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25 a 39 anos Ensino Médio Completo Indígena Mulher Cis Roraima

“Tudo da pandemia foi algo alarmante e inesperado para as comunidades indígenas”

Meu nome é Yoli Silva, sou indígena Warao, de Amacuro, na Venezuela, e tenho 34 anos. Faço parte do grupo de Tuxauas aqui em Boa Vista, no abrigo Jardim Floresta.

Vivo no Brasil há três anos, mas em Boa Vista estou há oito meses, desde dezembro do ano passado, quando me transferiram de Pacaraima. 

Tudo da pandemia foi algo alarmante e inesperado para as comunidades indígenas. Algo que nenhum ser humano estava esperando. No início da pandemia, em 2020, foi terrível. O medo consumiu todas as pessoas dentro do abrigo de Pacaraima, onde eu estava com outros indígenas.

Ida a Boa Vista

No dia 15 de abril de 2020, meu pai testou positivo para a Covid-19 e foi transferido de Pacaraima para Boa Vista, no Hospital Geral (HGR). Eu o acompanhei e fui levada para outro alojamento do Exército, onde estavam as pessoas ou familiares que eram trazidos de Pacaraima para cá. 

No abrigo para acompanhante das pessoas contaminadas, em Boa Vista, o exército nos proibiu de irmos à cidade, de fazer compras. Sempre tínhamos que usar máscaras, manter distância. Então nós mesmos começamos a preparar remédios, com as plantas medicinais e limão. Esses medicamentos naturais foram muito bons para curar os sintomas do Covid-19 e eu, graças a Deus, nunca fui contaminada. 

Meu pai ficou 15 dias internado e foi entubado. Eu só soube disso quando tinha voltado a Pacaraima por um tempo para cuidar dos meus filhos que estavam sozinhos. Quando meu pai voltou para casa, ele estava muito magrinho, muito delicado. Ele se cansava muito e tinha dificuldade para respirar. 

Vacinação

Estou vacinada com a primeira dose e me falta a segunda. Minha esperança é a de que tudo melhore, que todos se previnam, tenham um cuidado maior com a saúde.

Relato de Yoli Silva, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Ensino Superior Completo Homem Cis Parda Roraima

“Foi na pior fase da pandemia que meu irmão morreu. Ele tinha 35 anos”

Meu nome é Josué Ferreira. Eu tenho 25 anos e sou jornalista.Quando eu comecei a cobrir a pandemia, nunca pensei que algo iria acontecer com minha família, mas infelizmente aconteceu.

Foi na pior fase da pandemia que meu irmão morreu, em fevereiro de 2021. Ele era novo, tinha 35 anos. Acabou fazendo aniversário na UTI. Eu fiquei com ele grande parte desse período de internação, revezando com minha cunhada. Ver meu irmão em um estado grave e sem conseguir fazer muita coisa foi bem difícil. 

Ele estava internado em um Hospital de Campanha de Roraima e seu estado acabou piorando. Com o agravamento de sua saúde, seu pulmão ficou comprometido e ele foi transferido ao  hospital referência em Roraima e precisou ser entubado. 

Esse foi o momento mais difícil da pandemia porque foi a última vez que eu falei com ele. Eu disse para ele não se desesperar e ele me respondeu dizendo: “mano, eu estou indo morrer. Adeus”. Ele se despediu em um tom muito desesperador. Ter falado com ele pela última vez, nas circunstâncias que nos falamos, me marcou muito.

Meu irmão era uma pessoa cheia de vida. Tinha planos de ter a casa própria; planos de ver o filho crescer. Ele deixou um filho de 10 anos. Os sonhos foram interrompidos e a família ficou dilacerada. 

Muitas pessoas estariam vivas ainda se tivéssemos um sistema de saúde bom. Mas a realidade foi outra: não havia medicamento, equipamento; e não havia profissionais o suficiente para cuidar dos doentes. 

Volta ao trabalho

Outro momento complicado foi quando tive que voltar a trabalhar. Eu voltei para fazer cobertura da morte, dos casos de Covid-19. Continuar a falar da morte sabendo que um familiar seu firou estatística, um número, é muito forte. 

E isso só aconteceu por negligência. Muitas pessoas estariam vivas ainda se tivéssemos um sistema de saúde bom. Mas a realidade foi outra: não havia medicamento, equipamento; e não havia profissionais o suficiente para cuidar dos doentes. 

A morte do meu irmão ainda é uma ferida que está cicatrizando. Não é vida que segue. 

Processo de luto

No fim do ano eu viajei para participar de um processo de seleção para uma vaga de Mestrado na Universidade Federal de Roraima e meu irmão foi uma das pessoas que mais me apoiou. Quando eu consegui a vaga de Mestrado, ele ficou super feliz, me mandou uma mensagem me parabenizando e, no mesmo dia em que foi realizada a primeira aula do mestrado, eu não pude participar porque estava no hospital atrás de um exame de tomografia para meu irmão. .

Sei que o tempo vai amenizar a dor, mas precisei procurar uma ajuda de um profissional, um psicólogo. Com ajuda profissional, fui entendendo meu processo de luto. 

Não tem como acordar e dizer: “ah, está tudo bem, não aconteceu nada, estávamos sonhando”. Eu só espero que a gente acorde desse pesadelo o quanto antes.

Mortes por negligência

Eu acho que a pandemia tem muitas facetas. Você acaba se deparando com várias delas ao longo de mais de um ano de pandemia. E, mesmo assim, ainda existem muitas pessoas que não acreditam no vírus.

É triste porque muitas pessoas perderam a vida por conta da negligência. O Brasil passou por uma fase de negligência muito grande: havia vacinas para serem compradas e o país não comprou. É a partir desses fatos que eu penso que meu irmão poderia estar vivo hoje. 

Não tem como acordar e dizer: “ah, está tudo bem, não aconteceu nada, estávamos sonhando”. Eu só espero que a gente acorde desse pesadelo o quanto antes. As pessoas precisam entender que o vírus mata, que famílias inteiras foram dilaceradas! E é muito grave e preocupante! 

E mais uma coisa: fora Bolsonaro! É isso que a gente quer!

Relato de Josué Gomes, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Ensino Médio Completo Homem Cis Parda Roraima

“Eu renasci das cinzas”

Meu nome é Erinelson Valentim, tenho 49 anos e vivo em Roraima. Sou o primeiro sobrevivente do Covid-19 em meu Estado. 

Eu sou técnico de radiologia e atendi dois pacientes com sintomas de Covid-19 antes de conhecermos casos da doença do Estado. Uma semana depois, os primeiros casos foram declarados e eu comecei a sentir os sintomas: coriza e dor de cabeça. 

Mesmo não querendo, minha esposa me levou ao hospital e não queriam me internar porque não havia testes. Eu piorei e voltei ao hospital e fui internado com urgência., já que 80% do meu pulmão estava comprometido  pelo Covid-19. Fiquei 18 dias entubado.

Também sofri uma parada cardíaca e um AVC [acidente vascular cerebral , mas consegui resistir. Fui o primeiro do estado a resistir à intubação e ao vírus. 

Depois que saí da internação, fiz duas ressonâncias magnéticas para saber o grau da gravidade que o Covid tinha me deixado. Uma sequela da doença é que passei a ser hipertenso e tomo medicamentos para controlar a pressão. 

Passei por dois neurologistas e eles disseram que eu já estava apto a trabalhar. Porém, nos primeiros dois meses eu percebi que não estava bem. Passei setenta dias em casa me recuperando e contei com muita ajuda familiar.

Volta ao trabalho

Mas eu digo com toda sinceridade que eu renasci das cinzas. Depois desses 18 dias que eu passei internado, penso que eu quero trabalhar na Saúde, trabalhar com o público e com o pessoal da Saúde. 

Acho importante conscientizar as pessoas de que a pandemia é real, existe e temos que nos precaver. Sou muito grato e agradeço a Deus todos os dias por estar vivo e poder ajudar outras pessoas, que vão precisar do nosso trabalho.

Relato de Erinelson Serrão, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Mulher Cis Pós-Graduação Completa Prta Roraima

“É muito grande a dor de perder uma pessoa por falta de vacina”

Meu nome é Daniela Esther. Eu tenho 49 anos, sou farmacêutica e estudante de jornalismo – estou quase concluindo o curso. Sou servidora municipal e estadual e trabalho em posto de saúde e também na Vigilância Sanitária do Estado. 

A pandemia me afetou em todos os aspectos, com exceção do financeiro porque eu sou funcionária pública. Mas, em relação aos aspectos emocionais e estruturais, ela me afetou. 

Eu presenciei os primeiros casos de Covid-19. Ainda em fevereiro de 2020, quando fui a Fortaleza (CE) para passar o carnaval eu já previa que essa pandemia chegaria ao Brasil e seria um sufoco. 

Ao voltar de viagem, em março do mesmo ano, tivemos o primeiro caso aqui em Roraima. Em maio de 2020, recebi um telefonema de uma tia avisando que meu pai estava com Covid-19 e que não havia vagas no hospital para interná-lo. Meu pai morava em um abrigo de idosos no Rio de Janeiro e ele morreu sem atendimento. Não consegui viajar para ajudá-lo. Eu fiquei desesperada. Nem o direito de viajar e ver meu pai eu tive porque não havia voos disponíveis. 

Essa foi a minha primeira perda. Depois, vi pais de minhas amigas e pessoas do meu ciclo de amizades morrerem.

Comecei a ter muita ansiedade e me automedicar achando que os remédios iriam me proteger. Tomei inclusive ivermectina, mesmo sabendo que não tinha efeito algum contra o vírus

Medo da contaminação por Covid-19

Há dois anos eu fiz cirurgia bariátrica e trabalhei durante a pandemia com muito medo, com pavor. Trabalhar no atendimento, recebendo documentos, receita médica, com medo de se contaminar é complicado. Eu passava álcool em gel a todo momento, era quase um TOC [ transtorno obsessivo-compulsivo]. Às vezes eu dormia com máscara de tão acostumada que eu estava a usá-la. Era muita tensão. Eu não sabia se iria sobreviver ou não. 

Comecei a ter muita ansiedade e me automedicar achando que os remédios iriam me proteger. Tomei inclusive ivermectina, mesmo sabendo que não tinha efeito algum contra o vírus.

Vacina: menos sintomas e nenhuma sequela do Covid-19

Em janeiro de 2021 eu me vacinei e tomei a segunda dose em fevereiro. E, em junho do mesmo ano, eu peguei o Covid-19. Foi uma situação muito complicada, mas graças à ciência eu não tive sequelas e os sintomas foram mais fracos. 

Porém, o isolamento social me causou muita dor, já que a minha vida é muito dinâmica: das 7h às 22h eu faço muita coisa e tive que mudar totalmente esta dinâmica durante os 15 dias de isolamento.

Outras mortes por causa do vírus

Quando voltei ao trabalho, meu chefe, que era um homem sozinho e tinha problemas de diabetes, morreu de Covid-19. Eu acompanhei todo o processo: eu o levei ao hospital e os exames que ele fez. Mas, em uma semana ele estava morto. Eu senti muito a sua morte. Convivia diariamente com ele. Ele tinha 65 anos, praticamente a idade do meu pai, que morreu com 68. Eu sempre dava carona a ele. 

Em abril de 2021, o esposo da minha tia mais nova também morreu. Ele não se vacinou porque ainda não havia vacinas para a idade ele. Fiquei muito abalada com sua morte porque ele era uma pessoa de luz. É muito grande a dor de perder uma pessoa pela falta da vacina.

Assim como eu reconheci minhas fragilidades e procurei ajuda, é importante que outras pessoas possam procurar ajuda. É importante conversar, desabafar. E, além disso, é importante se vacinar e conscientizar outras pessoas sobre a importância da vacinação

Retorno ao tratamento psicológico e psiquiátrico

Com todas essas perdas, eu me desestruturei. Fiquei com um nível altíssimo de ansiedade, voltei a beber e a comer – mesmo não podendo por causa da cirurgia bariátrica. Então eu decidi voltar a fazer tratamento psicológico.

Alguns meses depois, em julho de 2021, percebi que o acompanhamento psicológico não era suficiente porque eu estava com depressão. Então fui a um psiquiatra. Conversamos bastante e entrei com medicação para melhorar a ansiedade. 

Estou bem melhor e nesta quarta-feira vou tomar a terceira dose da vacina. Estou muito feliz.

A esperança está na vacinação. Com o avanço da vacina, há menos vítimas do Covid-19. Vamos superar, vamos conseguir passar por isso. 

Gostaria de dizer que, assim como eu reconheci minhas fragilidades e procurei ajuda, que outras pessoas possam procurar ajuda. É importante conversar, desabafar. E, além disso, é importante se vacinar e conscientizar outras pessoas sobre a importância da vacinação. Temos que ouvir a ciência, ouvir a razão. Vacinem-se!

Relato de Daniela Xavier, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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60 anos ou mais Amazonas Ensino Fundamental Incompleto Homem Cis Prta

“Eu sou vigia aqui do Caprichoso desde 2015, quando essa doença chegou”

Meu nome é Jorge Oliveira dos Santos. Tenho 69 anos e farei 70 em janeiro, se Deus quiser.

Sou vigia do Caprichoso desde 2015, e vou dizer para você: “não é fácil não” — tudo parou, as coisas ficaram muito complicadas. E para piorar, nessa época minha mulher estava em Manaus e eu estava aqui. Eu pensava assim: “ela pra lá eu pra cá”. Se eu adoecesse aqui, ela não podia vir para cá, e se ela adoecesse lá, eu não podia ir para lá”. 

Todas essas coisas se passavam pela minha cabeça e eu sempre perdia o sono. Em alguns momentos eu só dormia um pouquinho, “na boca da noite”, e de madrugada eu ficava pensando todas essas coisas, sabe? Aí eu pedia tanto para Deus que nos desse força, que nos livrasse de todas essas doenças, não só na minha família como em todas as outras. Mas essa doença tirou muita gente, muitos colegas nossos. Até minha irmã, que morreu em Manaus, três dias após eu completar 69 anos. E assim foi… levando as coisas e, até hoje em dia, eu não assisto televisão direito. Às vezes um pouquinho de jornal, um pouquinho de jogo, aí quando vejo aquelas notícias da doença, opto por não assistir mais à televisão.

Tudo parou

Então, tudo parou né!? Aqui nesse galpão a gente olha de um lado para o outro e não se vê ninguém como antigamente — já que minha trajetória de Caprichoso se iniciou em 1996. Lá trabalhei como soldador, e depois que chegou essa doença, acabou tudo. Muita gente tem falta disso, pois, quando terminada o Boi, eu viajava para São Paulo e Rio de Janeiro. E devido à paralisação, eu ficava sem ganhar esse dinheiro. 

Os artistas e soldadores vivem desse trabalho de vai e volta, e assim fica. Então, agora eu espero, se Deus quiser que eu continue trabalhando. Eu, com muito cuidado sempre, chegava em casa, já tomava muito cuidado, muito remédio — que era dividido entre filhos e irmãos — e máscara. Eu não tiro a máscara por nada. No Galpão, mesmo sendo só eu e o meu colega que não está lá diariamente, eu nunca tiro a máscara — tirei só agora para dar essa entrevista. Só tiro para beber água, comer algo, mas depois eu boto de novo.

Eu espero que tudo volte ao normal, porquê esse vírus não é. Depois que eu tomei a primeira dose da vacina, antes de inteirar os 3 meses, a enfermeira ligou para mim, que já estava com mais de dois meses, pedindo para retornar e tomar a segunda dose. E, se Deus quiser, agora dia 8 eu tomo a terceira dose já de novo, se Deus quiser. Tenho fé em Deus que tudo vai passar, que tudo vai voltar ao normal, se Deus quiser, tenho fé em senhor Jesus.

A festa do Boi Caprichoso

Assistimos a  live do Bumbódromo, e já deu um alívio mesmo não sendo como a festa que a gente ia. Então, a live já me deu mais uma esperança. Voltando a falar brevemente sobre a minha irmã, mesmo ela se cuidando, ela foi embora. Apesar disso, creio que as pessoas, nesses tempos de pandemia, passaram a dar mais atenção e carinho para as suas famílias — o que é ótimo. 

Agora, pensando, esse momento foi bem difícil, né? Mas, felizmente, trouxe bastante aprendizado para as pessoas. Hoje em dia, a gente fica mais alegre, pois eu saio na rua para ir ao trabalho e depois volto para a casa. As pessoas já estão andando mais, circulando pelas ruas. E eu espero que, se Deus quiser, que em 2022, já vai ter o festival, e isso vai ser um alívio para muita gente. 

O festival do Boi é um evento muito importante para as pessoas da nossa cidade, trazendo venda e lucro para nós.

Vai passar…

Termino esse relato agradecendo, e dizendo que aprendi muito com essa doença que circulou na nossa cidade. Se cuidar e ter o maior cuidado, como, por exemplo, chegar em casa e já ir direto para o banho, para depois entrar em contato com a minha família. Eu já não chego mais em casa como antigamente. 

Espero que, mesmo após ter tomado a vacina, as pessoas continuem se cuidando.

E quem não tomou a vacina, que procure um posto de saúde!

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25 a 39 anos Branca Homem Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Não me permiti sofrer para ser suporte

Estava sendo exaustivo trabalhar no segundo e no terceiro setor e, ao mesmo tempo, senti estar sem suporte — ambos os trabalhos estavam exigindo muito de minha parte.

Trabalhei com vendas durante muito tempo, sempre na área da gestão. Após idealizar e co-fundar a ONG Nariz Solidário, percebi que já não conseguia mais realizar às duas coisas.

A Covid-19 tirou o meu suporte

Comecei a perceber que, minha energia era muito maior quando se falava no social, meu interesse era o dobro, e bingo! O universo conspirou, e me fez perder o emprego.

Por dois anos desisti de vagas, reprovei em outras, vi-me vulnerável, e coloquei minha família em vulnerabilidade.

Foi aí que decidi focar no terceiro setor e na ONG. Consegui até uma bolsa para me especializar mais na área, trabalhei brevemente em outra ONG, e adquiri mais experiência.

No início de 2020, decidi ficar 100% dedicado ao trabalho social. Tudo ia bem, de forma muito promissora, até que uma bomba chamada Covid-19, explodiu.

Sem suporte e sem emprego, a Covid-19 chegou

Estou acostumado a trabalhar em ambientes de pressão, mas, poucas vezes, me vi com tanta ansiedade.

Era uma pressão no meu peito e, uma sensação indescritível; golpeava-me com muita força.

 Essa situação se tornou extremamente exaustiva quando, precisei me manter firme, pela minha família, e por todos os voluntários da ONG.

Não me permiti sofrer para ser suporte, ser refúgio, mas, gradualmente, fui percebendo que não estava funcionando.

Eu poderia estar empregado, ganhando bem, sem aquela loucura social, ou quem sabe, já teria sido cortado e estaria, no mínimo, recebendo auxílio emergencial.

De certa forma, não dava para prever e nem para mudar. Minha filha, na época com 12 anos, até entendia algumas questões, já o meu filho de três anos, só entendia querer leite com chocolate, e quando o papai estava feliz, ou nervoso.

Ficamos um ano confinados em um buraco que parecia não ter fim. Ele, querendo brincar, e eu, tentando me organizar entre o meu inferno interior e o equilíbrio de ser um pai para ele e tantas outras coisas para tanta gente.

Nesse período, minha esposa ainda conseguiu manter seu trabalho, mesmo autônoma. Nesse período, também, a saudade da minha filha que mora com a mãe em outro estado me doía. Eu estava falido, sem saída.

Não foi conselho, foi suporte e cuidado

Alguns meses depois, convoquei uma reunião com os facilitadores da ONG. Minha intenção era de pedir ajuda, mas também, estava em busca de alguém que me convencesse a desistir, pois, não estava conseguindo engajar os voluntários afetados pelas problemáticas sociais.

 Eu sabia que nosso público-alvo estava ainda mais vulnerável e, nós tínhamos que estar lá, afinal, nascemos do caos e para ele.

Mas eu também estava sem forças. Em uma pausa de desabafo, o Thiago, do Marketing, me salvou.

 “Du, respira, grandes CEOs de grandes empresas, com profissionais de alta desempenho, não estão sabendo o que fazer.”

Os demais também manifestaram apoio. Foi uma fala tão simples, mas tão potente para mim naquele momento, que me desacelerou e me fez reorganizar as minhas emoções.

O acolhimento emocional

Larguei o computador por uns dias, minhas dores diminuíram, já que eu acordava com o computador ligado e praticamente dormia em cima dele.

Passei a brincar mais com meu filho, peguei novamente no violão, comecei a cuidar de mim e da minha esposa. Fiz umas ligações despretensiosas, assisti a filmes, e desacelerei.

Após esse momento de relaxamento, comecei a analisar o que poderia dar certo: as tendências, urgências, demandas, parcerias, e as amizades de valor.

Em uma tentativa arriscada de fazer lives, já que eu tinha medo de dar opiniões tão abertamente, deu certo. Fomos um dos primeiros grupos artísticos a fazer lives e a abordar assuntos específicos sobre nosso contexto — coloquei tudo para fora.

Esse movimento culminou em cursos ‘on-line’, e na criação de fóruns inéditos no país.

Os recursos começaram a entrar, e com isso, chegou-se a um estágio de eu estar contribuindo para ajudar colegas a saírem do mesmo buraco em que estive.

O que mais me chamou a atenção, foi que à medida que, os problemas sociais e globais iam aumentando, e o nosso trabalho, ia tomando ainda mais força.

Minha mente conseguiu canalizar toda aquela dor e me fez organizar tudo que eu já estudara na vida.

Como um sopre de apoio

Como um sopro de esperança, alguns projetos foram aprovados e, conseguimos gerar empregos para artistas voluntários que, também se encontravam vulneráveis.

Em meio ao caos, conseguimos manter nosso trabalho nos hospitais em um momento em que, praticamente 100% das atividades semelhantes em todo o país, haviam sido bloqueadas.

Recentemente, fiz uma análise dessa trajetória, em busca de entender quais foram os pontos que me tiraram daquele abismo, e me trouxeram a ser corresponsável por impactar mais de 40 mil pessoas na pandemia.

Percebi que, ainda fraco, mantive o propósito e, quando estava prestes a perdê-lo, ele me encontrou e floresceu de dentro daqueles que ajudei de alguma forma, que, assim como eu, estavam aflitos, exaustos e que, por meio da arte, encontraram forças para continuar.

Isso me fez perceber na prática, a lei do retorno. “Do buraco ao solo”

Quem cuida de quem cuida?

A pandemia me fez perder incontáveis amigos e familiares. Contudo, é estranho dizer que o luto, virou cotidiano. Mesmo quando todos em casa positivaram, pareceu não mais causar medo e, até hoje, ainda reflito sobre esse sentimento.

Penso que, é uma utopia sofrer com a esperança de que algo retorne, pois não vai, e essa fase do luto, acabei apaticamente vencendo.

Por outro lado, tudo isso também me fez ser melhor, mais humano, mais forte, um melhor pai, esposo, amigo, profissional. Aprendi a conviver melhor com meu ego, e a ter mais paciência e tolerância de meus medos.

 Ainda não está favorável, continuamos nossa luta, fazemos isso com arte. Talvez nunca esteja favorável, embora lutemos para isso – é um paradoxo que permeia quem mergulha muito na lógica e na tentativa de acabar com a nossas mazelas.

Quanto a isso, não tenho respostas, somente o momento presente.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa Sem categoria

As Unidades de Internação se transformaram em UTIs

O contexto da minha história se passa no Hospital Municipal do Idoso Zilda Arns (HMIZA), especificamente nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), onde leitos foram abertos para atender à demanda de casos de Covid-19, durante a pandemia sanitária.

 Na UTI, os profissionais de saúde e voluntários atuam em conjunto visando proporcionar um cuidado integral ao paciente e a seus familiares. As alterações da rotina dos profissionais se iniciaram em março de 2020, em virtude da pandemia da Covid-19.

Dentro da UTI

Essas alterações podem ser exemplificadas, por exemplo, pelo uso de mais Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Assim, deixamos de utilizar o jaleco branco para fazer o uso de aventais, máscaras N95, ‘face shield’, touca e luvas descartáveis para evitar a contaminação do vírus na UTI.

 Além disso, as Unidades de Internação foram transformadas em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), havendo a necessidade de contratação de mais profissionais de saúde, do fechamento de atendimentos ambulatoriais e da limitação de visitas presenciais.

No início da pandemia, muitos profissionais de saúde expressaram reações emocionais de ansiedade diante da falta de conhecimento acerca do novo coronavírus, como o medo de se contaminarem e passarem para os seus familiares, bem como o medo de morrer, de perder entes queridos e colegas de trabalho.

A pandemia foi um desafio para os profissionais de saúde

Com a ausência de visitas familiares, percebemos que os pacientes internados na UTI, que estavam conscientes, ficavam tristes. Diante disso, gostaria de narrar a história da atuação da psicologia durante a pandemia de Covid-19.

A nossa prática foi modificada nesse período. No início da pandemia, criamos um serviço de atendimento psicológico aos profissionais de saúde, visto que identificamos o sofrimento psíquico de muitos profissionais.

Claro que nós, psicólogos, também estávamos com medo e ansiosos, mas, percebemos caber à nossa profissão, oferecer apoio psicológico aos demais profissionais.

Ausência e tratamentos na UTI

Com a ausência de visitas familiares, percebemos que os pacientes internados na UTI, que estavam conscientes, ficavam tristes em decorrência do processo de adoecimento, da hospitalização e do distanciamento dos familiares.

Por outro lado, os familiares ficavam ansiosos e passavam o dia esperando a ligação telefônica do boletim médico para receber notícias do paciente, já que este não podia ficar com o próprio celular.

Muitas dessas videochamadas tinham uma tonalidade de despedida

Diante desse distanciamento entre pacientes e familiares, nós, psicólogos e assistentes sociais, com o apoio da gestão do hospital, começamos a realizar videochamadas com o intuito de aproximar os pacientes e seus familiares, como substituição das visitas presenciais.

Realização de videochamadas na UTI no Hospital Zilda Arns

Além disso, foi muito comum realizarmos videochamadas, a pedido dos pacientes, antes do processo de intubação orotraqueal na UTI. Muitas dessas videochamadas tinham uma tonalidade de despedida, já que o paciente não sabia se sobreviveria ao tratamento invasivo.

Essa situação me deixava angustiada e triste, principalmente quando alguns desses pacientes faleciam. Frente aos diversos óbitos, especialmente no “pico da pandemia”, percebemos que muitos familiares não tiveram a oportunidade de se despedir do paciente e, no caso da morte por Covid-19, não podiam realizar velório.

Para a psicologia, são muito importantes os rituais de despedida, visando evitar que os entes queridos constituam um luto complicado.

A partir da relevância dos rituais de despedida, foi acordado com a equipe de saúde, a liberação de algumas visitas especiais de familiares aos pacientes em processo ativo de morte na UTI.

Essas visitas eram geralmente assistidas pelos profissionais de psicologia ou assistentes sociais. Durante a pandemia, vi muitos pacientes jovens, adultos e idosos falecerem, diversos membros de uma mesma família partirem em um pequeno intervalo de tempo.

O psicólogo, muitas vezes, acompanhava o familiar para dar a difícil notícia do falecimento de um ente querido por Covid-19 para o paciente. Face a esse sofrimento de diversas perdas, percebemos a necessidade de comemorar a recuperação de cada

Paciente que sai da UTI, porque, significava uma conquista para a equipe de saúde. Tivemos algumas situações de alta hospitalar com comemorações, onde familiares aguardavam o paciente do lado de fora do hospital com bexigas e cartazes, e até tivemos pedido de casamento.

Isso me deixava feliz

Perante os desafios enfrentados pelos profissionais de saúde durante a pandemia, os vídeos do Nariz Solidário, os agradecimentos de pacientes, familiares e empresas, nos motivavam a dar continuidade ao nosso trabalho.

Vocês, voluntários, nutrem a nossa energia, tornam o ambiente hospitalar mais leve e alegre, proporcionando atendimentos humanizados. Vocês são essenciais e especiais! Muito obrigada pelos vídeos em um momento tão difícil das nossas vidas.

A pandemia nos ensinou a refletirmos nossa finitude e o nosso sentido de vida

Para nós, psicólogos, percebemos a importância da humanização do atendimento no contexto hospitalar.

No pós-pandemia, algumas estratégias são: retornar as atividades de humanização e as visitas presenciais de familiares.

A pandemia nos ensinou a refletirmos nossa finitude e nosso sentido de vida. Aprendemos a valorizar a importância das nossas relações sociais, dos afetos, da saúde e do trabalho saudável. Passamos por um luto coletivo, pois nossas vidas foram modificadas pela perda do nosso “mundo normal”.

Sofremos e nos solidarizamos com a dor do outro nesse período.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Trans Paraná

Familiares recuperados da Covid-19

Após quase dois anos de pandemia, trabalhando na linha de frente em um Hospital de Campanha em atendimento à Covid-19, pude vivenciar diversas histórias trágicas com a perda de familiares, porém, em contrapartida, algumas histórias de sucesso me marcaram, como a de uma paciente de 35 anos.

Resiliência em momentos conturbados

Internada por dois meses, após ser entubada, ‘traqueostomizada‘, dialisada e submetida a diversos procedimentos invasivos, conseguiu se recuperar.

Saiu da ventilação mecânica, retomou suas lembranças e retornar à sua casa, junto de seus familiares, agradecendo a toda a equipe pelos cuidados.

Nós, médicos, psicólogos e enfermeiras, vibramos por cada vitória de devolver mais uma mãe, um pai, um filho ou um irmão aos seus entes queridos. Viva a família e os familiares.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Trans Paraná

Leveza para além da Covid-19

A rotina em um hospital de campanha de Covid-19 é extremamente desgastante.

Aos poucos, fomos nos deparando com olhares cansados e um desgaste emocional que se instalou pelos corredores. O cansaço para conter a pandemia de Covid-19 era grande.

Em algumas paredes, os relógios que, em alguns momentos estacionavam seus ponteiros, em outras, despencavam em uma velocidade absurda.

Era um manequim de rodinhas e tablet

Fui abordada pelo hospital, para receber uma proposta artística remota, a única intervenção desse tipo até o momento. Quando fiquei sabendo, confesso que permaneci resistente à ideia de sair da minha rotina de cuidar dos pacientes com Covid-19, e abraçar um novo viés de trabalho.

Com o passar das visitas, barreiras foram rompidas e, hoje, escuto pelos corredores: “essa semana terá visita dos palhaços?”.

A risada e as bochechas…

O humor e alegria que todos transmitiam, começou a fazer uma diferença enorme na vida das pessoas que se encontravam dentro desse hospital, lutando contra a Covid-19.

Eu não consigo dimensionar em palavras essa importância e o seu efeito no ambiente de trabalho, e na recuperação dos pacientes que estavam com Covid-19.

Médicos e funcionários em um hospital de campanha para a contenção da Covid-19, junto da ONG Nariz Solidário.

E digo pela minha pessoa: meus dias ficam muito mais felizes em momentos de visita do Nariz Solidário. As bochechas chegam a doer por baixo da máscara depois de muito riso.

Todas as quartas-feiras, às 10h da manhã, os corredores se enchem de música e piadas com a visita virtual do Nariz Solidário.

Alguns funcionários se escondem por vergonha de se expressar dentro do ambiente hospitalar, outros, aparecem e dizem que esperaram a semana toda por esse momento.

De Covid-19 para Covidina

Foi escolhido pela equipe o nome ‘Covidina’, em referência ao momento em que vivenciamos.

Desta forma, todas as quartas, músicas são ouvidas, dancinhas são criadas, e tamanha a ansiedade e a expectativa pelas visitas do Nariz Solidário.

A alegria se instala e, por alguns instantes, um lugar que carrega o peso da responsabilidade de cuidar e de salvar vidas, também se torna um lugar de risadas e leveza.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Até logo, voluntários

Meu nome é Valéria Azevedo e coordeno o Serviço Social e Voluntariado do Hospital Municipal do Idoso Zilda Arns, em Curitiba. Nossa história com o Nariz Solidário começou em 2017, quando um jovem cheio de empatia, sonhos e ideais, procurou pelo Voluntariado do Hospital.

Chamou-me a atenção a maneira de se colocar no lugar do outro, desenvolver estratégias com responsabilidade e profissionalismo, através da figura do palhaço caracterizado de época – diferenciais observados quando acompanhamos a atuação dos voluntários do Nariz Solidário.

Sempre desenvolvendo o trabalho através da arte, chegando aos pacientes, familiares e equipe de uma forma muito lúdica, leve e harmoniosa. Levando a uma reflexão de que o vivido no passado e no hoje serão, amanhã, frutos para um futuro cheio de aprendizado.

Os voluntários voltam virtualmente

foram afastados de suas atividades, aquela presença que nos fazia esquecer por alguns instantes da doença, da dor e do sofrimento, agora estava tão distante, sem previsão de retorno.

Foi então que eles se reinventaram, inovaram e chegaram até nós de uma forma que não colocou ninguém em risco.

Produziram uma série de vídeos, disponibilizados semanalmente, com conteúdos que apresentavam a figura do palhaço através de reflexões importantes sobre cuidado, como por exemplo: consciência e, acima de tudo, esperança – esperança de que isso tudo vai passar.

Esperança renovada

No dia 20 de outubro, essa esperança foi renovada, pois pudemos ter a presença da ONG Nariz Solidário seus voluntários, em uma participação especial no evento de implantação do protocolo de gerenciamento da dor, em que ela foi incluída como o quinto sinal vital a ser avaliado pela enfermagem.

Valéria de braços dados com os voluntários do Nariz Solidário

Após a coleta, o dado é lançado no prontuário do paciente e passa a ser monitorado por toda equipe médica.

Ao final do evento, foram apresentadas técnicas que tratam a dor sem medicamentos.

Para nós, da ONG Nariz Solidário, que trazemos com alegria aos hospitais a figura do palhaço.

Com o objetivo de contribuir com estratégias que remetam o idoso a memórias afetivas e agradáveis.

Essa estratégia tem por objetivo desconectar o paciente, por alguns instantes, do processo de adoecimento, que gera dor e sofrimento.

Quando eles chegam, tudo muda

A gente fala muito das transformações que vimos nos pacientes, mas posso registrar os impactos no meu próprio trabalho.

Em muitos momentos em que eu precisei ser ouvida, desabafar, ou até mesmo rir de algumas piadas sem sentido, partida ou destino.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia