Eu sentia falta da minha rotina. Esse foi o maior impacto que senti. No começo, eu pensava que ter aquele tempo seria bom, que conseguiria ter mais calma. Mas à medida que o tempo passava, senti que fui perdendo o controle. Apesar de ter mais tempo, eu não conseguia produzir por conta da ansiedade e da pressão.
Tenho 28 anos, sou uma mulher preta, cotista e feminista. Nascida e criada na região do subúrbio ferroviário, numa família evangélica pentecostal, com 3 irmãs e um irmão.
Uma infância cheia de limites, e tolhida, principalmente em questões de liberdade e autoconhecimento corporal. Apesar disso, desde muito nova, eu era questionadora.
Uma ideia falsa e uma rotina verdadeira
Com 17 anos, quando tive a primeira oportunidade de fazer um curso que oferecia uma bolsa com um valor simbólico, por exemplo, com o dinheiro que recebi – comprei a minha primeira calça – peça de roupa proibida pela igreja e, consequentemente, pelos meus pais.
Era como um grito de liberdade.
Meus pais não receberam muito bem, me apontavam como revoltada, insubmissa. Minha irmã mais velha, dizia: “como você está tendo essa ousadia? Nem eu mesma tive essa coragem”.
Mas sempre que eu identificava um desejo meu, eu buscava caminhos para realizá-lo.
obrigada a frequentar, pois em diversas vezes, me sentia desconfortável.
Não sei como e nem com quem aprendi, mas eu desenvolvi esse senso de estabelecer os meus limites.
Conhecendo o mundo
Essa experiência de conhecer o mundo, saindo das vivências domésticas, e fora do bairro, me fez desabrochar. Após entrar na faculdade, com 18 anos, no bacharelado em Direito, paguei meu primeiro curso profissionalizante: um curso de maquiagem, que era algo que — também, segundo a igreja — eu não poderia usar.
Tornei-me maquiadora profissional, atuante na área da beleza e, mesmo com todas as questões envolvidas, meu pai foi na minha formatura. Essa área, inclusive, se tornou muto importante para mim, pois é como uma fonte de liberdade e expressão.
O curso de Direito é muito técnico, e a maquiagem é como uma manifestação mais completa de quem eu sou e do que eu sinto. Outro momento importante para mim, foi quando, aos 18 anos, após passar pela transição capilar, deixando o cabelo crescer, fiz o ‘big shop’, que elimina, por completo, a química do cabelo.
Na semana seguinte ao corte, era o casamento da minha irmã. Mais uma vez minha família me fez retaliações, diziam que eu queria aparecer, como se algo que é meu não fosse.
Era o que meu pai dizia: “Você fez algo em seu cabelo, eu não o reconheço.”
Aquilo me chateou, mas não me fez desistir dessa trajetória identitária.
Hoje em dia, conversamos sobre essas pautas, e a minha mãe, que antes não se reconhecia enquanto mulher preta — por questões de vivências pessoais e uma série de influências que se cruzam pelo caminho —, já se vê como tal.
A rotina de viver durante a pandemia
Recebi a pandemia num momento de reencontro com a universidade. Eu já iniciara os estudos numa faculdade privada, pelas cotas, mas por uma série de problemas estruturais — que a maioria de nós já conhece — precisou quebrar esse vínculo.
Fiquei um tanto perdida, sem saber se queria voltar, se teria uma oportunidade para retornar, ou não. E, justamente, neste retorno, no momento de ressignificação, para mim, da vida e ambiente acadêmicos, recebemos a notícia de que as aulas presenciais estavam suspensas.
Eu tinha uma rotina enlouquecida, acordando às 5 da manhã, voltando para casa depois das 22h — estágio de manhã e à tarde, e faculdade à noite. Muitas vezes, estudando e me alimentando nos trajetos entre um compromisso e outro.
Exatamente quando a pandemia começou, eu estava começando a escrever o TCC. Como disse, era exatamente o meu processo de reencontro na universidade — fazendo novos amigos e criando laços de amizade.
Foi muito difícil me deparar com a obrigatoriedade do ensino à distância, que eu considero frio, e só piorou quando a minha orientadora, grávida, contraiu Covid-19.
A faculdade se isentou da responsabilidade de me disponibilizar outro orientador, e precisei fazer tudo praticamente sozinha.
Foi muito estranho…
Eu me sentava na frente do computador e não conseguia escrever absolutamente nada. E, depois de tudo, a minha defesa para a banca aconteceu por uma ligação de áudio no WhatsApp.
Foi estranho. Eu senti como se não tivesse entregado aquele trabalho.
As perdas mais próximas, de familiares, nesse período, não foram motivadas pelo coronavírus. Foi um momento exaustivo e preocupante. Toda a rotina de cuidados, lavar tudo, passar álcool em absolutamente em tudo, era uma preocupação que beirava o desespero.
Meus pais ficaram doentes, sendo que meu pai de uma forma mais agravada. Contudo, não sabemos até hoje se foi Covid-19 ou não, porque a orientação para ir ao médico era apenas se os sintomas chegassem em um nível muito sério, — caso contrário, os hospitais poderiam ser focos de contaminação.
Tivemos medo de perder alguém, mas isso não aconteceu. E toda essa movimentação pelo medo de perder pessoas, me fez perceber que eu que eu gostava de gente.
Eu percebi que gosto de pessoas, de estar com elas, de interagir e lidar.
Vi pouquíssimos amigos, e sinto muitas saudades. Anseio muito pelos reencontros, pelos abraços. Eu realmente espero que daqui para frente, nós consigamos nos reestabelecer mentalmente