Categories
25 a 39 anos Branca Homem Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Não me permiti sofrer para ser suporte

Estava sendo exaustivo trabalhar no segundo e no terceiro setor e, ao mesmo tempo, senti estar sem suporte — ambos os trabalhos estavam exigindo muito de minha parte.

Trabalhei com vendas durante muito tempo, sempre na área da gestão. Após idealizar e co-fundar a ONG Nariz Solidário, percebi que já não conseguia mais realizar às duas coisas.

A Covid-19 tirou o meu suporte

Comecei a perceber que, minha energia era muito maior quando se falava no social, meu interesse era o dobro, e bingo! O universo conspirou, e me fez perder o emprego.

Por dois anos desisti de vagas, reprovei em outras, vi-me vulnerável, e coloquei minha família em vulnerabilidade.

Foi aí que decidi focar no terceiro setor e na ONG. Consegui até uma bolsa para me especializar mais na área, trabalhei brevemente em outra ONG, e adquiri mais experiência.

No início de 2020, decidi ficar 100% dedicado ao trabalho social. Tudo ia bem, de forma muito promissora, até que uma bomba chamada Covid-19, explodiu.

Sem suporte e sem emprego, a Covid-19 chegou

Estou acostumado a trabalhar em ambientes de pressão, mas, poucas vezes, me vi com tanta ansiedade.

Era uma pressão no meu peito e, uma sensação indescritível; golpeava-me com muita força.

 Essa situação se tornou extremamente exaustiva quando, precisei me manter firme, pela minha família, e por todos os voluntários da ONG.

Não me permiti sofrer para ser suporte, ser refúgio, mas, gradualmente, fui percebendo que não estava funcionando.

Eu poderia estar empregado, ganhando bem, sem aquela loucura social, ou quem sabe, já teria sido cortado e estaria, no mínimo, recebendo auxílio emergencial.

De certa forma, não dava para prever e nem para mudar. Minha filha, na época com 12 anos, até entendia algumas questões, já o meu filho de três anos, só entendia querer leite com chocolate, e quando o papai estava feliz, ou nervoso.

Ficamos um ano confinados em um buraco que parecia não ter fim. Ele, querendo brincar, e eu, tentando me organizar entre o meu inferno interior e o equilíbrio de ser um pai para ele e tantas outras coisas para tanta gente.

Nesse período, minha esposa ainda conseguiu manter seu trabalho, mesmo autônoma. Nesse período, também, a saudade da minha filha que mora com a mãe em outro estado me doía. Eu estava falido, sem saída.

Não foi conselho, foi suporte e cuidado

Alguns meses depois, convoquei uma reunião com os facilitadores da ONG. Minha intenção era de pedir ajuda, mas também, estava em busca de alguém que me convencesse a desistir, pois, não estava conseguindo engajar os voluntários afetados pelas problemáticas sociais.

 Eu sabia que nosso público-alvo estava ainda mais vulnerável e, nós tínhamos que estar lá, afinal, nascemos do caos e para ele.

Mas eu também estava sem forças. Em uma pausa de desabafo, o Thiago, do Marketing, me salvou.

 “Du, respira, grandes CEOs de grandes empresas, com profissionais de alta desempenho, não estão sabendo o que fazer.”

Os demais também manifestaram apoio. Foi uma fala tão simples, mas tão potente para mim naquele momento, que me desacelerou e me fez reorganizar as minhas emoções.

O acolhimento emocional

Larguei o computador por uns dias, minhas dores diminuíram, já que eu acordava com o computador ligado e praticamente dormia em cima dele.

Passei a brincar mais com meu filho, peguei novamente no violão, comecei a cuidar de mim e da minha esposa. Fiz umas ligações despretensiosas, assisti a filmes, e desacelerei.

Após esse momento de relaxamento, comecei a analisar o que poderia dar certo: as tendências, urgências, demandas, parcerias, e as amizades de valor.

Em uma tentativa arriscada de fazer lives, já que eu tinha medo de dar opiniões tão abertamente, deu certo. Fomos um dos primeiros grupos artísticos a fazer lives e a abordar assuntos específicos sobre nosso contexto — coloquei tudo para fora.

Esse movimento culminou em cursos ‘on-line’, e na criação de fóruns inéditos no país.

Os recursos começaram a entrar, e com isso, chegou-se a um estágio de eu estar contribuindo para ajudar colegas a saírem do mesmo buraco em que estive.

O que mais me chamou a atenção, foi que à medida que, os problemas sociais e globais iam aumentando, e o nosso trabalho, ia tomando ainda mais força.

Minha mente conseguiu canalizar toda aquela dor e me fez organizar tudo que eu já estudara na vida.

Como um sopre de apoio

Como um sopro de esperança, alguns projetos foram aprovados e, conseguimos gerar empregos para artistas voluntários que, também se encontravam vulneráveis.

Em meio ao caos, conseguimos manter nosso trabalho nos hospitais em um momento em que, praticamente 100% das atividades semelhantes em todo o país, haviam sido bloqueadas.

Recentemente, fiz uma análise dessa trajetória, em busca de entender quais foram os pontos que me tiraram daquele abismo, e me trouxeram a ser corresponsável por impactar mais de 40 mil pessoas na pandemia.

Percebi que, ainda fraco, mantive o propósito e, quando estava prestes a perdê-lo, ele me encontrou e floresceu de dentro daqueles que ajudei de alguma forma, que, assim como eu, estavam aflitos, exaustos e que, por meio da arte, encontraram forças para continuar.

Isso me fez perceber na prática, a lei do retorno. “Do buraco ao solo”

Quem cuida de quem cuida?

A pandemia me fez perder incontáveis amigos e familiares. Contudo, é estranho dizer que o luto, virou cotidiano. Mesmo quando todos em casa positivaram, pareceu não mais causar medo e, até hoje, ainda reflito sobre esse sentimento.

Penso que, é uma utopia sofrer com a esperança de que algo retorne, pois não vai, e essa fase do luto, acabei apaticamente vencendo.

Por outro lado, tudo isso também me fez ser melhor, mais humano, mais forte, um melhor pai, esposo, amigo, profissional. Aprendi a conviver melhor com meu ego, e a ter mais paciência e tolerância de meus medos.

 Ainda não está favorável, continuamos nossa luta, fazemos isso com arte. Talvez nunca esteja favorável, embora lutemos para isso – é um paradoxo que permeia quem mergulha muito na lógica e na tentativa de acabar com a nossas mazelas.

Quanto a isso, não tenho respostas, somente o momento presente.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Categories
25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa

O grupo que ameniza dores estava longe

O grupo que ameniza dores, que leva sorrisos, que escuta, estava longe.

Logo no início, quando ainda nem se podia projetar ou vislumbrar tudo o que estava por vir, todo esse grupo, inclusive eu, começou a desenvolver atividades de casa.

Durante a pandemia, eu trabalhava com um grupo de voluntários muito especial, dentro de um hospital.

Dores da distância

Justamente quando um hospital mais precisava dessa leveza, desse olhar sensível à dor do próximo, desse acolhimento! O que fazer? Como voltar a conectar as pessoas em um momento em que, mesmo os voluntários e seus corações generosos, estavam sofrendo?

Com o medo, com as limitações, com o desconhecido e, cada um, com si, e com tudo o que essa pandemia fez em nós.

“Eu me vi sozinha, em uma sala onde cabia muito amor”

Eis que a criatividade e a vontade de ultrapassar barreiras, mesmo desconhecidas, foram surgindo. Atividades adaptadas, uso da tecnologia e, principalmente, a vontade de ajudar.

Pouco a pouco fomos, juntos, descobrindo como apoiar uns aos outros. Com o passar dos meses, eu voltei presencialmente ao hospital, mas “o meu time”, como passei a chamá-lo, não.

E eu, mesmo já realizando algumas atividades, vi-me sozinha, em uma sala onde cabia muito mais amor, onde entravam e saiam durante todo o dia pessoas entusiasmadas e prontas para ajudar.

Quem preencheu esse silêncio foram colegas maravilhosos. Esses que, aliás, sempre perguntavam “quando os voluntários voltam?”

Entre as dores e a criatividade

Áudios com leitura, visitas virtuais, costuras, doações, e muito mais. Além de todas essas propostas que foram sendo feitas à distância com o apoio de outros colegas e grupos parceiros, como o Nariz Solidário.

Eu também procurava fazer companhia, ouvir, ser prestativa e estar presente para esse “meu time” que sentia muita saudade, pois compartilhavam comigo, um querer imenso de poder estar fazendo as atividades de antes da pandemia.

Algum tempo depois, em meio a tantos cenários, desabafos e adaptações – eu testei positivo para o novo coronavírus.

As dores da Covid-19

Meus primeiros sentimentos foram de frustração, medo, revolta e tristeza. Eu sempre estava me cuidando, trocando máscaras, e usando álcool. Mas estava em um hospital, o que aumentava muito as chances de contrair o vírus.

Ele ainda me incomoda, um ano depois. Por algumas alterações no meu olfato e paladar.

Eu sou formada em Relações Públicas, amo minha profissão e adoro lidar com pessoas. Por isso, fui lidar com pessoas, em uma causa, para servir. Nunca imaginei que estaria dentro de um hospital e, nunca mesmo, durante uma pandemia.

Basta o sentimento de querer, e a atitude para realizar

Com tudo isso, eu aprendi muito sobre paciência, medo, solidão, futuro e pessoas. Ah! As pessoas… Trocar com cada uma e aprender, mesmo que de uma forma nem sempre fácil, — é o que me move.

 E, mais do que isso, o sentimento de que podemos sempre mais.

Depois dor vem a resiliência

De tudo, não tem conclusão; ainda vamos levar muito tempo para absorver tudo isso, para lidarmos com o que sentimos e seguirmos.

Mas, eu espero que meu relato ajude as pessoas a continuarem se cuidando, para não se contaminarem e nem ficarem, por tanto tempo, com alguma alteração em seu corpo.

Espero também que sirva para saberem que, sempre é tempo de ajudar, sempre há lugares e pessoas precisando.

Para sermos mais fraternos, e mais humanos uns com os outros, não há tempo, ocasião ou doença — basta o sentimento de querer, e a atitude, para realizar.

Em tempo, como na foto abaixo, mesmo diante de um cenário tão delicado, sempre que podia, eu colocava um “sorriso no rosto”, para alegrar tudo ao meu redor. Mesmo que, através de uma máscara.

Samantha alegra e tranquiliza as dores sentidas pelo isolamento em pacientes hospitalizados.

Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Categories
18 a 24 anos Branca Ensino Fundamental Completo Ensino Superior Completo Mulher Cis Paraná

Mil e uma noites de solidão

O início de 2021 foi uma eterna noite de solidão. Eu passei por um grande sufoco emocional, em que descobri que meu relacionamento com minha “melhor amiga” era extremamente tóxico.

Lidar com isso foi algo demorado, pois eu não me afastei dela de um dia para o outro, até porque, morávamos sob o mesmo teto.

Esse empecilho fez com que eu vivesse dias e noites, durante seis meses, dividindo a casa com uma pessoa que me odiava, e fazia de tudo para eu me sentir mal, chegando a relatar várias vezes que o motivo da vida miserável dela, era culpa minha. Não podia sair de casa, pois estávamos no auge da pandemia.

Mesmo sendo ela que me xingava, gritava, ignorava, e quebrava as coisas.

Noite sem fim…

Como se isso não fosse ruim o bastante, ela ainda fazia a cabeça das pessoas, para que eu parecesse um monstro. Essas dificuldades de 2020 me abalaram muito, mas, 2021 me reservou uma nova surpresa.

No início do ano eu fui diagnosticada com distimia. Essa doença é diferente da depressão, apesar de serem semelhantes.

Um paciente com distimia sofre de mau-humor, irritação constantes, personalidade difícil, e nossos organismos têm dificuldade em produzir serotonina.

Essa é uma doença crônica. E por conta das minhas dificuldades em 2020, meu estado emocional era sério.

Precisei começar a me medicar, o que também foi uma aventura. Cada medicamento me dava um efeito colateral. Até que então, encontrei o medicamento certo para o meu organismo.

Esse processo só foi possível devido ao apoio de minha família, e de uma luz que acabou com as minhas noites de solidão.

Depois da noite, vem o dia

Uma ex-colega de faculdade mandou uma mensagem no grupo da nossa antiga sala, pedindo ajuda com um projeto voluntário. Eles precisavam de pessoas para editarem vídeos, e eu, precisava de algo que me desse força para conseguir levantar da cama e não desistir.

 Foi quando eu mandei uma mensagem pedindo para me juntar ao grupo. Quando fui aceita na equipe, não sabia se estava mais feliz ou desesperada, pois meu medo de fazer algo errado era enorme, mas a alegria de fazer parte de um novo projeto era maravilhosa.

Assim, eu me juntei ao Nariz Solidário. Não demorou muito para eu perceber que o grupo era muito divertido e organizado. Eu sempre achei engraçadas as diferenças dos editores para os palhaços.

Dias de Nariz Solidário

Um grupo é todo reservado, enquanto o outro saltita de alegria. O famoso caso dos introvertidos e extrovertidos tendo que dividir o mesmo ambiente.

E, mesmo com tanta diferença, todos se entendiam e se respeitavam, pois, estávamos ali com o mesmo objetivo.

Minha missão no Nariz Solidário é receber vídeos produzidos pelos palhaços, adaptar para o ambiente hospitalar e colocar elementos que auxiliem na compreensão de cada tema, como, por exemplo, a sonoplastia.

Daphane com seu livro de animação durante a edição dos vídeos do Nariz Solidário

Eles estavam me salvando…

Se me perguntassem hoje, se eu voltaria no tempo para nunca fazer amizade com aquela pessoa, minha resposta seria não.

É verdade que essa amizade me trouxe muita dor, mas, foi por conta disso, que eu busquei ajuda profissional, e soube do meu caso. Foi por conta desse estado emocional que eu entrei para o Nariz Solidário.

Loucamente eles me recrutaram pensando que eu ia ajudá-los, mas eram eles que estavam me salvando.

Sou uma pessoa muito tímida, eu não me envolveria em um grupo tão alegre como o de palhaços, se eu não estivesse em um momento tão complicado. E foi graças a isso que eu percebi, que mesmo que uma pessoa pareça muito diferente de você, é possível que vocês se deem bem.

Que mesmo que o mundo esteja desabando, vai ter alguém do seu lado para ajudar. Seja a sua família, ou até uma mensagem de ajuda enviada pelo WhatsApp.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Categories
25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa Sem categoria

As Unidades de Internação se transformaram em UTIs

O contexto da minha história se passa no Hospital Municipal do Idoso Zilda Arns (HMIZA), especificamente nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), onde leitos foram abertos para atender à demanda de casos de Covid-19, durante a pandemia sanitária.

 Na UTI, os profissionais de saúde e voluntários atuam em conjunto visando proporcionar um cuidado integral ao paciente e a seus familiares. As alterações da rotina dos profissionais se iniciaram em março de 2020, em virtude da pandemia da Covid-19.

Dentro da UTI

Essas alterações podem ser exemplificadas, por exemplo, pelo uso de mais Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Assim, deixamos de utilizar o jaleco branco para fazer o uso de aventais, máscaras N95, ‘face shield’, touca e luvas descartáveis para evitar a contaminação do vírus na UTI.

 Além disso, as Unidades de Internação foram transformadas em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), havendo a necessidade de contratação de mais profissionais de saúde, do fechamento de atendimentos ambulatoriais e da limitação de visitas presenciais.

No início da pandemia, muitos profissionais de saúde expressaram reações emocionais de ansiedade diante da falta de conhecimento acerca do novo coronavírus, como o medo de se contaminarem e passarem para os seus familiares, bem como o medo de morrer, de perder entes queridos e colegas de trabalho.

A pandemia foi um desafio para os profissionais de saúde

Com a ausência de visitas familiares, percebemos que os pacientes internados na UTI, que estavam conscientes, ficavam tristes. Diante disso, gostaria de narrar a história da atuação da psicologia durante a pandemia de Covid-19.

A nossa prática foi modificada nesse período. No início da pandemia, criamos um serviço de atendimento psicológico aos profissionais de saúde, visto que identificamos o sofrimento psíquico de muitos profissionais.

Claro que nós, psicólogos, também estávamos com medo e ansiosos, mas, percebemos caber à nossa profissão, oferecer apoio psicológico aos demais profissionais.

Ausência e tratamentos na UTI

Com a ausência de visitas familiares, percebemos que os pacientes internados na UTI, que estavam conscientes, ficavam tristes em decorrência do processo de adoecimento, da hospitalização e do distanciamento dos familiares.

Por outro lado, os familiares ficavam ansiosos e passavam o dia esperando a ligação telefônica do boletim médico para receber notícias do paciente, já que este não podia ficar com o próprio celular.

Muitas dessas videochamadas tinham uma tonalidade de despedida

Diante desse distanciamento entre pacientes e familiares, nós, psicólogos e assistentes sociais, com o apoio da gestão do hospital, começamos a realizar videochamadas com o intuito de aproximar os pacientes e seus familiares, como substituição das visitas presenciais.

Realização de videochamadas na UTI no Hospital Zilda Arns

Além disso, foi muito comum realizarmos videochamadas, a pedido dos pacientes, antes do processo de intubação orotraqueal na UTI. Muitas dessas videochamadas tinham uma tonalidade de despedida, já que o paciente não sabia se sobreviveria ao tratamento invasivo.

Essa situação me deixava angustiada e triste, principalmente quando alguns desses pacientes faleciam. Frente aos diversos óbitos, especialmente no “pico da pandemia”, percebemos que muitos familiares não tiveram a oportunidade de se despedir do paciente e, no caso da morte por Covid-19, não podiam realizar velório.

Para a psicologia, são muito importantes os rituais de despedida, visando evitar que os entes queridos constituam um luto complicado.

A partir da relevância dos rituais de despedida, foi acordado com a equipe de saúde, a liberação de algumas visitas especiais de familiares aos pacientes em processo ativo de morte na UTI.

Essas visitas eram geralmente assistidas pelos profissionais de psicologia ou assistentes sociais. Durante a pandemia, vi muitos pacientes jovens, adultos e idosos falecerem, diversos membros de uma mesma família partirem em um pequeno intervalo de tempo.

O psicólogo, muitas vezes, acompanhava o familiar para dar a difícil notícia do falecimento de um ente querido por Covid-19 para o paciente. Face a esse sofrimento de diversas perdas, percebemos a necessidade de comemorar a recuperação de cada

Paciente que sai da UTI, porque, significava uma conquista para a equipe de saúde. Tivemos algumas situações de alta hospitalar com comemorações, onde familiares aguardavam o paciente do lado de fora do hospital com bexigas e cartazes, e até tivemos pedido de casamento.

Isso me deixava feliz

Perante os desafios enfrentados pelos profissionais de saúde durante a pandemia, os vídeos do Nariz Solidário, os agradecimentos de pacientes, familiares e empresas, nos motivavam a dar continuidade ao nosso trabalho.

Vocês, voluntários, nutrem a nossa energia, tornam o ambiente hospitalar mais leve e alegre, proporcionando atendimentos humanizados. Vocês são essenciais e especiais! Muito obrigada pelos vídeos em um momento tão difícil das nossas vidas.

A pandemia nos ensinou a refletirmos nossa finitude e o nosso sentido de vida

Para nós, psicólogos, percebemos a importância da humanização do atendimento no contexto hospitalar.

No pós-pandemia, algumas estratégias são: retornar as atividades de humanização e as visitas presenciais de familiares.

A pandemia nos ensinou a refletirmos nossa finitude e nosso sentido de vida. Aprendemos a valorizar a importância das nossas relações sociais, dos afetos, da saúde e do trabalho saudável. Passamos por um luto coletivo, pois nossas vidas foram modificadas pela perda do nosso “mundo normal”.

Sofremos e nos solidarizamos com a dor do outro nesse período.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Categories
25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Até logo, voluntários

Meu nome é Valéria Azevedo e coordeno o Serviço Social e Voluntariado do Hospital Municipal do Idoso Zilda Arns, em Curitiba. Nossa história com o Nariz Solidário começou em 2017, quando um jovem cheio de empatia, sonhos e ideais, procurou pelo Voluntariado do Hospital.

Chamou-me a atenção a maneira de se colocar no lugar do outro, desenvolver estratégias com responsabilidade e profissionalismo, através da figura do palhaço caracterizado de época – diferenciais observados quando acompanhamos a atuação dos voluntários do Nariz Solidário.

Sempre desenvolvendo o trabalho através da arte, chegando aos pacientes, familiares e equipe de uma forma muito lúdica, leve e harmoniosa. Levando a uma reflexão de que o vivido no passado e no hoje serão, amanhã, frutos para um futuro cheio de aprendizado.

Os voluntários voltam virtualmente

foram afastados de suas atividades, aquela presença que nos fazia esquecer por alguns instantes da doença, da dor e do sofrimento, agora estava tão distante, sem previsão de retorno.

Foi então que eles se reinventaram, inovaram e chegaram até nós de uma forma que não colocou ninguém em risco.

Produziram uma série de vídeos, disponibilizados semanalmente, com conteúdos que apresentavam a figura do palhaço através de reflexões importantes sobre cuidado, como por exemplo: consciência e, acima de tudo, esperança – esperança de que isso tudo vai passar.

Esperança renovada

No dia 20 de outubro, essa esperança foi renovada, pois pudemos ter a presença da ONG Nariz Solidário seus voluntários, em uma participação especial no evento de implantação do protocolo de gerenciamento da dor, em que ela foi incluída como o quinto sinal vital a ser avaliado pela enfermagem.

Valéria de braços dados com os voluntários do Nariz Solidário

Após a coleta, o dado é lançado no prontuário do paciente e passa a ser monitorado por toda equipe médica.

Ao final do evento, foram apresentadas técnicas que tratam a dor sem medicamentos.

Para nós, da ONG Nariz Solidário, que trazemos com alegria aos hospitais a figura do palhaço.

Com o objetivo de contribuir com estratégias que remetam o idoso a memórias afetivas e agradáveis.

Essa estratégia tem por objetivo desconectar o paciente, por alguns instantes, do processo de adoecimento, que gera dor e sofrimento.

Quando eles chegam, tudo muda

A gente fala muito das transformações que vimos nos pacientes, mas posso registrar os impactos no meu próprio trabalho.

Em muitos momentos em que eu precisei ser ouvida, desabafar, ou até mesmo rir de algumas piadas sem sentido, partida ou destino.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Categories
25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Cis Paraná

Palhaçaria no audiovisual

Sou profissional circense e palhaça no Nariz Solidário, que trabalha com o que chamamos de ‘palhaçaria’ para auxílio à humanização de pessoas desde 2014, em Curitiba.

Além de formações, realizo visitas cênicas a hospitais de toda região. Com a pandemia e o cessar das atividades presenciais

nos adaptamos às visitas remotas e à construção de vídeos de palhaçaria, unindo a arte do palhaço e a produção de conteúdo para trazer mais leveza ao ambiente hospitalar. Além de temas cotidianos e datas comemorativas.

Dessa forma, com esses vídeos, poderíamos alcançar mais pessoas. O conteúdo dos vídeos eram mais para trazer leveza, um momento de respiro para esse período tão difícil e obscuro que atravessamos.

Porém, alguns vídeos vinham com um pouco mais de reflexão do que ‘palhaçaria’ – proposital ou naturalmente, devido ao nosso processo criativo e à imersão na realidade em que estávamos vivendo.

É a figura da palhaça, da palhaçaria

Sobre esse reverberar natural, gostaria de compartilhar um relato a respeito do vídeo que fiz sobre o Dia das Mães. Já estou sem minha mãe há três anos, sinto-me conformada. Porém, fazer algo que homenageia quem não está mais presente sempre traz um nó na garganta.

Estava um pouco resistente e sem ideia. Depois de algum tempo, comecei a pensar no que seria meu roteiro para fazer o vídeo. E pensei em olhar as fotos que tenho guardadas em casa.

O álbum de fotografias

Ao olhar todas, percebi que não tinha mais nenhuma foto da minha mãe, nem me lembro o porquê disso, mas me frustrou, pois não havia mais a lembrança física de minha mãe naquelas fotos.

De repente, como um pequeno filme, a cena de pegar as fotos e buscar pela minha mãe em algum retrato me apareceu aos olhos como o meu roteiro – a minha verdade.

Voilá…

Pronto! Teria ali um possível vídeo, ainda inacabado, mas já com alguma estrutura. Outra questão me surgiu: como uma palhaça conta que gostaria de se lembrar da mãe, mas não tem nada visível que possa ajudar? Como colocar um assunto tão delicado de uma forma que não deixe um vídeo pesado para um momento tão intenso?

Existe uma forte comparação do palhaço e de suas ‘palhaçarias’com as crianças, de que, para se tornar um bom palhaço, é necessário buscar a sua memória mais pueril. E, de certa forma, foi a maneira que encontrei para resolver o meu vídeo.

Trouxe à tona os meus rabiscos. “Se não tenho mais foto, então eu desenho aquilo que me vem à lembrança.”


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Categories
25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Cis Paraná

A partida de minha mãe e o trabalho social

Em agosto de 2019, depois de nove anos de trabalho, fui desligada da empresa que trabalhava por conta da terceirização do setor. Pouco tempo depois, sofri com a partida de minha mãe.

Isso aconteceu no início do mês. Quando o final deste mesmo mês chegou, internei minha mãe às pressas por conta de uma hemorragia no estômago.

A minha sorte foi poder contar com o dinheiro do acerto para poder fazer tudo da forma mais rápida possível para a minha mãe, tentando dar a ela o maior conforto que a situação permitiu.

Entramos no internamento na terça. No domingo, o médico veio conversar conosco muito animado com o resultado dos últimos exames, falando até da possibilidade de alta para o dia seguinte.

Notícias..

Com essa informação, fui para casa passar a noite e, no dia seguinte, quando cheguei ao hospital para vê-la, a enfermeira veio conversar comigo.

Tinham preparado minha mãe para uma tomografia, que nem chegou a ser realizada, pois ela havia tido outra hemorragia e acabou indo para o cuidado intensivo.

Permitiram-me vê-la, e ela disse que estava cansada e que só queria que eu fosse feliz.

A partida

Foi o tempo de chegar em casa e receber uma ligação. Após levarem-na para a UTI e de eu ficar esperando por 3 horas na porta do local para ser chamada, entrei e não reconheci minha mãe, que já havia tido uma parada cardíaca e estava sem saber o que se passava com ela.

Disseram que eu podia ir embora, pois a situação dela era estável, porém, nada boa.

Foi o tempo de chegar em casa e receber uma ligação pedindo que eu voltasse ao hospital para saber da notícia do óbito.

O trabalho social

Em 2020, depois da partida de minha mãe, toda essa experiência me fez escolher fazer o projeto comunitário da universidade em que estudo, junto com a Associação Nariz Solidário, organização que trabalha levando a arte do palhaço para dentro de leitos dos hospitais.

Com isso, recebi o convite para atuar como voluntária permanente pela associação.

Minha mãe sempre esteve atrás da câmera

Em 2021, iniciamos um projeto de edições de vídeos para o YouTube, tendo em vista que as visitas aos hospitais não estavam mais sendo permitidas desde o início da pandemia da Covid-19.

Em uma das edições, especificamente a do Dia das Mães, tive a sorte de escolher para editar o relato da Lupita (uma das palhaças do elenco), que também havia perdido a mãe e, na ocasião, não tinha nenhuma fotografia com ela.

A minha mãe sempre esteve atrás das câmeras para registrar a nossa infância. Contudo, era raramente fotografada conosco.

Foi um dos vídeos mais difíceis da minha trajetória

A similaridade de situações mexeu muito comigo durante a edição eu editava o vídeo, que iria ser transmitido nos leitos de um hospital infantil durante todo o projeto.

Quando o assisti pela última vez antes de exportar o arquivo, não consegui conter as lágrimas.

Foi um dos vídeos mais difíceis da minha trajetória neste trabalho voluntário, fiquei pensando na partida de minha mãe e em todas as outras partidas; de mães e pais que perderam seus filhos, filhos que perderam seus pais e mães subitamente em reflexos da pandemia.

Desejo força a todos vocês. Como a minha mãe me disse nos seus últimos momentos de lucidez: “elas só querem que sejamos felizes”.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Categories
40 a 59 anos Branca Ensino Superior Completo Homem Cis Paraná

Abraçando a onça

Eu e minha dupla de visita, Sabrina Silva (Palhaça Lupita), encontramos, abraçada à sua onça, a Dona Eliane, uma senhora muito simpática.

Dona Eliane nos contou que trabalha no cemitério e que também é palhaça. Ficamos imaginando-a fazendo palhaçadas no cemitério. Contou-nos ainda que sua tia dançava em cima de um cavalo, já imaginaram? Pois ela e seu tio eram do circo e, entre inúmeras peripécias, amavam-se muito, tanto que, quando ela se foi, ele se foi logo em seguida, para continuarem com seus espetáculos juntinhos.

Paciente em hospital interagindo virtualmente com os palhaços do Nariz Solidário

E a onça? Não quisemos conferir se estava viva. Saímos a bordo de um manequim, ou melhor, de um tablet na cabeça de um manequim – “Se virem uma onça por aí, não diga que fomos por ali”.

Antes da onça

Sou ator e artista há muitos anos, e a pandemia me trouxe ansiedades muito fortes, principalmente por conta de minha profissão ter sido uma das primeiras a saírem de cena, e a última a retornar – inclusive, ainda não retornou por completo.

No meio disso tudo eu, que faço parte da ONG Nariz Solidário, consegui manter o meu ofício por conta de um projeto aprovado, que não só me trouxe um respiro financeiro e emocional, mas também me fez olhar de outra forma para a arte.

Tivemos que nos adaptar e realizar intervenções virtuais, que antes eram presenciais, em hospitais do SUS. No começo foi difícil, novo e estranho. Mas ao longo do tempo fomos percebendo que, mesmo no ambiente tecnológico, era possível promover encontros artísticos que também pudessem gerar transformações mútuas.

Depois da onça

“Enquanto houver vida, há sempre espaço para um leve respirar e brincar”

O isolamento social e as diversas problemáticas causadas pela pandemia e que explodem na saúde física e mental de cada pessoa, ainda podem ser suspensos por instantes, em estados brincantes, ainda que a dor supere a razão e a intenção. Nos hospitais sempre existiram isolamentos temporários, no entanto, o que vivemos se tornou algo longo e duradouro, que nos encaixotou em uma tela pequena, de reflexões sobre realidades dolorosas.

Porém, repito: enquanto houver vida, há sempre espaço para um leve respirar e brincar.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Categories
25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Esperança de esperançar

Duas palavras tão parecidas que confesso que demoro para entendê-las e, então, diferenciá-las. Ocorreu-me não faz muito tempo. Podemos escolher apenas ter esperança ou acrescentar ao verbo o “r” e fazer com que ele seja ação; a ação de esperançar.

Vou tentar explicar melhor trazendo apenas uma pequena história pessoal.

Esperança dormente

Meu nome é Tatiane, tenho 39 anos e sou professora. Trabalho atualmente em uma escola de Ensino Fundamental I e II da Prefeitura Municipal de Curitiba. Meu trabalho me traz muitas versões de mim, entre elas a possibilidade de trazer um estresse muito desenfreado que pode se manifestar através de um comportamento muito calmo ou então, por meio de uma doença psicossomática.

Mas, como trabalhar as emoções de uma forma que não nos traga algo pior, e sim que a cura venha, ou pelo menos, que amenize os danos? Então paramos e nos deparamos com o trabalho remoto e, até então, nada de dominá-lo, ainda mais com uma profissão em que o presencial é melhor.

O pesadelo se instalou e a esperança diminuiu. Esses sentimentos se misturaram-se com notícias de pessoas conhecidas e que, em algum momento foram colegas de trabalho – morrendo, outras se contaminando, cumprindo quarentena, e relatando, através das reuniões on-line, como era a experiência em contrair ou conviver com a Covid-19.

A situação do desemprego, a necessidade de ter algumas coisas em casa que antes tínhamos, mas que naquele momento não era possível mais ter.

A incrível experiência de ficar com a família mais em casa do que apenas utilizar sua casa para descanso. E, assim, fui me acostumando com a nova forma de estar e de ser a protagonista de uma nova.

A necessidade de esperançar começou a crescer e, antes da pandemia, alguns projetos que estavam acontecendo, já não conseguiam mais continuar como antes.

 Faço parte de um grupo maravilhoso, conhecido como Nariz Solidário. Atuo no elenco voluntariamente como ‘Clona’, uma palhaça que vive azeda, adora se maquiar e que, ao mesmo tempo, traz uma sensibilidade e gosta muito de ajudar no que for preciso.

A esperança de ter comigo meus novos irmãos

O raio de esperança e de sorte, foi ter meus novos irmãos ali comigo neste momento. Este grupo não é simplesmente um grupo de narizes, mas de corpos inteiros. Um grupo que, mesmo durante a pandemia, não parou com suas atividades porque se reinventou.

Nesse momento, os caminhos, ao invés de se fecharem e ficarem aguardando, abriram um caminho de esperança e fé.

Iniciamos as visitas on-line por meio de um manequim, adaptado com rodinhas, e um tablet no lugar da cabeça. Sim, um boneco! Melhor dizendo, uma boneca, mais conhecida como ‘Covidina’ (carinhosamente apelidada pela equipe de enfermagem do hospital).

Participamos de histórias, de sinais com as mãos e os pés. Pessoas que passaram a nos aguardar toda semana na esperança de saírem vivos!

Essa vivência nos trouxe entrevistas, pois os jornais começaram a se interessar por esse grupo tão potente que não havia parado.

Comecei a fazer parte de uma nova organização, aquela que trouxe o projeto “De Nariz para Nariz”, em que as visitas foram reorganizadas, e com isso, pude participar e garantir que elas acontecessem, por meio de agendamentos.

Tivemos vários cursos oferecidos, o que trouxe uma nova versão para a minha personagem. Aquela que, mesmo sem o nariz, permanece comigo diariamente em meu trabalho, em casa com minha família e amigos.

Confesso que a parte dos encontros presenciais faz muita falta, aos poucos vamos retornando, mas quando temos a parte on-line, mesmo assim, conectamo-nos e tornamos este momento muito proveitoso.

 Recentemente tivemos um curso com profissionais que admiro e que, com certeza, eu não teria a oportunidade de participar se eu não estivesse fazendo parte dessa família.

Esperança, vacina e emoção

O tempo passou e retornei ao meu trabalho presencial, muitas coisas têm acontecido nestes últimos meses. Agora, novamente, tentamos retornar e nos adaptar ao novo normal. Não poderia deixar de citar a emoção em me vacinar – a sensibilidade de poder fechar os olhos e ser grata por essa oportunidade.

Como aos poucos as coisas vão retornando, fica a expectativa do retorno das visitas aos hospitais – estar ali me conecta ainda mais com a escolha que fiz em ser Nariz. Poderia passar horas relatando tantas outras coisas que já tive a oportunidade de participar juntamente com o Nariz Solidário, contudo, deixo aqui este registro de que não paramos! Ouvimos, expressamo-nos e, através disso, pudemos perceber que: ou paramos no tempo, ou traçamos uma meta para passar diante das diversidades da vida nesse momento de pandemia.

 Ainda não acabou, mas estamos sempre em busca do novo, vi e vejo possibilidades de me reinventar e não perder a esperança,

Esperancei

Então volto para o começo em que relatei a diferença entre essas duas palavras tão parecidas e, mesmo assim, cada uma tem sua importância na vida da gente. É assim a minha relação com o Nariz Solidário, com essa pandemia que nos trouxe muitas coisas e, entre essas coisas, a importância de refletirmos sobre a presença e o carinho um do outro.

Sempre vamos precisar cuidar para além do nosso nariz, do meu próximo e de mim mesma. Isso me trouxe afago e a capacidade de parar, respirar e refletir a cada situação.

Não sou perfeita, nem tenho a intenção de ser. Hoje estou mais segura e mais certa que estou no caminho certo.

“Que nunca percamos a esperança em esperançar” – Paulo Freire


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Categories
40 a 59 anos Branca Ensino Superior Completo Mulher Cis Paraná

“Sim, momentos trágicos, mas também de resiliência”

Sim, momentos trágicos, mas também de resiliência e de experiências nunca vividas.

Amizades eternizadas, projetos iniciados e abortados, de lágrimas, sorrisos mascarados, apertos de mãos escondidos e tapinhas nas costas, quando a vontade era dar um baita abraço naquele pai que perdeu o filho, naquela colega de trabalho exausta, ou nos palhaços que tiveram que se ausentar e sobre os quais as crianças perguntavam repetidamente.

Este desabafo é apenas para abrir um diálogo sobre nós, profissionais da saúde, que tivemos nossas vidas reviradas, esculhambadas e arriscadas diariamente durante esse momento histórico.

Hoje, estamos mais esperançosos com a vitória da ciência.

O cuidado continua, o trabalho também. Por isso, decidi dar uma oportunidade ao leitor curioso (modesta, eu?) que, durante esse período, ouviu e viu tudo de fora de um hospital. E dar um raio de esperança aos que não tiveram a mesma sorte.

Aos que estiveram internados como pacientes, aos que sofreram feridas que ainda não estão cicatrizadas, mas que podem se interessar pelo lado humano, pela mão-de-obra, pelo funcionalismo, pelo profissional que protagonizou (e ainda se encontra na linha de frente), de lados opostos ou não, na luta contra a Covid-19.

“Meu querido paciente obeso”

Sou fisioterapeuta do Hospital Infantil Waldemar Monastier (Campo Largo-PR), e minha vida virou de cabeça para baixo. Os filhos em casa (aulas on-line, sério isso?), sem ajuda da família ou de amigos pois, inicialmente, o medo de transmissão gerou um isolamento social intenso e, ainda por cima, trabalhando na linha de frente.

Maridão no pós-operatório de cirurgia de reconstrução da articulação interfalangeana da mão (essa é outra história) trabalhando de home office, falta d’água, máquina de lavar quebrada, e blá blá blá. Tudo que qualquer mulher adoraria, só que não.

A resiliência se faz necessária

Pelo menos não estava desempregada. Isso foi um alento ao qual tentei me agarrar inicialmente, porque a vontade de chorar era avassaladora. Bem, no hospital, os casos começaram a surgir lentamente, mas os protocolos foram criados e nós nos esforçamos muito para aprender a colocar em prática todas as mudanças que o vírus trouxe na maneira de atender, nos quartos, enfermarias e nas UTIs.

A precaução beirava quase ao absurdo que nunca usei tanto álcool em minha vida (minha intenção foi gerar uma interpretação dúbia!). Os EPIs (equipamentos de proteção individual) estavam escassos na UTI, pois todos resolveram ler no Google que a máscara N95 era a única que prevenia contra a Covid-19, além de a matéria-prima vir da China, país que ainda estava com o surto em larga escala.

Então, entre idas e vindas o atendi: G.B.N., nove anos. Um rapazinho obeso, prostrado, em máscara de oxigênio, que estava internado na enfermaria.

Um cara peculiar?

Ele era peculiar, parecia apresentar um leve atraso no desenvolvimento cognitivo e respirava com dificuldade, mas era uma simpatia. Usei toda a paramentação necessária conforme o protocolo, mas tinha certeza que era uma crise de asma típica.

Apesar de ter esse pressentimento, recolhi-me à minha insignificância e continuei com meus atendimentos até que, em um belo dia, encontro outro paciente em seu quarto.

Toda alegre, corro para perguntar aos colegas se ele havia recebido alta hospitalar, mas meu desespero foi ouvir que ele fora transferido para a UTI pediátrica devido ao agravamento do quadro. Sim, era Covid-19. Estava entubado, apresentando alterações respiratórias e cardíacas graves.

Nessas horas nós nos confrontamos com várias questões morais e éticas, mas canalizei minha energia na possibilidade de que ele sairia dessa. Eu disse à mãe dele, no último atendimento, que ele estava melhorando. O que foi que eu fiz? Após dias na UTI, ele melhorou, e encontrei-o na enfermaria.

Ele estava muito animado, incrivelmente falante e um pouco confuso devido à medicação, porém, ainda ofegante, perguntou várias vezes o meu nome. Realizamos uma partida de futebol no quarto, com uma bexiga de luva improvisada.

Amparo, fé, e resiliência

Lembrei-me dos ensinamentos do Grupo Nariz Solidário, que trouxe sempre ludicidade e alegria aos nossos corredores, tendo que se reinventar em meio ao caos, deixando seus vídeos ali na TV, leito a leito.

O olhar de satisfação da mãe era excepcional e fiquei muito contente ao vê-lo respirando bem em “ar ambiente”. Ao fim do atendimento, após perguntar novamente o meu nome, ele me pediu um abraço.

Fiquei paralisada, toda paramentada, vendo aquele cara gentil e sorridente parado na minha frente, ainda no período de precaução, e não tive dúvidas. Abracei-o com força, despedi-me e segui meus atendimentos, conforme o protocolo.

Quando o veria de novo?

“Um carinho precavido em meio a pandemia”

Somos capazes de fazer a diferença na vida dos que nos rodeiam quando nos desarmamos do egocentrismo, nos colocando no lugar do outro. Com um pequeno gesto, um olhar carinhoso, uma postura cordial, temos a chance de ser mais do que apenas coadjuvante de histórias remotas, para nos tornarmos sujeitos atuantes de novos momentos.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia