiagem é como uma manifestação mais completa de quem eu sou e do que eu sinto. Outro momento importante para mim, foi quando, aos 18 anos, após passar pela transição capilar, deixando o cabelo crescer, fiz o ‘big shop’, que elimina, por completo, a química do cabelo.

Na semana seguinte ao corte, era o casamento da minha irmã. Mais uma vez minha família me fez retaliações, diziam que eu queria aparecer, como se algo que é meu não fosse.

 Era o que meu pai dizia: “Você fez algo em seu cabelo, eu não o reconheço.”

 Aquilo me chateou, mas não me fez desistir dessa trajetória identitária.

Hoje em dia, conversamos sobre essas pautas, e a minha mãe, que antes não se reconhecia enquanto mulher preta — por questões de vivências pessoais e uma série de influências que se cruzam pelo caminho —, já se vê como tal.

A rotina de viver durante a pandemia

Recebi a pandemia num momento de reencontro com a universidade. Eu já iniciara os estudos numa faculdade privada, pelas cotas, mas por uma série de problemas estruturais — que a maioria de nós já conhece — precisou quebrar esse vínculo.

 Fiquei um tanto perdida, sem saber se queria voltar, se teria uma oportunidade para retornar, ou não. E, justamente, neste retorno, no momento de ressignificação, para mim, da vida e ambiente acadêmicos, recebemos a notícia de que as aulas presenciais estavam suspensas.

Eu tinha uma rotina enlouquecida, acordando às 5 da manhã, voltando para casa depois das 22h — estágio de manhã e à tarde, e faculdade à noite. Muitas vezes, estudando e me alimentando nos trajetos entre um compromisso e outro.

Exatamente quando a pandemia começou, eu estava começando a escrever o TCC. Como disse, era exatamente o meu processo de reencontro na universidade — fazendo novos amigos e criando laços de amizade.

Foi muito difícil me deparar com a obrigatoriedade do ensino à distância, que eu considero frio, e só piorou quando a minha orientadora, grávida, contraiu Covid-19.

A faculdade se isentou da responsabilidade de me disponibilizar outro orientador, e precisei fazer tudo praticamente sozinha.

Foi muito estranho…

Eu me sentava na frente do computador e não conseguia escrever absolutamente nada. E, depois de tudo, a minha defesa para a banca aconteceu por uma ligação de áudio no WhatsApp.

Foi estranho. Eu senti como se não tivesse entregado aquele trabalho.

As perdas mais próximas, de familiares, nesse período, não foram motivadas pelo coronavírus. Foi um momento exaustivo e preocupante. Toda a rotina de cuidados, lavar tudo, passar álcool em absolutamente em tudo, era uma preocupação que beirava o desespero.

Meus pais ficaram doentes, sendo que meu pai de uma forma mais agravada. Contudo, não sabemos até hoje se foi Covid-19 ou não, porque a orientação para ir ao médico era apenas se os sintomas chegassem em um nível muito sério, — caso contrário, os hospitais poderiam ser focos de contaminação.

Tivemos medo de perder alguém, mas isso não aconteceu. E toda essa movimentação pelo medo de perder pessoas, me fez perceber que eu que eu gostava de gente.

Eu percebi que gosto de pessoas, de estar com elas, de interagir e lidar.

Vi pouquíssimos amigos, e sinto muitas saudades. Anseio muito pelos reencontros, pelos abraços. Eu realmente espero que daqui para frente, nós consigamos nos reestabelecer mentalmente

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25 a 39 anos Bahia Ensino Fundamental Completo Mulher Trans Parda

Eu não pude parar durante a pandemia

Durante a pandemia, fiquei sem ir ao interior — e sem visitar a minha mãe — por 2 anos. Nos comunicávamos por telefone. Quando tudo fechou, eu fiquei um pouco assustada.

Nasci no interior da Bahia, em Cícero Dantas. Após a separação dos meus pais, quando ainda tinha 3 meses, fui com minha mãe morar em Ribeira do Pombal.

Tive pouco contato com meu pai. Minha mãe, doméstica, sempre me aceitou, e eu, desde muito nova, sempre demonstrei a minha essência.

Minha mãe tem uma mente muito aberta, e nunca me discriminou.

Uma vida bem distante da pandemia

No interior, onde morávamos, existiam outras mulheres trans. Aos 15 anos, comecei a tomar hormônio.

Aliás, também vivi a prostituição normalmente, – fazia programas em postos de gasolina, com caminhoneiros e nas festas que aconteciam na cidade – inclusive, em cidades vizinhas.

Estudei até a 8ª série do ensino fundamental. Era uma vivência que eu avalio como tranquila, com poucas importunações, apenas com algumas piadas e coisas do gênero.

Na maioria das vezes, eu não me importava tanto com as situações, – a não ser que eu me sentisse agredida. Acredito que eu tinha essa postura por ser muito acolhida em casa, com a minha mãe, que nunca me discriminou e sempre me defendeu.

Isso mostra a importância do apoio familiar para pessoas como eu. Com 18 anos, uma amiga, também trans, me chamou para conversar, e disse ter um apartamento em Salvador, que eu poderia — e deveria — tentar passar um tempo aqui para tentar mais oportunidades.

Vivendo em Salvador

Aceitei a proposta. Me mudei para Salvador, e gostei da cidade. Hoje, com 28 anos, ainda moro na capital baiana. No início, dividia essa casa com outra menina trans.

Mas, depois de um tempo, senti necessidade de morar só, ter o meu canto. Senti precisar de mais privacidade para atender os meus clientes, como garota de programa, e, ter a minha liberdade.

A pandemia

Uma amiga do interior me ligou, desesperada, dizendo que eu deveria voltar para o interior por conta da pandemia. Neste momento, consegui manter a calma e respirar fundo.

Primeiro, porque eu tinha as minhas economias — eu sempre guardava uma parte de todo dinheiro que eu fazia atendendo, tanto nas ruas, quanto em sites.

Também, porque recebi ajuda, apoio, cesta básica. Não pude parar os atendimentos em meio a pandemia. Era inviável fazer isso nas ruas, mas sempre que um cliente entrava em contato, eu o encontrava.

Mesmo com as minhas economias, uma hora, eu iria precisar do dinheiro, ora para pagar o aluguel, ora para as minhas despesas básicas.

Alguns dos clientes se preocupavam com protocolos de segurança e tinham mais medo, mas, outros não. Apenas diziam precisarem espairecer a cabeça, dar uma volta na cidade — como se eu fosse a distração para toda aquela pressão da quarentena, de estar convivendo tanto com a família.

Eu não podia dizer não

Além dos programas, eu performava em casas de show. Contudo, com as casas fechadas, não tínhamos como atuar. Só à medida que começaram as flexibilizações das normas, é que nós pudemos, pelo menos, fazer os shows através de lives.

Contudo, não era a mesma coisa, na verdade, aparentou ser bem estranho não ter os aplausos, o calor humano, a “churria”.

Todo esse processo me fez ficar muito ansiosa e, com isso, comecei a comer mais, e engordei. Fique frustrada, pois, trabalho com o meu corpo.

Sentia muita vontade de que as coisas voltassem ao normal, que eu pudesse ir à praia e tomar uma cerveja.

Quero muito realizar o sonho de ter uma casa própria. Não quero voltar para o interior. Espero poder tirar logo essa máscara — que eu não suporto. E que, nós saiamos desse momento, colocando em prática tudo o que dizemos ter aprendido sobre amar o próximo

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Ensino Superior Incompleto Mulher Trans Parda

Encontrei amparo em Deus

Eu converso muito com Deus. Apesar de todas as tristezas que tive, e todas as dores que passei, acredito que Deus é a essência da vida. Independentemente de ser mulher trans, Ele é uma fortaleza, que me concedeu a cura.

Meu nome é Lorrany, tenho 40 anos, e minha história de vida é bem atribulada. Pai e irmão policiais civis — e o desejo, era que eu também me tornasse policial.

Uma crianção dolorosa

Tive uma criação extremamente rígida e machista. Já percebiam que eu era diferente.

Além disso, as diversas religiões cristãs que estavam no meu contexto — da Assembleia de Deus até Adventista do Sétimo Dia e Testemunha de Jeová — também eram usadas na tentativa de exercer controle sobre a minha forma de existir.

Meus irmãos jogavam futebol – um deles, em quem eu achava que deveria me inspirar, chegou a ser profissional – e sempre ouviam “piadinhas” dos amigos relacionadas a mim.

Por isso, me agrediam em casa. Recebia murros e pontapés. Minha família não aceitava as minhas diferenças e o meu jeito de ser. Eu via meu pai brigar com minha mãe por minha causa, a ponto de dizer-lhe — “escolha: ou o seu filho, ou eu”.

A fuga

 Aos 16 anos, fugi de casa. Fui morar em uma palafita na periferia com um, já falecido — assassinado —, colega gay.

Após o ocorrido, liguei para minha a mãe, desesperada. Ela me disse para procurar uma casa, que ela se responsabilizaria pelo pagamento do aluguel.

Ela me apoiou em todos os momentos e, até me ajudou a mobiliar a casa e me sustentar.

Com 24 anos, já tendo o corpo que eu sempre quis ter, e terminado precocemente o segundo grau, decidi voltar aos estudos.

Em meio a tudo isso, eu ainda estava vivendo um outro drama: o de ter problemas devido ao silicone em que havia colocado em meu corpo. Cheguei a ficar 4 anos em uma cadeira de rodas, e mais 3 anos usando muleta.

Minha mãe me deu todo o suporte. Neste percurso, me envolvi com outros homens, até conhecer um rapaz de São Paulo. Ele me disse precisar ir embora da cidade, com isso, eu abri as portas da minha casa para ele.

Deus sempre oferece o melhor caminho

Ele era sócio de uma rede de lojas. Usou o meu nome para seus próprios negócios e, acabei contraindo as dívidas que ele tinha, que eram muitas — a ponto de cerca de cinco rapazes chegarem a perseguir e, quase matar ele, que fugiu de volta para São Paulo e deixou tudo comigo.

Comecei a trabalhar com essa loja, pagar as dívidas e investir. Comprei outras duas casas, construí uma nova vida, comecei a faculdade — de enfermagem — e fiz a minha vida mudar.

Por causa do meu curso na faculdade, passei a estagiar em hospitais. Durante a pandemia, eu estive atuando na linha de frente do combate à Covid-19. A minha vida sempre foi urgente.

Meu contexto sempre foi de perigo. A morte sempre esteve perto, à espreita.

Enquanto, para muitas pessoas, o vírus apresentou uma realidade distópica, para mim, ele era só mais um risco. Um entre os tantos que eu corri, corro e supero.

Não tive medo. Fui “jogada” dentro de um hospital de campanha com pacientes infectados pelo coronavírus e, em vez de ter medo, eu entendi ser uma oportunidade para que eu, mulher trans, tão excluída e preterida no mercado de trabalho, pudesse ter alguma experiência e aprendizado.

Isso revela as desigualdades que são um abismo entre nós. Algo que para uns é novo e assustador, para outros, é o triste cotidiano.

Os planos de Deus

Era a minha primeira experiência de trabalho. Eu vi pessoas morrendo na minha frente, muitas pessoas, e aquilo me impactou, — mas não a ponto de me amedrontar e paralisar. Eu não me abstive de sair, e seguir a vida.

Sempre senti precisar viver tudo o que quisesse, logo. Principalmente diante dos riscos.

A minha saúde mental dependia disso. Vi colegas sucumbirem também por demandas mentais — e eu, prezei pelo que necessitava. Não consegui fazer quarentena. Fui diagnosticada com Covid-19, tive febre alta, perdi o paladar, mas nem nesse momento, eu senti medo.

Mantive distância das pessoas e as avisei do meu diagnóstico. Só temi por minha mãe. Ela é uma amiga para mim.

Nós brincávamos, dançávamos e conversávamos. Dei todo suporte a ela, tanto que, devido aos meus estímulos — colocando-lhe medo, por exemplo, ela parou de fumar.

Foi possível me manter durante esses tempos, morando só, porque recebi bolsas dos estágios voluntários, além de ter recebido cestas básicas. Meu pai morreu durante a pandemia. Ele contraiu coronavírus, mas foi um câncer de garganta que o levou. Ele nem sequer falava comigo, mas pediu para eu ver o seu exame.

Naquele momento eu disse-lhe: “se eu te fiz algum mal, e fui uma pessoa ruim, me perdoe”.

Ele disse estar muito orgulhoso de mim.

O que mais quero, é viver.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Médio Completo Homem Cis Parda

Descobri o meu diagnóstico de HIV aos 48 anos

Descobri o meu diagnóstico positivo para HIV em 2 de fevereiro de 2007, aos 48 anos. Tanto eu, quanto a minha esposa, nunca soubemos como pegamos.

Meu nome é Robson, tenho 52 anos, e fui criado em Salvador. Fugi de casa aos 7 anos, pois passava por diversos conflitos. Sou fruto de uma relação da minha mãe com um homem casado, por isso, ela foi mãe solteira.

Com o passar dos anos, ela conheceu — e passou a morar — com um cidadão que se tornou o meu padrasto, o mais próximo que tive de um pai.

Naquele tempo, a ideia era de que “um bom psicólogo é uma boa surra”. Fui criado numa família com base evangélica, que apontava tudo como pecado. Eu apanhava bastante.

Fugindo de casa

A partir disso, comecei a ensaiar fugas: fugia para a esquina, depois, de Candeias para Salvador, de Salvador para Itabuna e, com 11 anos, eu estava em São Paulo, sozinho.

Fugia porque apanhava. Depois, comecei a fugir porque não conseguia mais trabalhar. E foi assim que eu aprendi a viver. Por isso, sempre disse para mim mesmo que, quando eu pensasse em colocar filhos no mundo, eles jamais seriam criados por padrastos, mas por mim. Para que eles não passassem pelo que passei.

Conheci minha esposa na Praça José Ferreira, em Fortaleza. Eu, com 22 anos, e ela, com 17. Ela também vivia em situação de rua, e estava toda suja de cola de sapateiro — tinha uma história de vida muito parecida com a minha.

Pelos caminhos da vida

Tivemos 3 filhos. Tenho uma filha lésbica e, acho importante dizer isso porque, apesar da criação evangélica, e de ser evangélico, eu não concordo com o que dizem sobre pessoas como a minha filha — que são lésbicas ou que são ‘diversas’.

Eu entendo que eu devo dar a ela o mesmo que Deus dá: amor e respeito. É nisso que eu acredito.

Aprendi a pensar assim depois que um amigo meu me mostrou o quanto eu era ignorante, quando pensava que minha filha tinha que corresponder às minhas expectativas. Ele dizia:

“Veja tudo o que você esperava que sua filha fosse; uma mulher inteligente, bem-educada, com caráter, estudiosa, trabalhadora. Ela é tudo isso! Você também quer escolher com quem ela deve amar e namorar? Isso não lhe cabe! Você está perdendo a sua filha”.

Aquilo me fez mudar…

Descobrindo o HIV

Descobri o meu diagnóstico positivo para HIV em 2 de fevereiro de 2007, aos 48 anos. Tanto eu, quanto a minha esposa, nunca soubemos como adquirimos, ou de quem adquirimos.

Quando ainda planejávamos os filhos — que são HIV negativo — eu disse-lhe que, caso nos separássemos, eles ficariam comigo. E quando a separação aconteceu, meus próprios filhos escolheram ficar comigo.

Não conhecia e nem sabia o que era ter HIV. Nesta época, pensei que teria apenas mais 2 ou 3 meses de vida. Cheguei a pensar em suicídio.

Vivendo com HIV

Um dia, em Belo Horizonte, na Praça Afonso Pena, um lugar que passa ônibus a todo minuto, eu cogitei me lançar na frente de um daqueles transportes coletivos, mas, por incrível que pareça, em quase uma hora esperando, não passou um ônibus sequer.

 A partir daquele momento, passei a tomar um litro de conhaque por dia. Depois, já de volta a minha cidade, meu filho me chamou e disse:

“O HIV não vai lhe matar, mas o senhor está se matando”.

Então, ele me deu o endereço de um Serviço de Atendimento à Pessoas Vivendo com HIV — as nomenclaturas na época eram outras. Lá, conheci uma mulher que me disse viver com o vírus há 25 anos — foi quando eu entendi que iria sobreviver, que havia, ainda, muita vida por vir.

Tive a melhor faculdade que qualquer ser humano poderia ter: o mundo; e o melhor professor: o sofrimento.

Aprendi a me virar de diversas formas, exceto cometer crimes. Sempre trabalhei. Cheguei a levar compras de pessoas do mercado até em casa, lavar carros, vender picolé, e jornal.

 Foi com os jornais que aprendi a ler. Tinha muita curiosidade de entender o que eu estava vendendo. E lendo jornais, vendo as notícias, — entendi a importância de estar informado, para ir à luta.

O lugar de fala de uma pessoa com HIV

Entendo meu lugar como uma pessoa que vive com HIV, mas também como negro, e, ainda, entendo as relações entre o racismo e o classicismo, que oprimem de forma conjunta.

O preto sofre discriminação por ser preto, mas também, de forma agravada por ser pobre. Sei bem o que é isso. Mas venci. Meu filho se formou jornalista, e eu, até na área de caldeiraria trabalhei; e, trabalhando nesse setor, tive a oportunidade de viajar e conhecer 26 capitais do Brasil e 6 países.

Cheguei a ir para a África. Fiquei em São Paulo, passei por Curitiba. Contudo, meu projeto era encontrar o meu filho em Salvador, pois tínhamos planos de abrir um hostel em Fortaleza — em Canoa Quebrada.

A chegada da pandemia

Estava tudo programado para isso. Quando ouvimos sobre as notícias do coronavírus, ainda fora do país. Pensávamos que a pandemia seria apenas mais uma daquelas viroses que sempre nos acometem logo após a época de carnaval. Pensávamos que duraria uma semana.

Mas a pandemia destruiu todos os meus projetos, visto que acabou com o turismo. Retornei para São Paulo, para a casa do meu irmão, na tentativa de redirecionar a vida, mas quando cheguei lá, tive de ficar preso e com medo, transtornado, como todo o mundo.

Com a vida parada, precisei pensar em formas de me manter durante todo aquele momento que se iniciava. Com isso, comecei a trabalhar como motorista de aplicativo. Usava um carro que não era meu e, infelizmente, tive que devolvê-lo quando parei de trabalhar.

E isso não aconteceu apenas comigo, mas com muitos que trabalhavam como motorista de aplicativo, porque já não era mais viável, dado que, com o lockdown, as pessoas não utilizavam mais o serviço.

De volta à Salvador

Voltei à Salvador para tentar atuar como motorista, mas, encontrei uma grande dificuldade. Não perdi ninguém próximo durante a pandemia.

Acredito que não me infectei, ou que fui assintomático. Não segui a quarentena porque não tinha saída: eu precisava trabalhar diariamente.

O máximo que podia era me afastar um pouco mais das pessoas. Não tive dificuldades para conseguir os medicamentos antirretrovirais, mas foi bem difícil ter acesso aos médicos infectologistas. Foi muito difícil fazer os exames e marcar as consultas.

Não tive medo de morrer porque fui treinado pela vida. Eu dormia debaixo da ponte, entrava em baldes de lixo para conseguir ter o que comer.

Vivo com HIV em um país com um governo que não me assiste. O que mais poderia temer?