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40 a 59 anos Ceará Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Parda

“Surgiu um convite para a cozinha comunitária. Aceitei na hora. Queria ajudar e fazer parte de algo”

Acompanhei o início da pandemia pela televisão e via a preocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em achar maneiras de ajudar as famílias próximas. Nós aqui de casa – a qual conquistei na luta do movimento – recebemos ajuda com cestas básicas e máscaras.  

A princípio, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto montou uma cozinha comunitária. Logo, surgiu um convite para que eu fosse ajudar na cozinha. Aceitei na hora, pois queria ajudar e fazer parte de algo.

Foto de duas mulheres cozinhando com uma panela de pressão acomapnha relato da Memória Popular da Pandemia, que mostra como ajudar na cozinha comunitária do MTST trouxe a esperança de dias melhores à Maria Antônia.

Ajudar na cozinha comunitária foi um misto de sentimentos: me senti útil e feliz ao ver várias e várias pessoas comendo o que eu mesma preparei junto a algumas companheiras.  

A pandemia é grave, ela pode até matar. Mas o movimento faz com que tenhamos esperança no amanhã.

Sou dona de casa e há cinco anos tive meu primeiro contato com o MTST. Minha filha é militante do movimento e agradeço demais por tudo o que o movimento acrescentou em nossas vidas.  

Leia também:

“As atividades do MTST nos territórios ficaram mais intensas” – Maria Eduarda Rodrigues | Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – Pacatuba, PE

“Deixa quem quiser chamar de assistencialismo. Eu digo que é uma emergência, fome tem pressa” – Vânia Rosa | Presidente do Coletivo Rua Solidária – São João de Meriti, RJ

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25 a 39 anos Mulher Cis Parda Pernambuco Pós-Graduação Completa

“Para nós, mulheres rurais, um dos desafios foi continuar nos articulando”

Antes de mais nada, moro em um município pequeno e para mim esse contexto da pandemia tem sido de grandes desafios:

Desafios quanto a ser mulher chefe de família, quanto a ser mãe de duas adolescentes, desafios enquanto militante em movimentos. Além de desafios frente aos encontros e desencontros da vida.

Acredito que vivemos aqui no Brasil um verdadeiro caos. A maioria das pessoas ignora o fato de estarmos passando por um momento muito sério, em que o vírus da Covid-19 já tirou a vida de milhares de seres humanos.

Durante essa pandemia, para nós, mulheres rurais, um dos desafios foi continuar nos articulando. Com o distanciamento social, nos vimos cada vez mais dependentes das mídias digitais como forma de continuarmos nos comunicando e nos articulando enquanto movimento social. 

Foi a partir daí, das dificuldades de muitas companheiras de não saber lidar com esse mundo digital, que percebi que nós, mulheres rurais, ainda somos totalmente analfabetas digitais e pessoas alheias a esse mundo digital. Mesmo frente a tudo isso, acredito que vamos sair desse período de pandemia mais fortalecidas(os).

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“A adaptação não foi fácil. Tive momentos de estresse, nostalgia, e uma sensação de estar dentro de um círculo se fechando ao meu redor” – Andréia das Neves | Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais – Angelim (PE)

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18 a 24 anos Ceará Ensino Médio Completo Mulher Cis Prta

“As atividades do MTST nos territórios ficaram mais intensas”

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) sempre atuou nos territórios com diversas ações, fossem elas solidárias ou culturais. Em função da pandemia, essas atividades ficaram mais intensas.

Iniciamos uma vakinha online para que conseguíssemos comprar cestas básicas e produtos de higiene. Contamos também com doações de produtos, fabricamos e distribuímos máscaras, organizamos uma cozinha comunitária e realizamos sarais virtuais.  

Eu sempre fui uma militante ativa: participava de todas as atividades e, na pandemia, também não fiquei parada. Então, participei de todas as atividades, entreguei cesta básica e produtos de higiene, distribuí máscaras, organizei e apresentei quase todos os sarais.  

Antes de mais nada, fazer a distribuição de coisas tão básicas era como levar alegria para aquelas famílias.

Foto enviada por Maria Eduarda Rodrigues, em que aparecem duas pessoas com uma bandeira do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. A foto acompanha relato da Memória Popular da Pandemia sobre as atividades do MTST na como a distribuição de máscaras e cestas.

Não podíamos nos abraçar por conta da pandemia, mas nós comunicávamos através de olhares, sorrisos escondidos pelas máscaras e um “MUITO OBRIGADA!”.

É uma certeza de que não podíamos nos tocar e muito menos nos ver fisicamente, mas esses agradecimentos já enchiam o coração de esperança.  

Em conclusão, a pandemia trouxe o agravamento da falta de coisas que já tinham antes, como a falta da política pública na saúde e na habitação. Mas nada disso nos desanimou, pelo contrário, só nós deu mais motivos pra lutar. 

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“Surgiu um convite para a cozinha comunitária. Aceitei na hora. Queria ajudar e fazer parte de algo” – Maria Antonia Rodrigues | Dona de casa – Pacatuba (PE)

“Me aproximei oferecendo o celular pra fazer o pedido do auxilio emergencial do governo” – Luciana Paiva Coronel | Professora – Porto Alegre, RS

“Deixa quem quiser chamar de assistencialismo. Eu digo que é uma emergência, fome tem pressa” – Vânia Rosa | Presidente do Coletivo Rua Solidária – São João de Meriti, RJ

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18 a 24 anos Branca Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Pernambuco

“A adaptação não foi fácil. Tive momentos de estresse, nostalgia, e uma sensação de estar dentro de um círculo se fechando ao meu redor”

A princípio, a adaptação a esse novo contexto de distanciamento social e isolamento não foi fácil. Principalmente no início. Sobretudo, tive que me habituar com o fato de não poder abraçar as pessoas que gosto, sendo que o abraço para mim é algo tão natural e espontâneo.  

Por gostar de estar sempre em movimento, engajada com atividades, o período mais difícil para mim foi o isolamento nos meses de pico da pandemia. 

Do mesmo modo, durante o isolamento, tempo em que fiquei praticamente sem sair de casa, no meio rural, sem contato com outras pessoas para além da minha família, tive momentos de muito estresse.

Às vezes, senti nostalgia, e uma sensação de estar dentro de um círculo se fechando ao meu redor. 

Adaptação da rotina

Sou mulher rural, estudante, feminista e integrante do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Pernambuco (MMTR-PE),

O período dentro de casa implicou em muitas coisas. Tive que me readaptar e reorganizar toda minha rotina, seja de estudos ou de trabalho. Não foi fácil, pois tive que assumir parte das atividades domésticas. Além da responsabilidade com meus dois irmãos mais novos, um de 7 e outro de 8 anos. 

Em meio a tudo isso, e enfrentando as limitações e algumas dificuldades, consegui me manter, sempre que possível e mesmo que de forma virtual, participando do movimento, estudando e trabalhando. Isso foi fundamental para preservar tanto minha saúde emocional quanto física. 

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18 a 24 anos Ensino Médio Completo Minas Gerais Prta

“Vi minha família ser exposta ao vírus no auge da incerteza da pandemia, e presenciei uma nova faceta de medo”

Eu sou Steffane, mulher negra feminista e jovem pesquisadora. Nesse ano estranho, me deparei com medos outros, vi minha família ser exposta ao vírus no auge da incerteza da pandemia, e presenciei uma nova faceta de medo. 

Há muitos medos que nos cercam quando somos mulheres negras em uma sociedade racista e sexista, mas presenciar a ânsia de ver minha família ser contaminada por um vírus desconhecido tomou, e ainda tem tomado, conta de mim ao longo desses meses em que tudo tem estado incerto. 

Assistindo à minha família sendo obrigada a sair para trabalhar todos os dias, eu me reconectei com a minha espiritualidade na medida em que me vi pedindo por proteção.

Escancarando desigualdades, a pandemia impulsionou o massacre sobre nossos corpos e corpas negros.

Enxergando muitos de nós se contaminando por estarem em postos de trabalho de base e sobre a visualização de outras maneiras genocidas sobre nossos corpos. Por isso, eu digo que senti medo de outras formas. Na verdade, é muito porque eu temo o luto. 

Tenho medo de perder os meus, os que estão comigo, os muitos de nós que tem suas vidas cooptadas. Eu temo. Vendo a casa não me caber, me dei conta que vida se faz agora e todo esse aparato supressor capitalista que roubou de nós, os nossos, não os trará de volta.

Que nossos corpos precarizados valem menos que outros eu já sabia. 

Operacionalizar o medo

Esse momento assustador me deu ânsia de continuar lutando, me organizando e estando junto aos nossos. Só é possível continuar se formos juntas, juntes e juntos. A pandemia me apresentou outras formas de medo, mas me lembrou como que é preciso operacionalizar. 

O resistir para nós, é o continuar, sobretudo porque ainda estamos distantes de uma ruptura que nos salve. Através dos desafios que não temos como contornar, nós inventamos novas formas de viver, porque há muito em jogo, porque nossa família não espera, o cuidado não espera. Cada vez mais eu tenho certeza que alguém em alguma medida olha por nós. 

Sigamos reexistindo e nos cuidando.

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25 a 39 anos Mulher Cis Pará Prta

“Muitos dos igarapés que alimentam o Xingu – como o Altamira, Panelas e Ambé -estão secando”

Aqui no Xingu, em primeiro lugar, o isolamento tem sido apenas físico. Porque estamos com mais conexão do que nunca para ajudar os nossos a ficar bem nesse contexto da pandemia.

Em segundo lugar, ficamos com muita preocupação com as pessoas de nossa cidade, com as nossas famílias na cidade, aldeias e nas reservas extrativistas. Por isso, realizamos vários vídeos informativos sobre a importância de usar máscaras, lavar as mãos e evitar aglomerações.

Pelo coletivo “Juventudes por Justiça Social e Ambiental” – que tem por objetivo lutar pelas políticas públicas sociais e ambientais do médio Xingu, colocando as juventudes (negra, periférica, indígena, ribeirinha e extrativista) como protagonistas – a gente continua lutando por aqui, seguindo as recomendações de cuidado.

Durante a pandemia, criamos um Instagram para dar visibilidade ao nosso coletivo e principalmente para comunicar com as pessoas. Tendo em vista a negligência do Estado na publicidade sobre a importância do isolamento social e na aplicação de políticas públicas de combate e prevenção, o Juventudes procurou usar os meios de comunicação alternativos, como o Zap, para informar a comunidade local sobre a importância dos cuidados preventivos à Covid-19.

Mas observamos que, no período da campanha eleitoral, pessoas fizeram campanha sem nenhuma preocupação com a saúde pública.

Tememos o aumento de casos de Covid-19 em nossa Altamira. 

Protestar e dar visibilidade à seca no Xingu

Temos uma articulação e mobilização com a pauta ambiental aqui no médio Xingu. O Rio Xingu tem a maior seca das últimas cinco décadas. Essa seca tem ligação direta com a instalação de Belo Monte em nosso Rio.

Belo Monte tem provocado a morte das árvores nas margens do Rio, mudanças nos depósitos de sedimentos por causa da mudança da cheia e vazante do Xingu… (a lista é extensa).

Em relação ao ano passado, o volume de água do rio sofreu uma diminuição de quase 40% no mês de outubro, e muitos dos igarapés que alimentam o Xingu – como o Altamira, Panelas e Ambé – estão secando.

Foi aí que decidimos fazer agendas de visibilidade ao caso. Nos organizamos com todos os cuidados preventivos à Covid-19 e fomos protestar no igarapé Altamira – seco – e em frente ao Ibama, escritório de Altamira.

Utilizamos uma metodologia de protesto criativo para chamar a atenção das pessoas e deixar as nossas vidas mais leves, porque a realidade tem sido dura ultimamente.

Nossa mobilização foi importante: gerou repercussão na imprensa local e a população começou a se posicionar nas redes sociais sobre o caso compartilhando memórias sobre suas vivências com os igarapés. 

Belo Monte é um mau exemplo!!!

#DerrubaBeloMonte 

#LiberteoFuturo 

#XinguVivo 

#AmazoniaCentrodoMundo

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Indígena Mulher Cis Raça/Cor

“Não teve dor maior que sentir a despedida do Pataxó de Coroa Vermelha”

Perdemos o primeiro parente Pataxó de Coroa Vermelha para a Covid-19 e não houve despedida. Por isso, foi ainda mais doloroso. Após ficar internado durante um tempo, o nosso Pataxó saiu do hospital com o corpo completamente lacrado. Ou seja, foi tirado de nós o último adeus. Não pudemos nem velar seu corpo, como é de costume na despedida em nossa cultura.

Foram momentos de calamidade esses. Além de não termos tido a chance da despedida do nosso Pataxó, para mim teve outra situação que também é muito difícil. Pois, tenho um filho que tem problemas respiratórios e imunidade baixa. E, devido a essa situação, ele precisou ficar mais tempo na casa da minha mãe. Porque eu sabia que ele precisava de mim por perto, mas minha mãe compreendia que eu precisava, juntamente, com meus colegas ajudar outras famílias em estado de vulnerabilidade.

Nossa equipe se colocou na linha de frente. Arriscamos as nossas vidas e a vidas das pessoas que mais amamos para tentar amenizar os problemas que nossas comunidades enfrentavam, além das saudade e da falta da despedida de seus entes.

Nada de despedidas, mas muitas dificuldades

A gente aqui em Coroa Vermelha, sempre tivemos muitas dificuldades, mas nenhuma se compara à qual estamos lidando nos últimos meses. Meu pai e minha mãe contam sempre das tribulações que tivemos nas épocas da baixa temporada e de inverno. É que aqui a gente já cresce nessa cultura de confeccionar e vender, para se preparar para as épocas ruins.

No início da pandemia, eu chorava muito dentro de casa em ver a situação de muitas famílias dentro da nossa aldeia. A nossa maior fonte de renda e de boa parte das famílias era resultado de vendas de artesanatos, de redes de hotéis e do funcionalismo público. Mas o dinheiro sumia a cada dia e as necessidades só aumentava.

Os hotéis fecharam e muitas pessoas ficaram sem seus respectivos empregos. Os funcionários públicos que trabalhavam na área da educação foram todos dispensados até sem direito ao auxílio emergencial, logo nos 3 primeiros meses. 

Muitos pais e mães de famílias estavam indo para as pedras pescar, pegar mariscos, mas havia dias que voltavam com nada, porque a concorrência passou a ser alta.

Solidariedade

Comecei a mobilizar um grupo menor do CONJUPAB, fizemos nossas primeiras reuniões online para vermos o que poderia ser feito. Então, fomos buscar parceria com alguns apoiadores. Fizemos a campanha do quilo; fomos aos comércios que se encontravam abertos para pedir alimentos, remédios, fraldas descartáveis, produtos de limpeza e máscaras; fizemos rifas, a gente conseguia os alimentos e dividia em cestas para doarmos as famílias que mais necessitavam no momento. Eram muitas, muitas mesmo!

Em algumas casas onde a gente chegava foi preciso doar duas cestas por semana, porque eram cheias de crianças. A gente saia com mais vontade de lutar para enfrentar aqueles dias terríveis, mas que foram de grande aprendizado.

Nosso conselho da juventude conseguiu atender mais 300 famílias vulnerabilizadas. Conquistamos 150 cestas básicas por meio do Instituto Mãe Terra e fizemos um rodízio para ajudar as outras comunidades dos municípios de Porto Seguro, Prado e Itamaraju. Fizemos algumas rifas solidárias: uma foi especifica para um dos nossos guerreiros que semana passada nos deixou, o Arauí Pataxó. Foi quando um parente, o Daniel Pataxó, nos doou um cocar de penas de arara no valor de 700 reais para ser rifado em prol do guerreiro. Fizemos uma mobilização arretada e com a graça de Tupã e força dos nossos encantados conseguimos entregar em mãos para a sua família o valor de R$3.700,00.

Eu sou Taiane Pataxó, nasci e me criei na aldeia Coroa Vermelha, tenho 30 anos de idade. Sou professora formada na área de humanas pelo IFBA- Campus Porto Seguro. Sou a segunda secretária do CONJUPAB -Conselho da Juventude Pataxó da Bahia, atualmente trabalho como secretaria execultiva na SEMAI- Secretaria de Assuntos Indígenas de Santa Cruz Cabrália.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Superior Completo Mulher Cis Parda

“É um momento que desencontra o nosso pensamento, no que pensamos sobre a Pedagogia de Terreiro, que aprendemos e construímos juntos”

Sou da comunidade do Caxuté e criadora da Pedagogia de Terreiro. Este é um momento difícil. Não só de hoje, mas de outrora. É um momento de encontro e desencontro. Desencontra o nosso pensamento, no que nós pensamos sobre a Pedagogia de Terreiro, que aprendemos e construímos juntos. Este é um momento que está separando nossos corpos dos nossos filhos e filha, dos nossos passados e antepassados, e dos viventes de hoje, que nos encontramos nessa pandemia.

Nós não podemos dialogar bem, e não podemos sentir o calor do outro. Isto é um momento de muita angústia no coração das comunidades tradicionais, porque as comunidades tradicionais se embasam no afago, no acalento, no colo, no carinho, na mãe.

A troca de experiência e viver e saber: um pesca seu peixe, o outro marisca, e trazem para nós quando não temos dinheiro, assim nós fazemos essa troca. Não podemos mandar ir os pescadores ao mangue; trazer o peixe, o caranguejo, o siri, o aratu para o nosso sustento.

Hoje, nós precisamos estar sempre de longe, sem poder encostar no outro por causa de uma pandemia de branco. E hoje temos um vírus que está virando tudo: virou nossos pensamentos, virou nosso viver, nossos saberes, nossos fazeres das nossas comunidades.

No mês de agosto, muitas pessoas de diversas localidades vêm à comunidade do Caxuté para participar da Kizomba Maianga de Kitengo. Este ano, não pôde ter essa troca de experiência por causa da evitação de aglomeração. Já que não podemos juntar nossos corpos, sentir os nossos calores, estamos vivendo um momento muito triste. Precisamos o tempo todo recorrer à nossa ancestralidade: que a gente se cuide, se fortaleça enquanto comunidade. A gente só tem a gritar ao nosso povo para ir ao mato, para ir para às matas, recorrer à nossa mata atlântica.

É difícil viver essa pandemia para os povos de matriz africana

Aí vem um outro lado: como nossos filhos da cidade podem encontrar esses matos, como é que uma casa com 10 ou 15 pessoas tem como se livrar de uma pandemia? Como é que tem como se alimentar e sair dessa aglomeração? Pois nós sabemos que nossos governantes não vão fazer nada para mudar isso, pois isto é a construção de uma política de derrotar o nosso povo preto, os nossos povos indígenas. É esse olhar que nós, de longe, avistamos quem vem; a gente vê quem vem, porque quando os pássaros gritam nas matas, a gente sabe quais são os pássaros que estão gritando forte ou fraco, nos seus cantos.

Quando nós estamos angustiados, quando nós estamos sofrendo, isso nos mata. Como tem matado nas travessias dos navios negreiros.

Então, a gente vê que isso é uma troca de negociação com nosso povo preto, nós temos que ter muito cuidado, porque é uma negociação que nos faz ver que nossos povos não podem ir ao hospital; então vamos para nossa mata. Corremos muitos riscos, vamos morrer nas casas, nas ruas, nos leitos de hospitais, pois não tem recursos para nós. Então, é difícil compreender, entender e viver nessa pandemia para os nossos povos de matriz africana, nossos povos de terreiro, nossos povos tradicionais. Estamos vivendo em um momento de muita angústia e a pior dor, o que mata, é o coração e a mente. Quando nós estamos angustiados, quando nós estamos sofrendo, isso nos mata. Como tem matado nas travessias dos navios negreiros.

O pós-pandemia não vai trazer o fim disto tudo, vai apaziguar, ela vai continuar; como o sarampo, a rubéola, outras e outras.

O que nós precisamos pensar nessa caminhada?

O que nós precisamos pensar nessa caminhada? Porque não vai acabar. Quando passar esse tempo… Porque há o tempo bom e o tempo ruim, nós estamos vivendo o tempo ruim.

Nós estamos nos fortalecendo com os nossos, começando a nos preparar com os nossos, a dialogar com os nossos, para que nós nos fortaleçamos. Na comunidade do Caxuté, é sempre dito pelo Caboclo, o Caboclo Pena Branca, o Caboclo Correia das Neves, ele diz assim: “Vamos plantar para os nossos filhos comer, para não comer batata de cemitério.”

Quando ele fala batata de cemitério, ele diz que, se não nos fortalecemos enquanto nós, só vai ter mais fracasso, mais derrotas nas nossas caminhadas. Porque, quem não consegue fazer nada dentro de um ano que para tudo, o que vai existir a não ser a pobreza? O que está acontecendo este ano é que no próximo ano vai existir mais pobreza ainda e comunidades mais fracassadas. Quem não tem terra, quem não tem um mecanismo, acesso a água, a plantar e colher, vai ficar difícil. Vão sobreviver de quê? Esse auxílio esse emergencial não vai existir.

Pedagogia de terreiro

A gente precisa auxiliar as comunidades tradicionais; de uma forma ou de outra abrir as escolas, criando outros mecanismos, outros meios de escola, para ensinar às crianças, como a Pedagogia do Terreiro, que abre a sua sala de aula no mar, no rio, no mangue, na terra. Para essa construção de aprendizagem, desse legado que nossos ancestrais deixaram para nós.

Nós vamos continuar o diálogo; que as comunidades, as escolas e as universidades possam estar cada vez mais contribuindo com isto, principalmente dentro dos espaços das universidades, para que se tenha um outro olhar perante nossos povos. 

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40 a 59 anos Bahia Parda Pós-Graduação Completa

“O que fazer com a comunidade do terreiro, que confia em nós?”

Em março, eu soube que o Brasil estava em pandemia.  Foi um susto para todo mundo. As pessoas começaram a ter sintomas de depressão e nossas comunidades de terreiro começaram a se perguntar:

Como vamos fazer? Vamos esquentar Cavungo ou vamos acalmar Cavungo? Vamos esquentar Obaluaê ou vamos esfriar Obaluaê?

Existiam essas discussões nos grupos. E nada mais que nós pensávamos era simplesmente a gente ter equilíbrio em nossas mentes e voltar para as nossas tradições, para nossos conhecimentos. E isso tem nos provado, porque, até o presente momento, nós não temos remédio eficaz contra a Covid-19.

Então, eu vejo que o melhor remédio nesse momento tem sido recorrer às nossas zonas de mata, aos espaços que não tenham aglomerações de pessoas estranhas a nós, ou pessoas que estejam contaminadas.

Não existe esse pensamento de a gente criar um preconceito, uma discriminação contra quem está com o novo coronavírus. Mas é um momento para as pessoas que estão com Covid-19 terem um cuidado consigo e com as pessoas que estão por perto. Também tem que estar um sentimento de troca e de afetividade. É um cuidado com nossos corpos, para que a gente não tombe. Porque basta de a gente tombar!

A gente já tombou historicamente nos navios negreiros; pela colonização; pela colonialidade do poder, encabeçado por Portugal e as potências europeias, que a gente sabe: não só europeias como potências daqui. Portugal nos escravizou, Portugal nos matou.

A pandemia vem desde o período da colonização do continente africano

Desde o começo, quando vou falar alguma coisa, digo que a pandemia não começou de agora; que esta pandemia nasce desde o período da colonização do continente africano, da colonização da África. Ali, a gente entra em uma colonização histórica; a gente entra em uma necropolítica, a política da morte. É o que tem sido colocado aos nossos corpos.

A gente foi morta. E tem sido morta cotidianamente pelas forças policiais brasileiras. A gente também sabe que tem, dentro das forças policiais, pessoas engajadas no combate ao racismo institucional, ao racismo histórico que sofremos nas instituições públicas.

Quando a gente fala que a polícia foi feita para defender brancos, é isto, justamente. A exemplo da Bahia: a polícia, apesar de ter um corpo policial que é negro, é ensinada a defender um corpo branco. Então é preciso que a gente repense cada dia mais, enquanto comunidades, quais os nossos papéis em defesa dos nossos povos. E cabe a nós, enquanto cientistas sociais – da antropologia, da química, da física, da matemática -, dar educação. 

Redes sociais, povos de terreiro e comunidades tradicionais

É dos saberes e fazeres tradicionais que a gente pensa o que esses momentos de pré-pandemia, pandemia e pós-pandemia nos trarão de impactos no pós-pandemia. Inclusive, na disseminação das redes sociais. O contato continuará a ser muito pelas redes sociais. O que já era antes.

A gente precisa mais do que utilizar essas tecnologias: precisa ver até que ponto essas tecnologias estão favorecendo as nossas comunidades e povos de terreiro. Se essas tecnologias são um vigia do colonizador para nos capturar, ou se elas são um mecanismo de defesa nosso enquanto comunidades tradicionais.

Sempre que eu ouço companheiros, parentes e indígenas, nos é colocado, pelos mais velhos, que a gente não use as tecnologias de forma a esquecer a mente no jogo; acessar o WhatsApp de forma supérflua. É preciso que a gente use o aparelho celular, todo esse aparato tecnológico, para defesa das nossas comunidades, para denunciar os atos de racismo, de intolerância, de perseguição que nós estamos sofrendo.

É importante que a gente sempre esteja atento a essa discussão do racismo dentro, inclusive, deste momento de pandemia. Neste momento, nós, da comunidade Caxuté, por estarmos na zona rural, é importante usar a palavra sororidade, não sei se especificamente neste momento, mas para nós homens negros, índigenas. Não utilizamos de cartão de crédito para oferecer libertação e cura ao coronavírus, como muito pastores de televisão.

Foi muito estranho o começo da pandemia, aquela sensação de que todo mundo ia morrer, pois víamos a mídia, como por ela estávamos sendo alertados. Com a Globo divulgando em grande massa aqui no Brasil, sempre falando da Itália, da China.

Sentimento de insegurança – o que fazer com a comunidade do terreiro, que confia em nós?

De repente, foi o Brasil. E o governo não ajudou em nada. Na gente, aquele sentimento de insegurança. Foi um momento de terror dentro das casas, do terreiro, e dentro das comunidades tradicionais, porque também somos humanos. A gente tem sede, a gente tem fome. A gente é humana, a gente tem sentimentos. As pessoas ficaram nervosas, isso tudo abala o sistema nervoso, tanto do homem como da mulher, e a gente vê as crianças desesperadas. Foram muitos noticiários a respeito do coronavírus, especialistas falando que muita gente iria morrer, pois o vírus é letal.

A gente sabe dos assintomáticos, e cada corpo e cada organismo responde diferentemente. Utilizamos saberes tradicionais, xaropes tradicionais. E nós temos sempre tentado ficar em isolamento social. O que fazer com a comunidade do terreiro, que confia em nós? Sempre ficamos muito tranquilos, pois não agimos como as potências evangélicas do país, que prometem isso e aquilo para a salvação e para a cura. Não utilizamos de cartão de crédito para oferecer libertação e cura ao coronavírus, como muito pastores de televisão.

Quando os terreiros de candomblé começaram a tocar, nós também denunciamos nas redes sociais. Porque no terreiro de candomblé, infelizmente, também temos pessoas que acreditam no desgoverno do presidente Bolsonaro. Logo, o charlatanismo nos persegue; persegue também o Brasil.

A cura

Vemos as pessoas prometendo a cura. A cura nada mais é do que uma cura que vem do nossos corpos, que vem das nossas tradições, que vem pelo afeto; que precisa vir pela ciência. Não há oposição à ciência, mas defendemos sempre que a ela tem que andar com muito respeito com as comunidades tradicionais, pois é lá que buscamos nossos medicamentos, nossas vacinas. Se não fossem nossas folhas, nossas rochas, nossa terra; se não é o ar, o sol, a lua, a gente não tem medicamentos. Assim, precisamos que a ciência aprenda a respeitar as comunidades tradicionais e esses saberes que são repassados a nós.

No pós-pandemia será preciso que a gente se reinvente; é preciso que nossos dogmas sejam repensados.

A normalidade no pós-pandemia, de ensinamento, vem do começo da pandemia: fechamos a comunidade; há pessoas que estão morrendo, jovens estão morrendo. Não poderíamos negar isto ao nosso povo. Fechamos as portas e começamos a ver alternativas. Como o Caboclo sempre diz: “a gente precisa plantar para comer; a gente precisa plantar para sobreviver.” Assim começamos a viver com o que tínhamos na comunidade rural.

O que é normal?

Não acreditamos que voltará à normalidade, pois, o que é normal? Por não ter uma deficiência física, eu sou normal? Por eu não ter um problema psiquiátrico, eu não sou normal? O que não é normal para mim, não é normal para você. A homossexualidade é normal para a comunidade LGBT, mas pode não ser normal para a comunidade hetero. E essa normalidade heteronormativa pode não ser normal para nós que não compartilhamos do mesmo pensamento, já que não podemos permitir um sistema tão sexista, tão misógino, tão homofóbico. Não podemos deixar que essa forma de dominação dos nossos corpos, da nossa vida,  tome conta. A gente não pode deixar as ideologias fascistas tomarem conta da nossa nação. E essa é uma responsabilidade nossa enquanto povo preto; é uma realidade nossa enquanto povos indígenas.

Sempre dizemos na comunidade Caxuté: “Força e resistência. Levante o dedo, pois, se levantarem o dedo para nós, vamos dizer que Marielle existe; que Mãe Bárbara existe; que Mãe Stella existe…”. Queremos falar e temos o direito de falar.

Esse dedo também simboliza o Ogó de Exu; esse dedo sinaliza que é pontiagudo e precisamos, de diversas formas, fissurar esse poder que está aqui, a gente precisa quebrar os muros da colonialidade do poder. A gente não volta a ser normal, coisa nenhuma. Eu, enquanto sacerdote, tenho que me reinventar nesse momento. Então, no pós-pandemia, será preciso que a gente se reinvente; é preciso que nossos dogmas sejam repensados. Nós não podemos ser intocáveis, a gente é humano. Nós somos povos indígenas, somos povos pretos e negros aqui no Brasil.

Que a gente recorra a saberes tradicionais

É preciso que nesse momento de pandemia a gente recorra a nossos saberes tradicionais. Que  agente faça as nossas rezas. Quem não souber o que falar, clame à força que acreditar; pegue quarana, pegue arruda, pegue folhas que você já conhece, boas para rezar. Reze sua casa, sua família. Porque da mesma forma que cada um faz as suas orações, nós temos nossas liturgias.

É preciso que os filhos da casa, do terreiro, das comunidades tradicionais prestem cultos aos nossos ancestrais, às nossas divindades. Do contrário, começamos a potencializar um sentimento de depressão, potencializar o que o colonizador nos diz: que somos fracos.

E, neste momento, de quem é fraco e de quem é forte… Jesus, Oxalá, Lembá e Tupã estão com a responsabilidade de curar o seu povo; ou de matar. Não existe essa força do bem; não existe essa força do mal. Existem dualidades que o cristianismo não permite e que a gente reafirma. Não existe uma religião que seja melhor do que a outra, sem medir forças. É um vírus que atinge a todos, mas principalmente ao nosso povo preto, aos nossos povos indígenas. A gente paga impostos e precisa que os impostos voltem como distribuição de renda.  

“Leva a urucubaca para o lado de lá…”

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25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Pós-Graduação Completa Raça/Cor São Paulo

“A população precisava de informações sobre a Covid-19”

A Vila Brasilândia é um distrito localizado na região norte da cidade de São Paulo. De acordo com o último censo do IBGE, realizado em 2010, a região conta com mais de 264mil habitantes. É uma das regiões mais vulneráveis da cidade, onde não há acesso à água encanada para toda a população e à rede de tratamento de esgoto é precária, quase nula. 

O Coletivo ADESS é uma organização da sociedade civil, fundada em 2014, com objetivo de trabalhar a autonomia a partir da geração de renda e economia solidária. Desta forma, a cultura é utilizada como principal meio para alcançar os objetivos. 

A partir de meados de março de 2020, quando a pandemia do novo Coronavírus atingiu o Brasil, nós da Brasilândia passamos a perceber nossos colegas e familiares adoecerem e morrerem da nova doença. Além do risco da Covid-19, a pandemia escancarou a grande desigualdade existente no nosso país.

Já nos primeiros levantamentos, realizados pela Prefeitura de São Paulo, era possível ver a calamidade sobre os índices da mortalidade e de pessoas infectadas. Nossa região foi apresentada por semanas seguidas como a que mais tinha óbitos na cidade de São Paulo pela nova doença.

Quem mais sofreu com a pandemia foi a população que já tinha seus direitos negados, passamos a sentir fome e não pudemos nem enterrar os nossos.  

População carente

Naquele momento não contávamos com o apoio do governo, tampouco tínhamos auxílio emergencial. Apenas com a coragem, iniciamos nossa distribuição de cestas compostas por alimentos, produtos de limpeza e higiene pessoal. E também, claro, de máscaras de tecidos. Dessa forma, passamos a atender mais de 600 famílias por mês. Tudo isso apenas com apoio de amigos e de outras Organizações e Movimentos Sociais.  

Quando a gente recebia muitas unidades de alguma coisa, trocávamos por algum item que não tinha mais. Fizemos assim com máscaras e álcool em gel.  

Além de comida, as pessoas precisavam de informações sobre a Covid-19 e sobre o que o Governo estava fazendo em relação ao enfrentamento da pandemia. Para ajudar, nesse sentido, utilizamos da estratégia de colagem de lambe-lambe e de carros de som pelo bairro, com informações sobre a doença e ensinando a população a se prevenir.  

Além de informação sobre a pandemia, as pessoas clamavam por distração. Por isso também entregamos livros para as pessoas romperem as barreiras do isolamento, de certa forma. Apoiamos também os trabalhadores da saúde que estão atuando na linha de frente contra a Covid-19, levando uma carta escrita por alguém do Brasil especialmente aos profissionais da saúde.  

É assim que a favela, a comunidade, faz. Trocamos quando podemos, mas sempre dividimos. É assim que a favela sempre se sustentou e é assim que a favela vai seguir.