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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta Rio de Janeiro

“Nas prisões, com um surto pandêmico como esse, essa ação do vírus não vai trazer só extermínio”

Eu tive uma passagem em 2010. Começo minha história a partir desse processo. Apesar de haver outros marcos importantes na minha vida, esse vai contribuir muito pra esse relato.

Em 2010, já vivenciando uma vida familiar, acontece um processo de prisão e fico um período de cinco anos e seis meses cumprindo essa medida. Isso trás – para o meu futuro, presente e como fica no passado – muitas recordações, reflexões e questões nocivas. Mas que podem ser construtivas com um esforço próprio.

Quando falamos sobre sistema de prisão, a gente sabe que não funciona. Não trás benefício e sim danos. A sociedade que se debruça em cima das prisões como se fossem resolver todos os problemas sociais. Sabemos que existem diversas questões quando falamos de prisões, que trazem discussões, dores, sentimentos. Temos que ficar bem complacentes, pois são realidades diferentes.

Abordando o assunto prisões, você pode afetar diretamente uma pessoa que acredita que sofreu uma violência e reforçar que o sistema precisa ser assim. Ou pode afetar também outro público, que acredita que as prisões não são o caminho. Mas eu, lidando com essa questão, venho me trazendo muitas reflexões. A partir desse impulso, me trás um despertar para uma realidade, uma urgência.

Somos muito doutrinados, orientados para não enxergar a violência provocada pelo Estado. Conseguimos enxergar a violência que sofremos diretamente, no cotidiano, num furto ou assalto a mão armada, mas as que sofremos historicamente somos educados para não enxergar.

Começando a nos organizar…

A partir desse momento de viver intramuros, no cotidiano da prisão, começo a enxergar do ambiente micro uma questão macro dentro de uma realidade restritiva de direitos. Conseguimos notar como essa dinâmica social reflete diretamente nesses ambientes de privações.

As violências sofridas, não apenas dentro das unidades prisionais, mas antes mesmo de se entrar num sistema prisional brutal. A partir desse movimento, a gente começa a construir em coletivo, tentar se inserir em atividades atividade, incidir politicamente, apesar das restrições. Trazer ideias que poderiam mudar muitas trajetórias e realidades para uma galera que vem sofrendo, sendo massacrada, diluída, pulverizada dentro desses ambientes. E começamos a nos organizar para combater um sistema que vem trazendo reflexos nocivos, então alguns companheiros e eu começamos esses trabalhos.

“Eu sou eu – reflexos de uma vida na prisão”

A partir daí, o “Eu sou Eu” começa a ser construído dentro dessas unidades. Trazendo informações, vínculos familiares para essas pessoas que estavam ali, seus parentes vivendo uma ruptura dentro daquele local e vai potencializando. Alguns companheiros vão progredindo, dando sequência a essa dinâmica.

Nos encontramos na Praça da República, ali no Centro da cidade. Parece um surto de desespero para tentar fazer alguma coisa, sair daquele lugar que foi proposto, só recebendo danos, opressões, repressões.

Queríamos sair daquele lugar e tentar ajudar outras pessoas, porque nossos familiares foram extremamente afetados, a gente viu como é que é um processo de prisão, que não arrasta só um corpo, mas sim corpos. Os que são privados de fato entre concreto e grades e os que ficam privados socialmente e são sentenciados, não por um sistema jurídico, mas por um sistema social que também sentencia muito mais agressivamente do que apenas um bater de um martelo.

E hoje o “Eu sou Eu” está completando três anos, caminhando para quatro anos. Trazendo a realidade prisional que muitas vezes as pessoas não conhecem de fato, que é o dia a dia do cadeado que tranca e o que abre, do confere a visita, saída de uma unidade para outra.

Embora existam muitas pesquisas e pesquisadores debruçados nesse assunto, a realidade e a vivência extrapolam toda essa dinâmica. Trazemos essa visão, tentamos contribuir de alguma forma para que políticas públicas sejam cumpridas, sabendo que estas podem ser violadas diariamente. O Estado não consegue dar conta disso: ou por ser um projeto bem estabelecido, ou porque falhou.

E chega a pandemia

A gente tá vivenciando um momento pandêmico, uma realidade que vem mudando bruscamente, tanto socialmente, como financeiramente, e potencializa a desigualdade.

Quando se trata do sistema prisional não é diferente, já que se torna uma caixinha praticamente intransponível. Várias instituições de controle não conseguem ter muito acesso aos interiores das prisões. A própria secretaria de administração penitenciária tem essa autonomia de gerenciar esses ambientes, e traz informações subnotificadas, imprecisas, inverídicas – como se estivessem cumprindo as determinações penais.

Dentro desses ambientes, com um surto pandêmico como esse, entendemos que essa ação do vírus não vai só trazer um extermínio, mas também vai ser usada como um ferramenta de punição e até mesmo como uma forma de esvaziamento das unidades prisionais.

Porque se a gente tem um serviço de Sistema Único de Saúde (SUS) precário, um sistema na prisão que não funciona, não tem funcionários suficientes que dominam a medicina. Faltam funcionários para realizar o controle de testagem e de notificação. Há muito menos espaço para isolar pessoas contaminadas e de grupos de risco. São arquiteturas totalmente despreparadas, que não foram pensadas em trazer saúde, educação, “ressocialização”.

Temos um número enorme de contágios, mortes que não são notificadas, muitos familiares nem sabem. Enquanto pra muitos faz refletir sua humanidade, para outros é extremamente nociva, genocida. Uma realidade que trás medo, porque é um projeto de uma população específica – eu me incluo nessa estatística de pessoas pretas, faveladas e periféricas – a criminalização da pobreza. Esses espaços estão destinados para essa população.

“Nós por nós”

Nesse momento, sou articulador político e mobilizador da iniciativa Direito a Memória e Justiça e cofundador da associação Eu sou Eu – Reflexos de uma vida na Prisão

Para o futuro, eu vejo que existe a possibilidade quando construímos a partir da nossa realidade, do “nós por nós”, do compartilhamento das nossas dores e fazer disso uma nova conjuntura política com cuidado para não tropeçar nas mesmas questões que o Estado nos empurrou.

Mas com um Estado extremamente capitalista, de narcisismo, fica muito difícil de pensar em dias melhores. Parece que vai continuar essa questão de “ser resistência”.

Pra desfrutar de um futuro mais justo, vai partir de uma política popular, movimentos se unindo.

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