Meu nome é Valéria Azevedo e coordeno o Serviço Social e Voluntariado do Hospital Municipal do Idoso Zilda Arns, em Curitiba. Nossa história com o Nariz Solidário começou em 2017, quando um jovem cheio de empatia, sonhos e ideais, procurou pelo Voluntariado do Hospital.
Chamou-me a atenção a maneira de se colocar no lugar do outro, desenvolver estratégias com responsabilidade e profissionalismo, através da figura do palhaço caracterizado de época – diferenciais observados quando acompanhamos a atuação dos voluntários do Nariz Solidário.
Sempre desenvolvendo o trabalho através da arte, chegando aos pacientes, familiares e equipe de uma forma muito lúdica, leve e harmoniosa. Levando a uma reflexão de que o vivido no passado e no hoje serão, amanhã, frutos para um futuro cheio de aprendizado.
Os voluntários voltam virtualmente
foram afastados de suas atividades, aquela presença que nos fazia esquecer por alguns instantes da doença, da dor e do sofrimento, agora estava tão distante, sem previsão de retorno.
Foi então que eles se reinventaram, inovaram e chegaram até nós de uma forma que não colocou ninguém em risco.
Produziram uma série de vídeos, disponibilizados semanalmente, com conteúdos que apresentavam a figura do palhaço através de reflexões importantes sobre cuidado, como por exemplo: consciência e, acima de tudo, esperança – esperança de que isso tudo vai passar.
Esperança renovada
No dia 20 de outubro, essa esperança foi renovada, pois pudemos ter a presença da ONG Nariz Solidário seus voluntários, em uma participação especial no evento de implantação do protocolo de gerenciamento da dor, em que ela foi incluída como o quinto sinal vital a ser avaliado pela enfermagem.
Após a coleta, o dado é lançado no prontuário do paciente e passa a ser monitorado por toda equipe médica.
Ao final do evento, foram apresentadas técnicas que tratam a dor sem medicamentos.
Para nós, da ONG Nariz Solidário, que trazemos com alegria aos hospitais a figura do palhaço.
Com o objetivo de contribuir com estratégias que remetam o idoso a memórias afetivas e agradáveis.
Essa estratégia tem por objetivo desconectar o paciente, por alguns instantes, do processo de adoecimento, que gera dor e sofrimento.
Quando eles chegam, tudo muda
A gente fala muito das transformações que vimos nos pacientes, mas posso registrar os impactos no meu próprio trabalho.
Em muitos momentos em que eu precisei ser ouvida, desabafar, ou até mesmo rir de algumas piadas sem sentido, partida ou destino.
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Em meados de agosto de 2021, após mais de um ano de pandemia, em um Hospital de Campanha referência em atendimento à Covid-19, um menino de 17 anos deu entrada no hospital em estado grave.
Durante todo o período de internamento, as equipes assistenciais trabalhavam de maneira triste.
Estavam fragilizadas pela mãe, que sofria, tristes pelo jovem, entubado com poucas chances de sobrevida, tristes pela pouca estrutura psíquica que essa família tinha para lidar com a situação e, desolados pelo agravamento da pandemia de Covid-19.
Acolhimento em meio à Covid-19
Em minha função como psicóloga, acolhia a família, e tentava auxiliar os pais a criarem estratégias internas para lidar com o sofrimento.
Ao final da terceira semana, o quadro clínico de Covid-19 se agravou, fazendo com que a equipe médica tivesse que alertar à família. Naquelas condições, haveria poucas chances para o paciente resistir.
Infelizmente e por alguma razão, a comunicação emitida sobre risco iminente do paciente não resistir, não chegou à família, que acabou por realizar a visita um tempo depois do comunicado.
Por coincidência, a chegada à recepção para comunicar a visita acabou acontecendo no mesmo momento em que o jovem evoluiu para óbito, devido ao agravamento da pandemia.
Não deu tempo. Ao serem direcionados para a sala de acolhimento, a angústia se instalou por todo o hospital.
“Por favor, não façam isso comigo”
Assim que entrei na sala, direcionei-me para o lado da mãe, que estava acompanhada da assistente social e do médico.
A mãe estava com os olhos marejados. Dizia em um tom de súplica: “por favor, não façam isso comigo”.
O médico iniciou o seu discurso retomando as últimas 24h e finaliza sua fala comunicando o falecimento aos pais.
“A dor da perda não tinha uma forma exata de ser expressada, eram gritos, olhares, lágrimas e pedidos de que disséssemos que era mentira.”
Mais uma vítima da Covid-19
Mais de 1 hora se passou até que conseguimos orientar os próximos passos e encaminhar a mãe ao atendimento em uma unidade básica de saúde.
Ao fechar a porta, lágrimas da equipe se despencaram; sofrimento pela dor da mãe; desgaste emocional após o atendimento de tantas histórias semelhantes.
A morte não pede licença, não avisa, não tem piedade, não espera uma expressão de afeto e nem um último adeus, ela aparece e muda toda uma história. Aproveitemos o hoje, o agora
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Sou profissional circense e palhaça no Nariz Solidário, que trabalha com o que chamamos de ‘palhaçaria’ para auxílio à humanização de pessoas desde 2014, em Curitiba.
Além de formações, realizo visitas cênicas a hospitais de toda região. Com a pandemia e o cessar das atividades presenciais
nos adaptamos às visitas remotas e à construção de vídeos de palhaçaria, unindo a arte do palhaço e a produção de conteúdo para trazer mais leveza ao ambiente hospitalar. Além de temas cotidianos e datas comemorativas.
Dessa forma, com esses vídeos, poderíamos alcançar mais pessoas. O conteúdo dos vídeos eram mais para trazer leveza, um momento de respiro para esse período tão difícil e obscuro que atravessamos.
Porém, alguns vídeos vinham com um pouco mais de reflexão do que ‘palhaçaria’ – proposital ou naturalmente, devido ao nosso processo criativo e à imersão na realidade em que estávamos vivendo.
É a figura da palhaça, da palhaçaria
Sobre esse reverberar natural, gostaria de compartilhar um relato a respeito do vídeo que fiz sobre o Dia das Mães. Já estou sem minha mãe há três anos, sinto-me conformada. Porém, fazer algo que homenageia quem não está mais presente sempre traz um nó na garganta.
Estava um pouco resistente e sem ideia. Depois de algum tempo, comecei a pensar no que seria meu roteiro para fazer o vídeo. E pensei em olhar as fotos que tenho guardadas em casa.
O álbum de fotografias
Ao olhar todas, percebi que não tinha mais nenhuma foto da minha mãe, nem me lembro o porquê disso, mas me frustrou, pois não havia mais a lembrança física de minha mãe naquelas fotos.
De repente, como um pequeno filme, a cena de pegar as fotos e buscar pela minha mãe em algum retrato me apareceu aos olhos como o meu roteiro – a minha verdade.
Voilá…
Pronto! Teria ali um possível vídeo, ainda inacabado, mas já com alguma estrutura. Outra questão me surgiu: como uma palhaça conta que gostaria de se lembrar da mãe, mas não tem nada visível que possa ajudar? Como colocar um assunto tão delicado de uma forma que não deixe um vídeo pesado para um momento tão intenso?
Existe uma forte comparação do palhaço e de suas ‘palhaçarias’com as crianças, de que, para se tornar um bom palhaço, é necessário buscar a sua memória mais pueril. E, de certa forma, foi a maneira que encontrei para resolver o meu vídeo.
Trouxe à tona os meus rabiscos. “Se não tenho mais foto, então eu desenho aquilo que me vem à lembrança.”
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Em agosto de 2019, depois de nove anos de trabalho, fui desligada da empresa que trabalhava por conta da terceirização do setor. Pouco tempo depois, sofri com a partida de minha mãe.
Isso aconteceu no início do mês. Quando o final deste mesmo mês chegou, internei minha mãe às pressas por conta de uma hemorragia no estômago.
A minha sorte foi poder contar com o dinheiro do acerto para poder fazer tudo da forma mais rápida possível para a minha mãe, tentando dar a ela o maior conforto que a situação permitiu.
Entramos no internamento na terça. No domingo, o médico veio conversar conosco muito animado com o resultado dos últimos exames, falando até da possibilidade de alta para o dia seguinte.
Notícias..
Com essa informação, fui para casa passar a noite e, no dia seguinte, quando cheguei ao hospital para vê-la, a enfermeira veio conversar comigo.
Tinham preparado minha mãe para uma tomografia, que nem chegou a ser realizada, pois ela havia tido outra hemorragia e acabou indo para o cuidado intensivo.
Permitiram-me vê-la, e ela disse que estava cansada e que só queria que eu fosse feliz.
A partida
Foi o tempo de chegar em casa e receber uma ligação. Após levarem-na para a UTI e de eu ficar esperando por 3 horas na porta do local para ser chamada, entrei e não reconheci minha mãe, que já havia tido uma parada cardíaca e estava sem saber o que se passava com ela.
Disseram que eu podia ir embora, pois a situação dela era estável, porém, nada boa.
Foi o tempo de chegar em casa e receber uma ligação pedindo que eu voltasse ao hospital para saber da notícia do óbito.
O trabalho social
Em 2020, depois da partida de minha mãe, toda essa experiência me fez escolher fazer o projeto comunitário da universidade em que estudo, junto com a Associação Nariz Solidário, organização que trabalha levando a arte do palhaço para dentro de leitos dos hospitais.
Com isso, recebi o convite para atuar como voluntária permanente pela associação.
Minha mãe sempre esteve atrás da câmera
Em 2021, iniciamos um projeto de edições de vídeos para o YouTube, tendo em vista que as visitas aos hospitais não estavam mais sendo permitidas desde o início da pandemia da Covid-19.
Em uma das edições, especificamente a do Dia das Mães, tive a sorte de escolher para editar o relato da Lupita (uma das palhaças do elenco), que também havia perdido a mãe e, na ocasião, não tinha nenhuma fotografia com ela.
A minha mãe sempre esteve atrás das câmeras para registrar a nossa infância. Contudo, era raramente fotografada conosco.
Foi um dos vídeos mais difíceis da minha trajetória
A similaridade de situações mexeu muito comigo durante a edição eu editava o vídeo, que iria ser transmitido nos leitos de um hospital infantil durante todo o projeto.
Quando o assisti pela última vez antes de exportar o arquivo, não consegui conter as lágrimas.
Foi um dos vídeos mais difíceis da minha trajetória neste trabalho voluntário, fiquei pensando na partida de minha mãe e em todas as outras partidas; de mães e pais que perderam seus filhos, filhos que perderam seus pais e mães subitamente em reflexos da pandemia.
Desejo força a todos vocês. Como a minha mãe me disse nos seus últimos momentos de lucidez: “elas só querem que sejamos felizes”.
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Duas palavras tão parecidas que confesso que demoro para entendê-las e, então, diferenciá-las. Ocorreu-me não faz muito tempo. Podemos escolher apenas ter esperança ou acrescentar ao verbo o “r” e fazer com que ele seja ação; a ação de esperançar.
Vou tentar explicar melhor trazendo apenas uma pequena história pessoal.
Esperança dormente
Meu nome é Tatiane, tenho 39 anos e sou professora. Trabalho atualmente em uma escola de Ensino Fundamental I e II da Prefeitura Municipal de Curitiba. Meu trabalho me traz muitas versões de mim, entre elas a possibilidade de trazer um estresse muito desenfreado que pode se manifestar através de um comportamento muito calmo ou então, por meio de uma doença psicossomática.
Mas, como trabalhar as emoções de uma forma que não nos traga algo pior, e sim que a cura venha, ou pelo menos, que amenize os danos? Então paramos e nos deparamos com o trabalho remoto e, até então, nada de dominá-lo, ainda mais com uma profissão em que o presencial é melhor.
O pesadelo se instalou e a esperança diminuiu. Esses sentimentos se misturaram-se com notícias de pessoas conhecidas e que, em algum momento foram colegas de trabalho – morrendo, outras se contaminando, cumprindo quarentena, e relatando, através das reuniões on-line, como era a experiência em contrair ou conviver com a Covid-19.
A situação do desemprego, a necessidade de ter algumas coisas em casa que antes tínhamos, mas que naquele momento não era possível mais ter.
A incrível experiência de ficar com a família mais em casa do que apenas utilizar sua casa para descanso. E, assim, fui me acostumando com a nova forma de estar e de ser a protagonista de uma nova.
A necessidade de esperançar começou a crescer e, antes da pandemia, alguns projetos que estavam acontecendo, já não conseguiam mais continuar como antes.
Faço parte de um grupo maravilhoso, conhecido como Nariz Solidário. Atuo no elenco voluntariamente como ‘Clona’, uma palhaça que vive azeda, adora se maquiar e que, ao mesmo tempo, traz uma sensibilidade e gosta muito de ajudar no que for preciso.
A esperança de ter comigo meus novos irmãos
O raio de esperança e de sorte, foi ter meus novos irmãos ali comigo neste momento. Este grupo não é simplesmente um grupo de narizes, mas de corpos inteiros. Um grupo que, mesmo durante a pandemia, não parou com suas atividades porque se reinventou.
Nesse momento, os caminhos, ao invés de se fecharem e ficarem aguardando, abriram um caminho de esperança e fé.
Iniciamos as visitas on-line por meio de um manequim, adaptado com rodinhas, e um tablet no lugar da cabeça. Sim, um boneco! Melhor dizendo, uma boneca, mais conhecida como ‘Covidina’ (carinhosamente apelidada pela equipe de enfermagem do hospital).
Participamos de histórias, de sinais com as mãos e os pés. Pessoas que passaram a nos aguardar toda semana na esperança de saírem vivos!
Essa vivência nos trouxe entrevistas, pois os jornais começaram a se interessar por esse grupo tão potente que não havia parado.
Comecei a fazer parte de uma nova organização, aquela que trouxe o projeto “De Nariz para Nariz”, em que as visitas foram reorganizadas, e com isso, pude participar e garantir que elas acontecessem, por meio de agendamentos.
Tivemos vários cursos oferecidos, o que trouxe uma nova versão para a minha personagem. Aquela que, mesmo sem o nariz, permanece comigo diariamente em meu trabalho, em casa com minha família e amigos.
Confesso que a parte dos encontros presenciais faz muita falta, aos poucos vamos retornando, mas quando temos a parte on-line, mesmo assim, conectamo-nos e tornamos este momento muito proveitoso.
Recentemente tivemos um curso com profissionais que admiro e que, com certeza, eu não teria a oportunidade de participar se eu não estivesse fazendo parte dessa família.
Esperança, vacina e emoção
O tempo passou e retornei ao meu trabalho presencial, muitas coisas têm acontecido nestes últimos meses. Agora, novamente, tentamos retornar e nos adaptar ao novo normal. Não poderia deixar de citar a emoção em me vacinar – a sensibilidade de poder fechar os olhos e ser grata por essa oportunidade.
Como aos poucos as coisas vão retornando, fica a expectativa do retorno das visitas aos hospitais – estar ali me conecta ainda mais com a escolha que fiz em ser Nariz. Poderia passar horas relatando tantas outras coisas que já tive a oportunidade de participar juntamente com o Nariz Solidário, contudo, deixo aqui este registro de que não paramos! Ouvimos, expressamo-nos e, através disso, pudemos perceber que: ou paramos no tempo, ou traçamos uma meta para passar diante das diversidades da vida nesse momento de pandemia.
Ainda não acabou, mas estamos sempre em busca do novo, vi e vejo possibilidades de me reinventar e não perder a esperança,
Esperancei
Então volto para o começo em que relatei a diferença entre essas duas palavras tão parecidas e, mesmo assim, cada uma tem sua importância na vida da gente. É assim a minha relação com o Nariz Solidário, com essa pandemia que nos trouxe muitas coisas e, entre essas coisas, a importância de refletirmos sobre a presença e o carinho um do outro.
Sempre vamos precisar cuidar para além do nosso nariz, do meu próximo e de mim mesma. Isso me trouxe afago e a capacidade de parar, respirar e refletir a cada situação.
Não sou perfeita, nem tenho a intenção de ser. Hoje estou mais segura e mais certa que estou no caminho certo.
“Que nunca percamos a esperança em esperançar” – Paulo Freire
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Enquanto a psicóloga hospitalar nos conduzia a bordo da ‘Covidina’ (manequim adaptado para visitação remota do Nariz Solidário), para fazermos um mergulho musical na UTI. Cantávamos ao som de ‘Kazoo’, com um pandeiro e com os sons produzidos em nosso próprio corpo.
Adentrando na UTI
Tivemos uma percepção nítida do impacto do palhaço na UTI, ainda que de forma remota. Ali, do outro lado da tela, profissionais exaustos, com seus múltiplos EPIs, proporcionando-nos apenas um contato com os olhos e sua expressão corporal.
Em um determinado momento, em resposta ao nosso completo desajuste e desafinação de nosso mergulho musical — sorriram, cantaram e dançaram conosco.
Foi quando nos deparamos com um desafio: esquecemos aquela música grudada em nossa cabeça desde dezembro do ano passado, quando cantamos no mergulho musical. Depois de algum esforço — “meu coração, não sei por que, como é grande, o meu amor, por você!”
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Sou voluntário na Associação Nariz Solidário, onde trabalho como palhaço em hospitais de Curitiba e região. Há cerca de um ano e meio que não sentíamos mais a energia e o amor das visitas presenciais, dos encontros, olhares e sorrisos.
De volta aos hospitais..
No mês de outubro voltamos para a nossa rotina de visitas aos hospitais. No meu primeiro dia foi difícil conter as emoções geradas pelos risos e olhares nos corredores do hospital.
Entrando nos quartos, não conseguia conter a vontade de passar pelos batentes das portas e me mudar para lá, ficar com as crianças até elas melhorarem e irem para casa.
“De palhaços para alteza”
Palhaço Frutoso e palhaça Jupira em um quarto no Hospital em Curitiba (PR).
Batemos em uma das portas para ver se podíamos entrar. Surpreendemo-nos com um olhar calmo, de uma moça que abriu a porta bem devagar para nós. Ao entrar, vimos uma princesa sentada em sua cama, com um arco que se parecia muito com uma coroa, ruiva, lembrando aquelas princesas da Disney.
Será uma princesa?
No início, ela estava tímida, e eu, na característica do Palhaço Frutuoso, ao lado de minha colega, Danila (Palhaça Jupira), começamos a conversar com ela, dizendo termos achado uma princesa.
Conversamos sobre a história de reis e rainhas, e seus olhos, sorriram por trás da máscara, como se sua alegria tivesse se transformado em um grande conto de fadas. Ao sair, descobrimos que quem abrira a porta havia sido a rainha, a mãe da nossa querida princesa. Reverenciamos a majestade e, ao fechar a porta, pudemos ouvir risos que ecoaram pelas paredes rochosas do castelo.
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Durante esse período e até agora, pergunto-me se tem alguém que não tenha questionado a vida, a morte, a passagem do tempo, o valor das coisas; pergunto-me se tem alguém que não questionou seu próprio ofício, suas escolhas, sua estabilidade financeira ou emocional.
Em março de 2020, eu morava fora do Brasil, mas estava constantemente ligada ao meu país através das memórias, do amor e de meu trabalho com a ONG Nariz Solidário.
“Como prosseguir sem me questionar?”
Questionei-me também ‘como prosseguir’ e, principalmente, como eu poderia ser útil para além de minhas próprias buscas pessoais.
Nesse momento, meu amigo Eduardo Roosevelt, do Nariz Solidário, fez-me uma proposta: E se colocássemos em movimento ideias antigas nossas, como o Curso Online “O humor e a Saúde”?
Este curso seria voltado apenas para palhaços de hospital, mas, naquele momento, poderia ser para qualquer um que quisesse aprender!
Pensávamos que, além de ajudar a transformar a vida de outras pessoas, estas atividades poderiam, de certa forma, desacelerar nossa vulnerabilidade e ainda ajudar a ONG Nariz Solidário.
Quais os próximos passos?
Resolvemos fazer esse teste e nos vimos mexidos e modificados com essa experiência.
Pensei que eu iria ajudar, mas fui a maior beneficiada. Pudemos nos conectar com pessoas de todas as idades, em todo o Brasil e, algumas vezes, até pessoas que moravam fora compartilhando experiências íntimas, medos e brincando juntos.
Lembro-me de situações delicadas e especialmente impactantes, como uma das alunas que assistiu alguns dos nossos encontros ao vivo, juntinho com sua mãe, da cama do hospital.
Mandava-nos fotos ou vídeos e nos tornamos tão íntimos nesses momentos, conseguindo nos fortalecer nesse período tão delicado.
Foi quando vimos que era possível
É possível, independente das circunstâncias, encontrar um farol de luz, caminhos que nos deem suporte, leveza e alegria, mesmo em momentos de grandes desafios. Mesmo em contato com a morte.
Tivemos uma mãe solo que passava por uma depressão, com uma filha especial, e pudemos ver em primeira mão o seu progresso, sua abertura, sua vontade de viver e de brincar, despertando através de nossas trocas.
Tivemos um palhaço de circo tradicional na ONG Nariz Solidário, com tanto a ensinar, com tanta estrada e picadeiro em suas memórias, aberto para aprender e compartilhar conosco suas histórias.
Ele, que faleceu recentemente, deixou-nos um legado incrível de humanidade. Cada troca enriquece a todos. Eleva-nos e nos mostra que existem caminhos mesmo em meio à dor.
O potencial dessa semente iniciada durante a pandemia só nos mostra que mesmo à distância, é possível construir pontes.
Mesmo na dor, é possível se ver sorrindo e encontrar fagulhas de alento e alegria e contribuir cada vez mais para uma sociedade onde possamos nos ajudar sempre, contar uns com os outros e cuidar de nossas feridas juntos.
Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Eu sou a Ana Pereira e tenho 26 anos. Eu sou da etnia Wapichana e nasci na Guiana Inglesa. Vim ao Brasil quando tinha cinco anos com minha mãe, depois que meu pai morreu, em busca de uma vida melhor.
Eu estudei na Tabalascada, onde aprendi a falar português, já que eu falava inglês. Hoje em dia eu falo português, mas esqueci o ingles, é engraçado.
Quando a pandemia chegou, eu já estava desempregada há três ano e ficou muito mais difícil encontrar trabalho. Com a pandemia, eu não conseguia arranjar emprego por não poder sair. Isso prejudicou a minha vida e a dos meus filhos.Tudo parou: trabalho, estudos.
Fiz faxina, fiz outros trabalhos pontuais para sobreviver. Meu marido pegou Covid e ficou desempregado. Ninguém queria contratá-lo por medo de se contagiar e então a situação ficou ainda mais difícil.
O que nos ajudou foi a alimentação que a Escola distribuiu. Não tinha tudo o que queríamos, mas não faltou o pão de cada dia na mesa.
Momento crítico
O pior dia da pandemia foi quando minha sogra morreu. Ela era uma segunda mãe para mim. Era ela que me ajudava com tudo. Ela ajudava todas as pessoas que chegavam pedindo ajuda em sua casa. Ela era muito guerreira.
Nunca pensei que um dia pudesse passar por isso. Minha sogra era uma ótima pessoa. Ela sempre falava para eu não desistir de procurar emprego e morreu no mesmo dia em que eu consegui um trabalho. Foi muito difícil. Ela não estava com a gente para comemorar.
Eu e o meu marido estamos tentando levar a vida, já que minha sogra sempre dizia que a vida continua, que não podemos parar. E é por isso que eu vou tomar a segunda dose da vacina e falo para todo mundo se vacinar. Afinal, temos que nos prevenir!
Relato de Ana Pereira, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia
Sou Beatrys Madelayne, mulher trans branca e trabalhadora sexual. Vou explicar minha situação durante a pandemia.
Com a chegada da pandemia, minha vida mudou. Eu fiquei sem conseguir trabalhar, já que meus clientes ficaram com muito medo de pegar Covid-19. Eu e outras trabalhadoras do sexo que conheço ficamos sem trabalhar.
Passei por situações muito difíceis, tendo que vender as coisas de casa para comprar alimentos, pagar meu aluguel e outras contas. Chegou um momento em que eu não tinha mais nada para vender. Hoje, depois de seis meses de aluguel atrasado, a proprietária do imóvel me deu uma ordem de despejo.
Nessa condição, estou com medo de, a qualquer momento, a proprietária me tirar de onde moro e eu não ter para onde ir. Eu e mais duas amigas trans que acolhi porque, durante a pandemia, elas precisavam de moradia por terem saído da casa de seus familiares.
Tentei alguns benefícios com a ajuda do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) da Diversidade para conseguir me sustentar e tentar me estabilizar, mas o que recebo de benefícios hoje não dá para eu matar a fome de todas nós.
Ainda assim, fico feliz porque, através do Creas, pude resolver um pouco dos meus problemas e até fiz minha retificação de nome e gênero. Isso para mim era uma das coisas mais importantes, algo que sempre sonhei em ter. É um direito garantido a mim!
Graças a essa ONG, hoje, não passamos fome, recebemos mensalmente uma cesta básica e cesta verde, dentre outras coisas necessárias, como produtos de higiene, cobertores, etc.
Rede de apoio
Devido a dificuldades que vieram com a pandemia, pedi ajuda a uma amiga da terceira idade. Ela me apresentou às Tulipas do Cerrado, uma organização não governamental (ONG) sem fins lucrativos que ajuda, cuida e realiza momentos de convivência com as pessoas da comunidade LGBTQIAP+, população em situação de rua e profissionais do sexo do Distrito Federal e do entorno.
Graças a essa ONG, hoje não passamos fome, recebemos mensalmente uma cesta básica e cesta verde, dentre outras coisas necessárias, como produtos de higiene, cobertores, etc. Eu e minhas amigas adotamos as Tulipas do Cerrado como uma família, é neste espaço onde nos sentimos acolhidas e amadas, onde podemos sempre desabafar e compartilhar um pouco das nossas vidas, seja em relação aos aspectos positivos ou negativos. Esse é um coletivo que vibra com as conquistas que temos.
Além da ONG Tulipas do Cerrado e do Creas da Diversidade, tive ajuda recebendo alimentos da Casa Rosa.
Graças a Deus não peguei Covid-19, mas, infelizmente, perdi várias amigas próximas. Tudo isso me marcou bastante. Nunca esperei passar por essas situações.
Em meio à pandemia, uma ordem de despejo
Nunca imaginei que a dona do imóvel onde moro iria pedir uma ordem de despejo. Até a pandemia chegar eu sempre tinha sido uma boa inquilina e agora, que fiquei em uma condição financeira péssima, ela me trata como se eu fosse lixo. É muito desumano.
Posso concluir essa narrativa dizendo que a pandemia só não mudou quem sou. A minha essência não mudou: eu continuo sendo parceira, sincera, acolhedora. Porém, percebi que as pessoas à minha volta mudaram bastante, ficaram amargas, desunidas.
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